Ignorância não se combate só com ciência: É preciso filosofia
A formação psicoemocional/ afetiva e as perspectivas da consciência humana
O porque vivemos numa era de propagação de mentiras (fake news) e de polarizações (rivalidade entre grupos de opiniões políticas, econômicas ou religiosas diferentes entre si)?
Certamente existem muitas causas e as mais notáveis são observáveis em nosso meio: através das mídias (internet, redes sociais, televisão...) Notícias falsas e mentiras espalhadas através de meios de comunicação em massa podem ser desde notícias que omitem informações importantes, matérias sensacionalistas para atrair leitores (ou cliques) ou difamações de determinadas pessoas ou grupos. Já as polarizações, ou mais precisamente, a criação e/ ou intensificação de rixas entre variados grupos de pessoas, ocorrem não só por diferenças entre opiniões políticas e religiosas, mas também pelo fator mencionado anteriormente: notícias falsas, omissões de informações que afetam o público/ a sociedade, sensacionalismo, propagação de mentiras para atacar alguns grupos em prol de outros etc.
Mas estamos falando de seres humanos aqui e não de objetos ou coisas. Além dos interesses particulares de grupos que detém o poder de uma religião, de segmentos de mercado e empresas ou de partidos políticos, nós temos enormes quantidades de seres humanos com variadas expectativas, preferências, culturas, formações e vieses... Além das condições econômicas/ sociais, temos a educacional não só referente a escolaridade, mas também referente à criação e ao desenvolvimento humano. E desenvolvimento humano não é só biológico e/ ou social: ele é afetivo/ emocional, abrangendo parâmetro de sentimentos e da expressão destes/ das emoções, referência de bem estar psíquico e/ ou segurança psíquica, sentido existencial, de vida e coisas assim. Estas questões tidas como meramente complementares por muitos, na verdade são centrais para o ser humano;
Aqui falo partindo não só de minha experiência de vida, mas também da experiência como psicólogo; Cada ser humano que crê em uma mentira ou que consome conteúdo sensacionalista tem uma história de vida e possíveis motivos para aderir a tais "ideias". Sim, a educação adequada seria libertadora: aumentaria a chance de cada pessoa entender seu entorno para conviver em paz, com equidade de oportunidade e respeito à toda cultura e à toda forma de vida. Mas para além da educação nas escolas e faculdades, temos a educação "caseira" ou familiar. Esta começa desde que o ser humano é bebê, ou até mesmo desde quando está no ventre da mãe. Ela envolve o afeto, o respeito e a atenção à criança - um ser extremamente vulnerável que precisa da ajuda dos pais (ou de cuidadores). A fase vulnerável do ser humano então dura desde que ele está no ventre da mãe até a adolescência. Claro que há óbvias diferenças entre o bebê e o adolescente, pois este último está se tornando adulto, porém ambos estão em desenvolvimento e são dependentes dos adultos embora em diferentes graus.
Abordemos a criança: antes de aprender a falar, ela começa descobrir o próprio corpo e o espaço em seu entorno. Ela tem necessidades apesar de não conseguir se expressar pela principal forma de comunicação humana, que é a verbal, seja falada ou escrita. Este deve ser um dos motivos pelo qual o filósofo, médico e psicólogo, Henri Wallon (1879-1962) identificou as emoções como um fator importantíssimo para a criança na fase em que ela ainda não sabe falar e quando começa aprender as primeiras palavras: o olhar, o semblante, as expressões faciais, o tom de voz (etc) são determinantes na comunicação, formando um parâmetro de sentimentos para criança e sua respectiva personalidade. Dependente em praticamente tudo, a criança precisa de segurança, esta que vem de seus pais ou cuidadores. Caso ela não tenha esta experiência, ou caso esta experiência seja severamente deficiente (por variadas razões ou motivos), a criança sofrerá consequências psíquicas - seja em seu parâmetro do que são emoções exprimíveis, do que é segurança, o que é felicidade...
Toda a experiência infantil molda esta significante parte da psiquê humana e se a expressão de sentimentos for danosa, a criança dificilmente consegue reparar tal dano; Imagine uma criança que nos primeiros anos de sua vida não foi bem acolhida pelos pais - Crianças tratadas como estorvo, com pais presentes só de corpo (ou menos que isso) e que dão só o mínimo de atenção, são exemplos de que praticamente não houve receptividade na relação. Se a criança é deixada chorando por qualquer sofrimento por períodos prolongados, sem perspectiva de alívio ou compreensão dos pais, há um impedimento ou tolhimento do desenvolvimento de esperança e por aí vai. Note que são exemplos que tem sua subjetividade, mas são importantes, pois vale lembrar que subjetividade não é mera relatividade e sim o que envolve questões psíquicas não expressas e/ ou reprimidas/ suprimidas por negações, desprezo ou abandono, violência explícita ou velada etc. Para piorar, além da violência contra criança poder ser sutil, ela pode ser cumulativa de diferentes formas ao longo da vida e obviamente isso deixa "marcas" ou sequelas certamente misturadas à personalidade do indivíduo que sofre tais violências.
Certamente alguns transtornos identificados pela psiquiatria e pela psicologia têm essa característica complexa e aí que deveria ficar claro que um mero tratamento medicamentoso não trata o indivíduo, muito menos cura ou resolve seu profundo problema ou transtorno psicoemocional. Casos como esse exigem uma psicoterapia certamente de longo período e um profissional não só tecnicamente competente, mas definitivamente humano. Humano aqui então denota a importância de uma empatia e também a importância da ética - dois temas difíceis de se discutir por uma perspectiva exclusivamente racional por uma abordagem estritamente científica, afinal neste ponto adentra-se a filosofia. Além disto, quando cito sofrimento psicoemocional, devo ressaltar que a emoção neste caso, pode ter uma origem histórica na vida da pessoa e não é algo totalmente separado de sentimentos, embora algumas pessoas possam pensar que emoções sejam expressões meramente imediatas ou breves enquanto os sentimentos são algo exclusivamente subjetivo e/ ou duradouro.
O psicólogo existencialista, Rollo May (1909-1994), em seu livro Love and Will, identifica dois aspectos das emoções e como esta se interrelaciona com os sentimentos. A partir do estudo de casos de seus pacientes, May entende que a emoção não é meramente um impulso pois pode ser uma indicação de um desejo não só de possuir algo, mas de formar algo. É neste ponto que ela se relaciona com o(s) sentimento(s), bem como com a imaginação e a forma de nos comunicarmos com indivíduos relevantes para nós, moldando nosso modo de agir e interagir. Assim, o primeiro aspecto das emoções é de força propulsora pois relaciona-se com o passado da pessoa, a determinação da experiência pregressa (infantil, arcaica...) e a causalidade de possíveis sofrimentos ou transtornos. Por isso, o autor afirma que a psicanálise lançada por Sigmund Freud (1856-1939), estava correta em identificar e reviver este aspecto primário da psiquê humana e sua importância essencial na psicoterapia. Rollo May porém não para aí, e possivelmente se distancia da psicanálise freudiana, ao indicar que o segundo aspecto, identificado como sentimentos, parte do presente para o futuro do ser humano: Isto porque tal aspecto envolve sentir ou captar o sentimento das pessoas com quem interagimos, possibilitando o trabalho da intuição, além de possuir uma intencionalidade (por isto o ser humano pode ter expectativas, esperança, finalidade etc). Como psicólogo existencialista, Rollo May não se limita a estudos de viés deterministas e usa de uma construção de conhecimento massivamente filosófica (desde autores clássicos até os modernos) para colaborar com a ciência psicológica.
Há quem diga que a filosofia é um saber vago, outros podem afirmar que ela tem normas ou regras totalmente apartadas das ciências, mas na verdade nenhuma destas afirmações são verdadeiras. Partindo do primeiro corpo de obras preservado da filosofia ocidental, temos uma construção de conhecimento que não é fragmentada e nem é estritamente empírica, mesmo porque tal empirismo requer ênfase na materialidade, e consequentemente, na sensorialidade. A filosofia deixada por Platão nos oferece uma construção de conhecimento universal pautada pela ética, se deixarmos de lado os elementos de sua obra especificamente voltados às cidades/ estado gregas do século 4 a.C. Obviamente não seria caso de discutir Platão com possíveis pacientes da saúde mental, e sim, de estabelecer um ponto de partida ou base da construção de conhecimento para entender a psiquê humana, afinal não há ética alguma em reduzir o ser humano a um mero corpo ou a determinadas partes do corpo, como o sistema nervoso ou o cérebro, por exemplo. A filosofia ocidental nesta raiz ou base fundada por Platão, indica que não se constrói conhecimento partindo da afirmação de que algo não existe.
É por via de uma série de argumentações/ diálogos que o autor chega à conclusão que a psiquê humana, seja mente ou alma, não se reduz ao corpo físico. Embora certamente houvessem limitações para se estudar a parte biológica do ser humano no séc 4 a.C, Platão entendeu que a psiquê poderia ser "dividida", ou mais precisamente, classificada em 3 níveis. Estes 3 níveis da psiquê são parâmetros não detalhados minuciosamente, que podemos entendê-los como o nível mais biológico, voltado para as necessidades básicas e obtenção de prazer corporal, um nível intermediário ligado à indignação (thymous), certamente mais emocional e talvez ligado ao coração; e um nível mais racional e de capacidade ética, o qual o ser humano alcançaria as virtudes, a universalidade do bem etc. Não se trata de dividir o ser em partes totalmente distintas entre si nem de considerar o entendimento platônico como um dogma, mas sim de lançar uma base de construção de conhecimento que respeite relatos para além da vida física - que respeite não só comportamentos perceptíveis e emoções, mas também respeite sentimentos, sentido existencial e espiritualidade ou religiosidade humana.
Neste ponto volto a dar exemplos como psicólogo: tive 5 pacientes que me trouxeram casos cuja temática flutuava entre questões espirituais (ou religiosas) e psicológicas. Em nenhum deles eu impus minha cosmovisão ou pré suposição sobre o relato deles, bem como não reduzi as experiências deles a uma alucinação ou a mentiras como faria uma leitura estritamente materialista, empírica e/ ou biologista. Se a abordagem psicológica realmente é ética e tem a finalidade da melhoria do paciente, ela deve considerar o relato como uma possibilidade verdadeira. No exemplo que citei, 4 pacientes afirmaram não ter uma religião específica no momento e realmente consideraram a existência da alma humana e de uma realidade espiritual, enquanto 1 paciente religioso, preferiu entender seu próprio relato como uma alucinação da qual tirou um aprendizado. Tanto o contexto como o impacto das experiências de possível teor espiritual variou de paciente para paciente - cada experiência teve seu significado e em geral isso faz parte da perspectiva mística da consciência humana, bem como pode fazer parte de uma perspectiva mais simbólica, da forma de contar histórias sobre temas complexos e/ ou se expressar sobre temas profundos.
A psiquê humana não é exclusivamente racional e é por isso que o ser humano precisa de afeto desde bebê. Questões afetivas se ligam aos sentimentos, às emoções e ao possível sentido existencial do ser humano. O sentido existencial, ou sentido de vida das pessoas ao longo da história parece que esteve atrelado à cultura e à espiritualidade ou religiosidade. Povos das estepes asiáticas, da tundra, celtas da antiguidade europeia, o xintoísmo antes de registros históricos, os yorubás da África ocidental, inuítes, mazatecas, incas, tupis e tantos outros povos da América... muitos deles tinham a espiritualidade vinculada ao estilo de vida, seja mais ou menos social. Entre os menos sociais certamente estavam indivíduos com estilo de vida mais recluso, enquanto as práticas religiosas mais sociais foram difundidas em grupos de indivíduos com certa padronização de ritos e/ ou de conceitos.
Além disto, em inúmeras culturas espalhadas pelo globo terrestre ao longo da história houve mitos sobre a origem do mundo, do cosmos, do ser humano e da vida. E também existiram práticas espirituais com estilos de vida em harmonia com a natureza muito antes de religiões iniciáticas ou das religiões institucionalizadas via construção de templos e hierarquizações - exemplos incluem a busca do espiritual ou do divino através de práticas de transe místico via música, dança, consumo de substâncias, recolhimento, meditações etc. Estas perspectivas místicas e míticas, citadas por estudiosos como Jean Gebser, não são necessariamente contrárias à perspectiva racional da consciência humana - Platão por exemplo trata de todas elas ao longo de sua obra: Fedro e Íon tratam do transe psíquico, da inspiração divina ou espiritual e da transcendência; Político e A República trazem exemplos da perspectiva mítica etc.
A perspectiva racional do ser humano então não é superior às demais - todas fazem parte da consciência. Povos dominados por outras perspectivas da mente produziram suas coisas boas e viveram em paz com outros povos e com a natureza por séculos ou milênios, assim como povos tomados por uma perspectiva mais racionalista, como as cidades-estado helênicas dos séculos 5 a.C. ao 2 a.C e grande parte das nações europeias do final do século 17 em diante conseguiram desenvolver tecnologias, elaborar complexas construções de conhecimento e estruturas sociais. O que faz com que povos falhem em conviver na Terra não é uma ou outra perspectiva, mas sim a falta de ética. Isto porque um dos pontos centrais da ética é a universalidade que significa uma moral para além do indivíduo e voltada à todos, ao coletivo, e portanto à diversidade de cultura, de espiritualidade e de perspectivas da consciência. Aqui o tema toca a psicologia novamente: um indivíduo que tem pouca adaptabilidade ao sistema sócio econômico (neo) liberal deve ser considerado doente? Transtornado? Talvez até meados do século 20, muitos pensassem que sim. Mas hoje, após a luta anti manicomial, às críticas à indústria farmacêutica, incluindo aos psicofármacos, já é possível ver o quão anti ético é menosprezar ou patologizar quem tem dificuldades em se adaptar às condições de vida de ideologia capitalista. Não só muita gente vem sofrendo ou adoecendo justamente porque vive dentro do sistema sócio econômico neo liberal, mas como muitos outros que vivem fora dele (indígenas, quilombolas etc) sofrem por serem pressionados a se submeterem a tal sistema. Não há ética, portanto não há progresso real em oprimir pessoas, seja em pequenas ou grandes quantidades. E não se trata só do sistema, mas também das ideologias por trás dele - o que se incentiva e o que é apresentado como verdade ou como mais importante. Quem define isto é a construção de conhecimento, também chamada de epistemologia, mas principalmente tomada pela ciência com o decorrer dos anos. A ciência é um saber de perspectiva racionalista, porém menos amplo e mais voltado à especialização, pois abandonou a abertura da filosofia de autores como Platão, René Descartes, Jan Amós Comenius, Viktor Frankl, Arthur Eddington e Jean Gebser, fechando-se em pressupostos reducionistas os quais não detalharei aqui. Apesar de suas conquistas benéficas e importantes ainda hoje no séc 21, a ciência é predominantemente vertical, bem como grande parte das religiões, a economia, a política, as forças armadas das nações e os meios de comunicação. Ela é imposta de cima para baixo com um diálogo (ou mais precisamente, um discurso) enviesado beneficiando a quem tem mais poder, seja econômico, político, religioso ou qualquer outro. Ao desconsiderar ou inferiorizar outras perspectivas da consciência, a maior parte da produção científica passa longe da horizontalidade. É compreensível que depois de séculos afastada destas perspectivas, os cientistas que são os principais construtores de conhecimento da atualidade, tenha dificuldade de se reaproximar de tais perspectivas. Porém o ser humano TEM um pouco de todas estas perspectivas em sua consciência - talvez porque seja uma tendência social e/ ou evolutiva, fazer uma integração delas, afinal como mencionei anteriormente, o bebê nasce com necessidades afetivas e estas necessidades são de emoções como expressões do sentimento e formação de um sentido existencial. Nem todos encontram sentido na vida, é claro, muitos vivem bem sem um sentido ou achando que não têm um. Outros sofrem ou adoecem, enquanto muitos não conseguem encontrar porque são oprimidos pelas ideologias por trás do sistema econômico e por trás da construção de conhecimento da saúde mental, seja ela psiquiátrica, neurológica, farmacológica, ou até mesmo (mais tragicamente e absurdo em minha opinião) psicológica.
A psicologia é centrada no diálogo com o paciente - por isso ela é a última que deveria ser engolida por ideologias mecanicistas e/ ou segregadoras, sem universalidade, sem respeito à diversidade e sem ética. Os problemas trazidos por pacientes em psicoterapia sejam mais ou menos graves, possuem toda uma história de vida por trás, mas principalmente uma série de sentimentos, interpretações, gostos, valores entre outras questões que permanecem subjetivas por longos períodos de tempo. É preciso explorar todas essas camadas da psiquê humana com respeito e com finalidade ética. A ética não admite imposição de pressupostos nem de visões de realidade, sejam ateístas, religiosas, materialistas (etc), pois ela é aberta e por aberta não devemos entender aleatoriedade ou aceitação de toda fala sem crítica; Se trata de ser crítico mas universal e isto possivelmente é difícil porque exige esforço contínuo não só do paciente, mas do psicólogo como profissional de saúde mental e como construtor de conhecimento.
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