Este texto é uma tentativa de discussão filosófica sobre saúde mental, ética, visão de realidade (cosmovisão e pressupostos da construção de conhecimento), tomando como partida algumas experiências impactantes que eu tive entre os anos de 2016 e 2024.
Uma Síntese de Minhas Experiências
No ano de 2019 passei a buscar por uma espiritualidade por algumas razões que citei em outros textos. A maioria foram experiências psíquicas estranhas e difíceis, que não detalharei por enquanto, mas basta saber que as causas disso certamente foram minhas contradições que eu espero estar superando, bem como uma mentalidade distanciada da ética (espero estar me tornando mais ético também). Eu não tinha religião há muitos anos desde que abandonei o catolicismo quando eu cursava o ensino médio entre os anos de 1997 e 2000. Mesmo assim, devido à experiências estranhas que eu tive por volta de 2019, eu fui a alguns terreiros de umbanda por influência da minha namorada na época e depois frequentei um centro espírita por indicação de um amigo. Com a intensificação da pandemia de Covid e as necessárias medidas de segurança, tive que me virar sozinho predominantemente recluso em minha casa de março de 2020 até o final de 2021. Depois disto passei a frequentar missas e ações de solidariedade e certa assistência social até 2022 ou 2023, pois entendi que não há espiritualidade real sem uma busca por equidade entre os seres humanos... Mas por volta do 2º semestre de 2023, senti a necessidade de cuidar de mim mesmo; já havia tentado psicoterapia 3 vezes sem grandes resultados, pois meu problema incluia fatores para além dos meramente psicoemocionais: eram profundos, existenciais e espirituais. Busquei em uma "vertente" do Sanatana Dharma (vulgo "hinduísmo"), uma espiritualidade que incluísse a meditação, um auto conhecimento espiritualizado que se relacionasse não só com um sentido de vida, mas uma universalidade para além da solidariedade e equidade materiais. Em suma, eu precisei viver mais "mentalmente" e mais eticamente.
Entre minhas contradições citadas anteriormente estavam entender intuitivamente o valor na amizade e de sentimentos bons como o amor e não viver de acordo com isto: Desde que terminei o ensino médio até o ano de 2019, eu buscava me adaptar ao sistema socioeconômico vigente (neoliberal) de ideologia capitalista e para aliviar minha insatisfação com esse tipo de vida comum e miserável, eu buscava prazeres - principalmente os mais corporais e certamente mais químicos como prazeres do paladar e do tato. Me soa até redundância afirmar que os prazeres eram em comer coisas tidas como saborosas e realizar atividades sexuais (estas últimas, tanto faz a parceira, mas havia uma ênfase na intensidade do prazer, seguida pela quantidade de prazer e quando acompanhado, preferia a mulher de "beleza padrão"). Os prazeres sensoriais mais sutis me agradavam, mas eu os desprezava por me parecerem menos intensos: músicas como as dos gêneros clássico/ sinfônico e trilhas sonoras, belas paisagens como as da natureza preservada etc. Prazeres são um tema que envolve valores individuais e portanto os tipos de música ou de paisagens não são regras aqui - refletem simplesmente minhas experiências. A vida então era arrumar um emprego, permanecer nele até quando os abusos dos superiores ficavam insuportáveis e gastar ao menos uma parte do dinheiro sempre que possível com os prazeres mencionados, ou seja, era uma vida que ignorava grandemente os sentimentos, a ética... e o sentido. Sim, era uma vida sem sentido e bastante contraditória, mas note que era socialmente aceitável: O "normal" do povo de todas nações neoliberais/ capitalistas é trabalhar, pagar as contas e buscar prazeres, principalmente esses mais intensos... ou mais toscos. Hoje vejo isso como uma vida animalizada, mas "não animal", afinal o animal age conforme seus limites que são principalmente instintivos. Já o ser humano é capaz de ser mais que isso e não me refiro meramente a racionalidade aplicada ao conhecimento técnico ou ao desenvolvimento de tecnologias. Todo ser humano tem uma noção do que é bom e do que é mal ao próximo, ou seja, sabe racionalmente ou intuitivamente o que é nocivo para a maioria dos humanos e o que é benéfico. Essa noção é psíquica e ética - não é meramente um instinto de sobrevivência biológica que encontramos nos animais. Sim, eu sei que algumas espécies de animais têm uma complexidade que lhes permitem comportamentos além do meramente instintivo/ de sobrevivência, porém não vou falar deles aqui, e sim do ser humano ou "homo sapiens", partindo de minha vida: Ela parecia animalizada até o ano de 2019, talvez como a de muitos seres humanos, mas depois de minhas "experiências estranhas" mencionadas, particularmente as ruins (porque ocorreram algumas boas também), eu tive que buscar algo mais. Esse algo a mais consiste em deixar os egoísmos de lado em prol de uma vida mais altruísta, mas que também priorize atenção, força de vontade, paciência... enfim, coisas que devem ser inferidas ou vividas sinceramente em nossa atividade psíquica/ interior. Estas coisas me parecem o que algumas pessoas chamam de virtudes. Virtudes, para quem não sabe, são valores universais e são universais porque fazem bem à todos. Não faz bem só para uma comunidade, grupo ou cultura, mas faz bem para toda a vida.
A Importância da Psiquê e a Universalidade da Ética
Eu sei que valores universais e ética não são temas superficiais e sei que muita gente não aceita bem estas ideias e assuntos; Niilistas e relativistas, por exemplo, negam tais coisas, sejam por serem pessimistas ou derrotistas, ou por estarem sempre pensando em obter mais riquezas materiais e/ ou mais prazeres sensoriais.
Por um outro lado, também nada animador, muitos dos ditos religiosos (os fiéis/ o povo) não se importam ou não entendem o que são valores universais e vivem em rotinas religiosas e/ ou em obediência à determinados líderes religiosos. Líderes religiosos enriquecidos pouco diferem de um mega empresário ou de um agente do estado (seja político, militar ou qualquer outro) corrompido.
Justamente por haver uma priorização do lucro, do dinheiro e da posição social é que a ética fica praticamente de fora das lideranças na sociedade/ economia neoliberal: Desta forma as pessoas em posição de poder econômico, religioso e político de nossa sociedade apresentam uma psiquê nociva às massas, pois viver principalmente para adquirir o máximo de bens materiais, para adquirir poder na sociedade e/ ou para desfrutar o máximo de prazeres sensoriais geralmente não inclui se preocupar com o próximo ou com um futuro a longo prazo e é comportar-se como se houvesse só a realidade "material". Isto parece indicar que em geral, tais pessoas não crêem que a mente exista além do corpo - A maior parte das pessoas em posição de poder devem acreditar na inexistência da alma, de uma realidade espiritual e de Deus e essa premissa da inexistência de vários ou todos elementos espirituais, não significa que todo materialista e/ ou ateísta seja anti ético, mas que a priorização da vida sensorial e material tridimensional (*) acima de todo e qualquer elemento espiritual e/ ou filosófico, interliga-se com a incitação ao imediatismo, à ganância, ao hedonismo e/ ou à indiferença ante aos valores universais como justiça, bondade, equidade etc; Sei que há pesquisas sobre a religiosidade das pessoas pelo mundo e que podem haver muitos religiosos que parecem indiferentes em relação à ética, mas onde há domínio da economia neoliberal de ideologia capitalista, parece que a maioria das pessoas vive como se fossem só o corpo perceptível sensorialmente: sem alma, ou mesmo sem uma mente abstrata (uma mente/ psiquê ou espírito não palpável, sem a possibilidade de ser dividida, decomposta etc), isto porquê há uma fomentação da busca incessante por dinheiro e bens materiais.
Eu dificilmente conseguiria convencer as massas e sequer um materialista, de que a alma existe, mas sei de sua existência por via da experiência própria e também sei que é possível entendê-la por via do diálogo filosófico e sua respectiva construção de conhecimento. Porém ainda não vou me aprofundar em argumentos para explicar filosoficamente a psiquê - o que eu sei é que o uso da inteligência para ganhar rios de dinheiro prejudicando outros não é um bom uso da psiquê, porque esta, seja mente ou alma, não fará uso de fortunas materiais nem sequer se aproveitará de uma vida que prioriza os prazeres mais intensos ou mais corporais.
Neste ponto farei observações mencionando mais a cosmovisão "espiritualista" da realidade, livre de dogmas das religiões e de pressupostos ou paradigmas dominantes na ciência. Mesmo porquê as "experiências psíquicas estranhas ou difíceis" que eu tive, ou são mediúnicas (de acordo com a espiritualidade livre dos dogmas das
religiões) ou são "alucinações" (de acordo com a pré suposição
dominante na ciência atual: materialista, que é também niilista e deduz que a vida é só biológica/
orgânica). E ao escolher uma visão de realidade, obviamente escolho a mais ampla que permite tentar buscar um entendimento mais completo e em diálogo com a ética (que não é palpável nem redutível, mas importantíssimo tema da filosofia).
A mente, ou alma, liga-se ao corpo, mas certamente não é este: não
tem substância perceptível: o que se percebe são os seus efeitos, sejam
eles a atividade racional, sentimental ou emocional. Quando pensamos,
sentimos (etc), é possível monitorar áreas ativadas e desativadas do
nosso sistema nervoso (cérebro, neurônios, dendritos etc) e até mesmo
outras partes do corpo ativadas, como o coração, sistema endócrino etc.
Obviamente os cientificistas, que são reducionistas, materialistas/
niilistas, e, geralmente biologistas, afirmam que tais fenômenos
detectáveis não são efeitos e sim a "mente" em si, ou afirmam que não há
mente e que sentimentos, pensamentos e vários outros elementos
psíquicos são só a atividade eletroquímica do corpo. Primeiramente
isso é um salto da construção de conhecimento (eu diria um salto
epistemológico) porque não prova a inexistência da alma ou da mente
(pressupor inexistências é afirmar conhecer o que não existe... uma
contradição já exemplificada em obras da filosofia, como as de Platão). Em segundo lugar, afirmar que a psiquê humana é só biológica, bem como
afirmar que a realidade é só tridimensional, é mera imposição de uma pré
suposição (pressuposto) reducionista, que exclui cosmovisões,
estabelecendo um paradigma (modelo) de construir conhecimento. Com tal
atitude, nega-se inúmeras culturas e toda espiritualidade (religiões
inclusas) como se estas fossem uma série de casos de alucinações ou de
mentiras. Diga-se de passagem, tal ideologia com tal tipo de afirmação
acaba invalidando, ou no mínimo, inferiorizando, todos relatos de
experiências espirituais, sejam elas místicas, religiosas ou de qualquer
outro nome. Este paradigma e/ ou pressuposto então é um dogma... e onde
ele é mais presente? Na ciência/ no meio científico.
Em
algumas nações como o Brasil, tal pressuposto talvez ainda seja pouco relevante,
mas ele começou a ganhar força nas elites europeias desde a publicação das obras de John Locke (1632-1704), conforme indicado por Robert H. Wozniak em seu livro "Mind and Body - From Descartes to William James" e se estabeleceu como a visão de mundo por trás da ciência durante o positivismo do séc 19. Embora haja razão para que o materialismo seja historicamente relacionado ao filósofo e historiador Karl Marx (1818-1883) - a questão que trago aqui, embora toque a sociologia e a economia, é mais da relação entre psicologia, ciência e filosofia. O materialismo ao que me refiro então é oriundo do empirismo britânico
da época de Locke e Newton e que seguiu rumo ao
positivismo e ao biologismo no século 19 com outros autores como Comte,
Spencer, Malthus etc. Este tipo de pressuposto sobreviveu com altos e baixos em diversas áreas da ciência pelo século 20, adentrando a psicologia nas primeiras décadas de tal século com o crescimento do behaviorismo a partir
dos EUA. Por volta dos anos 50 do séc
20, tal ideologia biologista adquire uma nova força com as descobertas da genética, ambas apoiadas por alguns "filósofos da ciência", incluindo um
membro da Sociedade (neo) liberal de Mont Perelin admirado até mesmo por
alguns anarquistas e sociais democratas que conheci... Tais pré suposições que afirmam que a mente humana é só eletroquímica, por exemplo, parecem ter relação com a separação entre ato sexual e paixão (eros), um tipo de objetificação do ser humano, notada pelo psicólogo Rollo May (1909-1994), em seu livro de 1969, Love and Will. A visão da realidade de que o ser humano é um mero corpo (e seus subsequentes argumentos reducionistas) sobrevive no
"mainstream" da ciência até este início do século 21. Isto não seria um
problema se tal pressuposto não adentrasse a psicologia, submetendo-a às
áreas da medicina como psiquiatria e neurologia... Apesar da sobrevivência no meio acadêmico, essa visão de mundo niilista
fôra uma ideologia criticada após as duas guerras mundiais (cuja a
última acabou em 1945): observações de Jean Gebser (1905-1973) e de
Viktor Frankl (1905-1997) indicam como o niilismo fomentou ideologias
eugenistas como o nazismo**, fomentaram a corrida armamentista e as guerras e fomentaram
a desumanização expressa por torturas e execuções em massa de povos
diferentes. (**Sim, existiram nazistas místicos, mas tal movimento é prioritariamente racista, e, portanto biologista.)
Os pressupostos materialistas oriundos do empirismo e que perpassaram o positivismo, sobrevivendo até os dias de hoje, é uma ideologia reducionista e niilista porque reduz o ser humano a um mero corpo e esteve
ligado com movimentos altamente nocivos da ciência "euro-estadunidense",
como já citei em vários textos meus: Fomentou e propagou ideias como o racismo científico, a drapetomania,
a cranoscopia, o darwinismo social e também incentivou uma "farmacocracia"(psicopatologização do comportamento e sofrimento humanos, crescente indicação e utilização de fármacos e alta lucratividade da indústria farmacêutica). Ou seja, tais pressupostos e sua respectiva visão de mundo reducionista tiveram seus momentos de grande influência na história da humanidade,
principalmente nas ditas "potências econômicas" ou "países de primeiro
mundo" e estiveram ligadas às opressões e genocídios de muitos povos.
Essa
visão de mundo ou pressuposição dialoga muito bem com sistemas econômicos que objetificam o ser humano (como por exemplo os mercantis, liberais e neoliberais - todos de ideologia capitalista) e não é filosófica porque contradiz a raiz
da filosofia ocidental: Platão não só deixava o "pressuposto" da
construção de conhecimento aberto para uma cosmovisão mais ampla
possível, como tinha uma outra pauta (ou ontologia): o bem e/ ou a
melhoria de todas as coisas. Não detalharei aqui a construção de conhecimento de Platão e suas respectivas cosmovisão e aplicabilidade, porque já expliquei em outros textos sobre tal proposta do filósofo ateniense:
https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/09/consideracoes-sobre-platao-e-suas.html ;
https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2025/01/observacoes-sobre-sofista-do-ser.html ;
https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2025/06/por-um-conhecimento-humano.html ;
https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/06/a-filosofia-ocidental-surge-de-um.html Após iniciar minha busca por melhoria psíquica, principalmente ética, eu passei a reparar mais em minha própria mentalidade: sentimentos, sentido e pensamentos... Não é fácil prestar atenção no que faz sentido para nós mesmos e também é difícil notar as próprias contradições. Por exemplo, meus comportamentos anteriores às experiências mediúnicas me pareciam normais ou indignos de nota antes de eu passar pelas dificuldades: eu só comecei a perceber e entender minhas atitudes e mentalidade antiéticas gradualmente enquanto buscava minha espiritualidade que inclui um desenvolvimento ("moral" e) ético.
O processo é contínuo e ainda hoje, ao escrever este texto, enfrento algumas dificuldades. Porém o que me espanta é que há um vasto processo psíquico para se desenvolver nesta "jornada ético-espiritual" - um processo que envolve nossa postura no dia-a-dia em situações sociais e de solidão, nosso modo de observar e julgar situações e pessoas, nossa tolerância, autocontrole, esperança etc.
Sentimentos se misturam com valores e estes últimos podem ser individuais ou universais. Valores individuais são prioridades de cada indivíduo que podem ou não misturar-se com valores universais. Um indivíduo pode priorizar a busca por prazeres em vida ante outras coisas como formar uma carreira profissional ou acadêmica, proteger o meio ambiente, ajudar pessoas em situação de necessidade ou vulnerabilidade etc. Outro indivíduo por exemplo pode priorizar a conquista de um status social, uma posição de poder em um estado ou em uma grande empresa, enquanto outros podem valorizar mais as amizades, a vida afetiva seja com um parceiro, com os filhos ou com os pais etc. Esses valores são tema da psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961) e foram estudados pela óbvia importância na saúde mental das pessoas: elas se relacionam com que um outro autor chama de sentido de vida. Viktor Frankl foi o neuropsiquiatra e filósofo que desenvolveu a logoterapia, tida como uma abordagem existencial/ humanista da psicologia onde o sentido de vida é uma questão central. A ausência desse sentido geralmente está ligada ao vazio existencial ao qual o autor notou que é reforçado por ideologias que desumanizam e/ ou que estimulem um estilo de vida superficial (o niilismo que reduz o ser humano a um mero corpo sem alma, o capitalismo que gera o consumismo etc) e tal vazio gera sofrimento. Os sofrimentos não "tratados" podem vir a se agravar tornando-se transtornos psíquicos, claro que isto não é regra para todos os transtornos, pois alguns tem origens mais biológicas, outros são multicausais etc.
Estes e alguns outros autores da psicologia observaram o ser humano de maneira transdisciplinar: a nível biológico, social, psicológico/ existencial e espiritual. Não há contradição alguma nisto, na verdade são análises do ser humano mais completo, ou ao menos, são uma análise mais dialética e ampla que não exclui nem despreza cosmovisões e visões antropológicas. Estas questões existenciais e espirituais que envolvem valores e até mesmo possíveis simbolismos, mostra a importância da psicologia não se separar da filosofia - mesmo porque o fundador da psicologia moderna, Wilhelm Wundt (1832-1920), não separou este campo de estudo da filosofia, relegando-o exclusivamente à ciência.
Tudo que experimentei influenciou minha forma de pensar, ver a realidade e agir. Isto porque há aprendizado e tudo isto faz parte de minha memória, minha esperança e pode colaborar mais ou menos com meu sentido existencial. Essa atividade mental nem sempre coesa, praticamente não cessa e por isso temos sonhos ao dormir. O corpo repousa porque precisa de descanso, mas a mente segue ativa e o sono foi um dos fatores dos quais me fizeram perceber que sou mais psiquê do que corpo - além de se manter ativa no repouso do corpo, a quantidade de informação e a oscilante, mas contínua experiência de sentimentos faz de minha psiquê algo muito maior e mais complexo do que o corpo. O acúmulo desta atividade psíquica e a formação/ modificação da personalidade via aprendizado (etc) fazem dela, algo de maior importância. Não se trata de negar ou desprezar o corpo, mas de entender suas limitações ante a vastidão de experiências psíquicas.
As experiências que eu tive durante o sono ou repouso de meu corpo são importantes devido ao fato de me provarem como pensamentos, sentimentos e até visões de mundo e questões éticas permanecem ativas mesmo com o corpo exausto, caído e buscando repouso. Explicar em detalhes como elas ocorreram não me parece producente, então segue um resumo: minha psiquê (ou eu mesmo) parecia sair do (meu) corpo, mas eu não percebia espacialidade - O que importa é que nos vários meses que tais experiências ocorreram, eu discutia mentalmente de maneira tão ou mais real do que uma discussão através da verbalização feita por meu corpo; Eu discutia sobre sentimento, ética, visão de realidade e embora eu não enxergasse meus interlocutores, eu identificava alguns deles. É como se a identidade da psiquê não precisasse do corpo e seus respectivos elementos perceptíveis. A psiquê se provou algo que não sucumbe e logo não poderia apodrecer nem morrer. Eu não sei como ou porquê este processo se manifestou, mas esta realidade psíquica me fez entender todo ser humano como "médium": estamos entre uma realidade corporal/ espacial/ tridimensional e uma psíquica mais profunda e verdadeira - certamente o que o espiritismo e variadas religiões chamariam de realidade espiritual.
Saúde Mental é questão Filosófica também
A saúde mental então não é importante só porque o sofrimento emocional e a dor psíquica são invisíveis e mais difíceis de ser compreendidas do que a dor física/ corporal: Ela é importante porque a psiquê existe, pois temos pensamento e sentimento independentemente de nossos sentidos; Um cego ou um surdo têm tais "elementos" psíquicos como qualquer outro indivíduo e além disto a saúde mental se refere à psiquê e toda sua profundidade e complexidade; Sentimento é algo central na vida humana e certamente questões existenciais como o sentido de vida também são.
A consciência humana então se dá por variadas perspectivas, sejam elas simbólicas como as tratadas por mitos e por interpretações de sonhos no decorrer da história humana; seja ela mística, através das experiências transcendentais ou mediúnicas; Ou seja ela racional, ao tentar explicar e entender toda a realidade, seja em nosso entorno ou em nós mesmos - nas questões psíquicas profundas mencionadas no decorrer deste texto por exemplo.
Estas perspectivas, apresentadas pelo filósofo Jean Gebser através de uma interessante análise historiográfica da arte (e da consciência humana) em seu livro The Ever-Present Origin, não são necessariamente contraditórias entre si. Elas podem dialogar entre si, desde que trabalhadas e alicerçadas na ética e em seus valores universais que visam o bem para todos; mesmo porque contrariar isto, é escolher segregação - invalidar relatos de determinados indivíduos, culturas e povos. A verdade não está num ponto do espaço nem em determinada ideologia ou reunião de pessoas - ela é inseparável da ética, pois é um valor universal. É inseparável do bem, do amor, da justiça e da equidade.
Assim, a construção de conhecimento deve levar em consideração também as perspectivas místicas e míticas, mas se nos prendermos meramente a elas ou se permanecermos nela como base para discussões, certamente teremos algo como uma prática espiritual ou religião - por isso a importância de utilizarmos a perspectiva racional para buscar entender e propagar entendimento - esta busca racional porém não deve menosprezar as demais perspectivas e sim deve somar-se a elas sem imposições e hierarquizações; este parece ser o desafio de uma nova construção de conhecimento ética. Esta talvez seja a construção de conhecimento de uma perspectiva integral ou "aperspectiva" - não é neutralidade pela neutralidade e sim universalidade de uma base imutável, plena, similar à proposta de filosofia feita por Platão há séculos.
Sobre os relatos espirituais e a necessidade de explicá-los
Mas porque tentar explicar experiências espirituais? Elas não são individuais? A resposta é sim e não: São individuais porque cada pessoa tem determinados tipos de experiência e encontra seu próprio caminho no seu próprio ritmo para viver uma espiritualidade. Porém tais experiências também são coletivas no sentido de que muitas pessoas que as têm podem apresentar elementos em comum. É aqui que é importante notar que eu conheci casos de pessoas (além de mim mesmo) que passaram por experiências espirituais difíceis ou ruins e tiveram alguma dificuldade em conseguir ajuda!
A 1ª pessoa que conheci a passar por tal situação, frequentava meios religiosos e místicos - em um destes ambientes teve uma experiência muito difícil que passou a gerar-lhe sofrimento constante. Em seu meio religioso, ela entendeu que não conseguiria resolver a situação e recorreu às áreas de saúde mental: psicologia e psiquiatria. Até aqui faz sentido, pois se não foi encontrada uma solução ou melhoria em determinado meio, busca-se em outro... porém neste caso os resultados não foram promissores. O tratamento psicológico não abordava o aspecto espiritual de seu problema, como se esse não tivesse relação alguma com suas visões (possivelmente consideradas alucinações) e subsequentes dificuldades emocionais/ comportamentais. Isto não é inesperado, já que questões espirituais e/ ou religiosas são um tabu na psicologia: há o risco de profissionais não saberem lidar com tal tipo de caso e acabarem impondo sua visão de mundo sobre o paciente, seja esta de uma determinada religião, ou seja esta uma visão materialista e/ ou niilista que invalide ou menospreze os relatos do paciente e sua respectiva cultura/ cosmovisão. O tratamento psiquiátrico então, se limitou ao medicamentoso, numa óbvia tentativa de combater "alucinações" e ansiedade. Por quase 3 anos que mantive contato com esta pessoa, ela mostrou sofrimento psicoemocional, sem mostrar progresso algum com os tratamentos. Ela admitiu a provável origem espiritual de seu problema/ sofrimento e depois voltou atrás, insistindo que não conseguiria resolver tal questão por uma via que não fosse a psicofármaca.
O 2º caso foi de um colega frequentador de um ashram ("templo" de sanatana dharma). Ele fez um relato completo de experiências espirituais que lhe causaram grande sofrimento e dificuldades. Tais relatos eram muito semelhantes às experiências que eu tive, mas eu entendi as minhas como espirituais por perceber fatores inteligentes por trás delas, enquanto o colega afirmou não crer em demônios (nisto também não creio) nem em espíritos que fazem algum mal. Ele seguiu seu relato explicando que fez meses de tratamento psiquiátrico medicamentoso e durante este período não obteve melhora. O colega terminou o relato contando que buscou outras vertentes do sanatana dharma até começar notar uma melhora de sua situação através de uma prática/ vida espiritualizada.
O 3º caso na verdade são dois casos do mesmo tipo: Um paciente meu durante o ano de 2024 e um outro caso que foi noticiado em certas mídias, de uma mulher umbandista vítima de violência em uma comunidade terapêutica administrada por evangélicos. Este caso noticiado eu não detalharei aqui, mas meu (ex) paciente relatou ter possíveis experiências espirituais principalmente em 2 momentos de sua vida: Primeiramente durante sua juventude quando perdeu a mãe; Ele afirmou que em tal época teve experiências de contato espiritual com a mãe recém falecida e que apesar de ter cogitado frequentar o candomblé devido a afinidade que sentia por tal religião, encontrou a solução para seus problemas naquela época com um pastor evangélico. O pastor, sem pedir nada em troca, teria dado conselhos espirituais para ele, que lhe ajudaram a lidar com a situação que envolvia desde luto até um sofrimento psicoemocional e existencial. Porém em outros momentos de sua vida, o paciente teve experiências similares mas não tinha certeza se eram espirituais ou alucinatórias - isto porque passou a fazer o uso de substâncias psicoativas. Neste período tentou se internar em uma comunidade terapêutica e se arrependeu - disse que saiu pior do que entrou devido às violências que sofreu lá dentro.
O último caso é de um jovem que conheci seguindo páginas de Luta Antimanicomial. O rapaz tem alguns vídeos na internet explicando como foi mal tratado em hospitais psiquiátricos que são referência de seu estado. Os relatos de suas experiências foram invalidados pelos médicos e ele foi intimidado a tomar os remédios psiquiátricos sem questionar os efeitos colaterais durante suas internações. Ele explica que foi resolvendo seus problemas lentamente com a leitura de variados autores desde a psicologia analítica até obras de auto ajuda e de espiritualidade. Um dos passos para a melhoria do rapaz ocorreu quando ele decidiu responder/ dialogar com a "voz" que ouviu por um determinado período - voz esta que obviamente era considerada alucinação pelos médicos e familiares dele. Por fim, ele não se considera totalmente "curado", nem abandonou todos tratamentos de saúde mental recusando todos os diagnósticos que recebeu, mas aponta as contradições de alguns deles.
Eu não sei se há um estudo significante sobre pessoas que passam por tais tipos de experiência e como eles buscam lidar com elas. Imagino que não exista tal estudo devido ao fato do meio "acadêmico" se apoiar em pressupostos predominantemente materialistas como mencionei anteriormente.
É partindo destes problemas que eu vejo a necessidade de se discutir a construção de conhecimento e sua relação com as experiências ou relatos de teor espiritual:
Há uma suposta "religião" ou espiritualidade surgida no século 19 que não possuía hierarquia e tinha um número pequeno de dogmas e estes dogmas pouco interferiam na investigação e na pesquisa de temas mundanos - não tinha nada do que as típicas religiões dominantes tinham, como afirmações anti científicas ou conservadoras (tradicionalistas) de que o corpo era sagrado, por isso não deveria permitir autópsias, vacinas, tatuagens etc etc... O espiritismo surgido na França também não era formado de centros espíritas onde se davam passes (não sou contra isto), seguidos por cantorias e/ ou palestras. O professor e tradutor francês, Hippolyte Léon D. Rivail (1804-1869), que assumira o pseudônimo de Allan Kardec, propôs estudar os relatos que envolviam fenômenos de teor espiritual, portanto o espiritismo surgiu não como uma religião, e sim como um tipo de intermediário entre a espiritualidade e a ciência. E sendo tal intermediário, inevitavelmente o espiritismo toca a filosofia não como conhecemos hoje após sua segmentação iniciada no final do séc 19 e propagada através do séc 20, mas como uma construção de conhecimento mais próxima da filosofia apresentada por Platão muitos séculos antes. Platão indica que o estudo dos corpos/ da matéria é adequado para a produção e manutenção destes (em Sofista), mas em sua busca pelo "uno" (uma universalidade, mas que une todas ideias) e pelo "imutável" (o que não é destruído pela ação do tempo e que possivelmente precede o tempo - ideia discutida em Menon, A República, Timeu e possíveis outros textos), o autor não só chega à ética (as virtudes/ excelências), mas também indica a imortalidade da psiquê em textos como: Fedro, Fedon, A República entre outros (o termo psiquê foi usado para tratar tanto da mente humana lidando com o mundo, como para a alma que transcende o corpo, como se fossem a mesma coisa).
Seguindo esta ideia de dar abertura a tais relatos e investigá-los em uma construção de conhecimento com pressupostos (pré suposições) mais abrangentes do que os biologistas, materialistas, niilistas e afins, restam poucos autores que realizaram estudos: além de Platão que deu ênfase na ética, só encontrei Kardec que analisou uma série de fenômenos envolvendo temas espirituais (desde objetos se movendo sozinhos até contatos psíquicos com forças imperceptíveis, "mortos" e/ ou espíritos) ocorridos no século retrasado.
Tentar entender tais fenômenos analisando também a obra de Kardec então se faz necessário - isto não é abraçar tudo o que o autor francês do século 19 escreveu, mesmo porque devem haver pontos obsoletos em seus argumentos e limitações de sua época e cultura local. Mas vale notar que o estudioso francês, diferente de supostos médiuns reverenciados no espiritismo brasileiro, buscou construir conhecimento e por isto esforçou-se em seguir regras da ciência de seu tempo e manteve a postura filosófica de suspender pré suposições (de modo similar às propostas de Platão e da fenomenologia de Husserl), de dialogar com equidade (ainda que com as limitações de sua cultura e época) e de analisar criticamente conteúdos da espiritualidade (diferente da aceitação sem questionamentos das obras de médiuns). Por outro lado os romances espíritas posteriores ao espiritismo do séc 19, bem como as palestras de centros espíritas brasileiros, não possuem essa preocupação nem esse rigor, pois são elementos constituintes de uma religião, diferentemente da obra de Kardec. As religiões devem ser respeitadas, mas são opções de modo de vida das pessoas e não devem ser impostas sobre indivíduos e grupos que pensem de modo diferente. Já, analisar os estudos de Kardec sobre fenômenos espirituais, se trata somente de incluir as observações do estudioso como possibilidades na construção de conhecimento - um conhecimento que respeite os relatos sobre experiências humanas. Afinal as ciências humanas não devem desconsiderar relatos humanos só porque eles parecem "místicos" ou "míticos" e a construção de conhecimento é anterior à ciência moderna que começou misturada com a filosofia na renascença italiana com o questionamento da igreja e floresceu no século 19 após o iluminismo europeu, com o surgimento do positivismo e a cunhagem do termo cientista. Isto porque a construção de conhecimento, ou epistemologia, é filosófica: não é meramente ocidental (europeia e estadunidense) nem deve ser separada da ética e portanto, deve ser mantida junta desta, para que tenha universalidade.
Por estas razões, em alguns próximos textos trarei tais análises...
*Claro que poderíamos questionar se faz sentido chamar corpos formados por sub partículas e campos eletromagnéticos de matéria ou questionar se a realidade não é mais do que meramente tridimensional, mas a maioria das pessoas desconhece tais fatos e tantos outros devem fingir que não há uma "quadrimensionalidade" provada pela matemática desde a virada do século 19 ao 20. Não, eu não sei exatamente o que é ou como seria isso - o tempo é a quarta dimensão? Ou o tempo é uno em uma curvatura com o espaço e há uma quarta dimensão além? A ciência reducionista parece ter separado a descoberta matemática da física neste caso, mas é possível que a quadrimensionalidade seja explicável e compreensível via um raciocínio filosófico... e não empiricamente/ corporalmente.
ResponderExcluir