12. ─ Posto que invisível para nós em estado normal, o perispírito não deixa de ser matéria etérea. Em certos casos, o Espírito pode fazê-lo sofrer uma espécie de modificação molecular que o torna visível e até tangível. É assim que se produzem as aparições. Esse fenômeno não é mais extraordinário que o do vapor, que é invisível quando muito rarefeito, e que se torna visível quando condensado. Os Espíritos que se tornam visíveis apresentam-se quase sempre sob a aparência que tinham em vida, pela qual podem ser reconhecidos.
13 ─ É auxiliado por seu perispírito que o Espírito age sobre o seu corpo vivo. É ainda com esse mesmo fluido que ele se manifesta agindo sobre a matéria inerte; que produz os ruídos, o movimento das mesas e de outros objetos que ergue, derruba ou transporta. Esse fenômeno nada tem de surpreendente se considerarmos que entre nós os mais poderosos princípios motores se acham nos fluidos mais rarefeitos e mesmo imponderáveis, como o ar, o vapor e a eletricidade. É igualmente com o auxílio de seu perispírito que o Espírito faz o médium escrever, falar ou desenhar. Não tendo corpo tangível para agir ostensivamente, quando quer manifestar-se, ele se serve do corpo do médium, cujos órgãos ocupa, fazendo-os agir como se fosse seu próprio corpo, e isto pelo eflúvio fluídico que sobre ele derrama.
Sobre a teoria do perispírito abordada nestes tópicos da revista (e de outras obras do autor), mencionei no texto anterior que não se trata de algo gasoso muito menos líquido: o perispírito seria composto de elementos ou energia em um estado muito sutil. É um tema inconclusivo do ponto de vista científico, ou de uma investigação pautada em mensurabilidade, pois apesar do autor especular sobre a possível composição elétrica e magnética do perispírito, em sua época não se conhecia o eletromagnetismo nem os campos eletromagnéticos dos órgãos do corpo. Hoje, no início do século 21, temos poucos estudos que avançaram sobre a relação de campos eletromagnéticos com a biologia: exames como o eletrocardiograma, o eletroencefalograma e a imagem de ressonância magnética foram desenvolvidos na medicina após a descoberta dos campos E.M. do cérebro e do coração, mas teorias sobre a consciência relacionada ao campo eletromagnético do cérebro ainda parecem incipientes ou pouco aceitas no meio científico. E ainda que estudos da relação do campo eletromagnético do cérebro com a consciência ganhem espaço na ciência, não há garantia que a discussão filosófica sobre a relação "mente-corpo" ganhe relevância na construção de conhecimento ocidental, pois ainda é preciso abertura ao diálogo com variadas culturas e como estas percebem/ entendem o ser humano e a realidade. É essencial escutar com equidade relatos de pessoas que passam por experiências entendidas como espirituais, sejam experiências boas ou ruins, particulares ou grupais/ coletivas - e estes relatos, que deveriam adentrar ao menos a psicologia, dificilmente ganham um espaço na construção de conhecimento dominante no ocidente, que é a científica tomada por pressupostos materialistas de metodologia estritamente empírica.
Vale relembrar que já na época de Kardec a ciência estava sendo tomada por um biologismo crescente - Após o positivismo iniciado poucas décadas antes do espiritismo, Charles Darwin (1809-1882) e Alfred R. Wallace (1823-1913) realizaram grandes descobertas na biologia e ideias sobre um ser humano puramente biológico foram espalhadas pelas elites intelectuais do hemisfério norte. O racismo científico já era aceito nas elites europeias pois parte dos intelectuais eram de origem burguesa e a ideia de progresso certamente sofreu influência do mercantilismo desde o século 16 e do liberalismo a partir do século 18. As descobertas sobre a seleção natural e teoria da evolução das espécies do século 19 foram levadas como verdades absolutas por alguns autores que já tentavam reduzir o ser humano ao aspecto biológico. A leitura racial do ser humano já se apoiava nas características biológicas desde os estudos de Carl Linaeus (1707-1778) e se intensificou no século do positivismo. Várias ideias preconceituosas e de viés racista eurocêntrico foram difundidas como se fossem conhecimento durante maior parte do século 19 e algumas chegaram até as duas ou três primeiras décadas do século 20: a localização de todo psiquismo em partes do cérebro (frenologia), a cranoscopia, a drapetomania e o darwinismo social. Kardec então dificilmente escaparia deste viés, e no âmbito do que constitui a relação entre psiquê (espírito neste caso) e corpo, o espiritismo estava dentro dos limites da época.
As comparações utilizadas por Kardec serviam para dar uma ideia ainda imprecisa e que hoje deveríamos ter um pouco mais de recursos para reconstruí-las: o quarto estado da matéria (plasma) por exemplo pode ser considerado mais sutil que o estado gasoso (o ar etc) utilizado na comparação feita por Kardec. O eletromagnetismo mostra a ligação entre eletricidade e magnetismo que era ainda desconhecida naquela época...
14. ─ É pelo mesmo meio que o Espírito age sobre a mesa, quer para movê-la sem objetivo determinado, quer para fazê-la vibrar golpes inteligentes indicando as letras do alfabeto, para formar palavras e frases, fenômeno designado sob o nome de tiptologia. Aí a mesa não passa de um instrumento de que ele se serve, como do lápis para escrever. Dá-lhe uma vitalidade momentânea, pelo fluido com que a penetra, mas não se identifica com ela. As pessoas que, emocionadas, ao verem manifestar-se um ser que lhes é caro, beijam a mesa, praticam um ato ridículo, porque é absolutamente como se beijassem a bengala de que um amigo se serve para vibrar golpes. Dá-se o mesmo com as que dirigem a palavra à mesa, como se o Espírito estivesse encerrado na madeira, ou como se a madeira se tivesse tornado Espírito. Quando ocorrem comunicações por esse meio, é preciso imaginar o Espírito, não mesa, mas ao lado, como ele era em vida, e como ele seria visto se no momento se tornasse visível. O mesmo ocorre nas comunicações pela escrita. Ver-se-ia o Espírito ao lado do médium, dirigindo-lhe a mão, ou lhe transmitindo o pensamento por uma corrente fluídica. Quando a mesa se ergue do solo e flutua no espaço, sem ponto de apoio, o Espírito não a levanta pela força do braço, mas a envolve e a penetra de uma espécie de atmosfera fluídica que neutraliza a ação da gravidade, como faz o ar com os balões e papagaios. O fluido de que é penetrada lhe dá momentaneamente uma leveza específica maior. Quando ela está plantada ao solo, está numa situação análoga à da campânula pneumática, sob a qual se faz o vácuo. Estas são comparações para mostrar a analogia dos efeitos, e não a similitude absoluta das causas. Depois disto, compreende-se que a um Espírito não é mais difícil levantar uma pessoa do que uma mesa; transportar um objeto de um a outro lugar, ou atirá-lo em qualquer parte. Estes fenômenos são produzidos pela mesma lei. Quando a mesa persegue alguém, não é o Espírito que corre, pois pode ficar tranquilamente no mesmo lugar, mas que lhe dá o impulso por uma corrente fluídica com o auxílio da qual a faz mover-se à vontade. Quando os golpes são ouvidos na mesa ou noutro lugar, o Espírito não bate com sua mão, nem com um objeto qualquer. Ele dirige um jato de fluido para o ponto de onde parte o ruído, produzindo o efeito de um choque elétrico. Ele modifica o ruído, como podemos modificar os sons produzidos pelo ar.
15. ─ Por estas poucas palavras pode-se ver que as manifestações espíritas, sejam de que natureza forem, nada têm de sobrenatural ou maravilhoso. São fenômenos que se produzem em virtude da lei que rege as relações entre o mundo visível e o invisível, lei tão natural quanto as da eletricidade, da gravitação, etc. O Espiritismo é a ciência que nos dá a conhecer essa lei, como a mecânica nos dá a conhecer as do movimento e a óptica as da luz. Estando as manifestações espíritas em a Natureza, produziram-se em todas as épocas. A lei que as rege, quando conhecida, explica-nos uma porção de problemas olhados como insolúveis. É a chave de uma porção de fenômenos explorados e amplificados pela superstição.
Seja como tenha ocorrido os fenômenos das mesas girantes no século 19, é impossível ter evidências nos conformes da ciência de pressupostos materialista - O que temos são descrições de diferentes autores e estudiosos observando diferentes casos que aconteceram em variados pontos do "eixo" Europa - América do Norte e as descrições de Kardec parecem ter seriedade e interesse em investigar os fenômenos. Afirmações do tipo "ah, os fenômenos do século 19 envolvendo espiritismo e espiritualismo devem ter sido casos de alucinações coletivas" são generalistas por desconsiderar toda a amplitude e variedade de casos e também são enviesadas nos conformes da pré suposição da inexistência da alma/ de espíritos. Uma construção de conhecimento séria e ética não parte de tal pressuposição excludente e limitante. Kardec então buscou construir conhecimento como pode ser notado no texto da Revista Espírita - o espiritismo não se tratava de uma religião: Admitia que existem coisas desconhecidas, mas não tinha segredos, hierarquia nem liturgias.
16. ─ Afastado completamente o maravilhoso, tais fenômenos nada mais têm que repugne à razão, porque vêm tomar assento ao lado dos outros fenômenos naturais. Nos tempos de ignorância, todos os efeitos cujas causas não eram conhecidas eram reputados sobrenaturais. As descobertas científicas foram restringindo continuamente o círculo do maravilhoso. O conhecimento desta nova lei vem reduzi-lo a nada. Assim, os que acusam o Espiritismo de ressuscitar o maravilhoso, provam, por isto mesmo, que falam do que não conhecem.
Neste parágrafo Kardec mostra que buscava extinguir o conceito de sobrenatural, afinal o espiritismo visava explicar toda (um)a série de fenômenos, dos quais as religiões se apropriam e os cientistas simplesmente os negam. Neste ponto entendo que Kardec tentou algo muito à frente de seu tempo - porém não era uma construção de conhecimento com universalidade, devido a estar limitada ao contexto da Europa positivista; Kardec, bem como a maioria esmagadora (ou totalidade) dos pensadores europeus do século 19, não percebia como a ciência não era só uma busca pela verdade, mas era também uma maneira de determinar o que era a verdade. O discurso de "restringir continuamente o círculo do maravilhoso" está relacionado a elevação da ciência (de origem europeia ocidental) como superior aos demais saberes. Sua separação da filosofia ocorrida por volta da primeira metade do século 19 consolidou este fato: A ciência passava oficialmente a menosprezar campos relegados à filosofia e a investigar só os fenômenos naturais com (suposta) "neutralidade" o que incluía tudo o que era perceptível no mundo e no espaço; Desta forma a filosofia ficava somente incumbida a discutir ética, ontologia, teleologia e epistemologia como se tais assuntos fossem separáveis da ciência ou irrelevantes para esta última. Claro que haviam cientistas humildes e/ ou éticos, mas muitas das ideias aceitas na ciência da época de Kardec eram racistas e elitistas e tal fato é indissociável dos pressupostos materialistas que encontraram a desculpa perfeita no biologismo pós Darwin. Como citei anteriormente, a elite intelectual certamente era em grande parte de origem burguesa desde a época de Locke, Newton e Voltaire - época esta onde o empirismo foi determinado como o meio superior de se construir conhecimento na Europa. Quando Kardec realizou suas investigações, os sistemas públicos de educação eram incipientes (a construção de conhecimento ainda era predominantemente burguesa) e além do domínio do empirismo, já haviam sido consolidadas na filosofia natural (ciência) as ideias de 4 raças humanas propagadas por Lineu, o positivismo com a hierarquização de áreas de estudo de Comte, o racismo científico entre outras ideias nada universais, ou seja, nada éticas (antiéticas).
Apesar disto, tais limitações seja na ciência ou no espiritismo de Kardec, são passíveis de uma revisão pautada por valores universais: incluir valores universais na construção de conhecimento é uma tarefa da filosofia, portanto a ciência por si só, principalmente a de pressupostos materialistas/ empiristas não é capaz de aplicar a ética e o diálogo horizontal (equidade) na busca pela verdade. Para desmistificar todo tema espiritual, não basta a racionalidade ou a mensurabilidade - é preciso intenção e postura éticas, eis o porquê existem movimentos para descolonizar não só a ciência, mas a epistemologia - a filosofia, a espiritualidade e a construção de conhecimento em geral. Hoje temos autores que defendem as cosmovisões indígenas e da África "subsaariana" que foram quase apagadas por um "epistemicídio", bem como temos espíritas progressistas que realizam uma historiografia do espiritismo criticando e refutando o racismo e outras posturas preconceituosas e obscurantistas dentro do movimento.
17. ─ Uma ideia mais ou menos geral entre pessoas que não conhecem o Espiritismo é crer que os Espíritos, apenas porque são desprendidos da matéria, devem saber tudo e possuir a sabedoria suprema. Isto é um erro grave. Deixando seu envoltório corporal, não se despojam imediatamente de suas imperfeições. Só com o tempo se depuram e se melhoram. Sendo os Espíritos as almas dos homens, como há homens de todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e de maldade, o mesmo acontece entre os Espíritos. Entre eles, há aqueles que são apenas levianos e brincalhões; outros que são mentirosos, trapaceiros, hipócritas, maus e vingativos; e outros, ao contrário, que possuem as mais sublimes virtudes e o saber em grau desconhecido na Terra. Essa diversidade na qualidade dos Espíritos é um dos mais importantes pontos a considerar, pois explica a natureza boa ou má das comunicações que se recebe. É preciso aplicar-se em distingui-las. Disto resulta que não basta dirigir-se a um Espírito qualquer para ter uma resposta justa para cada pergunta, porque o Espírito responderá conforme o que sabe, e muitas vezes dará apenas sua opinião pessoal, que pode estar certa ou errada. Se ele for prudente, confessará sua ignorância sobre o que não sabe; se for leviano ou mentiroso, responderá a tudo, sem se preocupar com a verdade; se for orgulhoso, dará sua ideia como verdade absoluta. É por isto que São João, o evangelista, diz: “Não creiais em todo o Espírito, mas experimentai se os Espíritos são de Deus.” A experiência prova a sabedoria deste conselho. Haveria, pois, imprudência e leviandade em aceitar sem controle tudo o que vem dos Espíritos. Os Espíritos só podem responder sobre o que sabem e, além do mais, sobre o que lhes é permitido responder, porque há coisas que eles não devem revelar, porque ainda não é dado ao homem tudo conhecer.
Kardec sabia da importância da ética não só na construção de conhecimento mas também na espiritualidade. Todos precisam despertar e viver os valores universais (que constituem a ética) e por isto ele indica que existem muitos espíritos imperfeitos.
A necessidade de se distinguir as comunicações espirituais boas e ruins, não é exatamente uma novidade na história da humanidade: Platão aborda parte dela no diálogo Ion, onde ele mostra seu mestre Sócrates ensinando a importância de se estudar os temas que se trabalha (no caso, a poesia) e não depender somente de inspiração "divina/ daimônica"*.
*Daimonica refere-se à palavra grega daemon, que pode ser traduzida como espírito, gênio ou semi deus. Não é consenso se tem relação com o conceito cristão posterior de demônio, pois este último pode ter surgido da união das palavras demos (povo) e onios (medo). Se houver relação, é possível que a igreja tentou difamar o conceito de daemon, já que Platão apresenta uma cosmovisão diferente da instituição religiosa.
Este espiritismo francês do século 19 então se mostrou diferente do movimento espírita posterior dominante no Brasil - no país sul americano, desde o século 20, aceita-se obras de alguns médiuns de maneira inquestionável, como se fossem verdades absolutas e sagradas, pouco diferindo de dogmas.
18. ─ A qualidade dos Espíritos é reconhecida pela linguagem. A dos Espíritos realmente bons e superiores é sempre digna, nobre, lógica, isenta de toda trivialidade, puerilidade ou contradição; respira sabedoria, benevolência e modéstia; é concisa e sem palavras inúteis. A dos Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos carece dessas qualidades; o vazio das ideias aí é quase sempre compensado pela abundância de palavras.
19. ─ Outro ponto a considerar, igualmente essencial, é que os Espíritos são livres. Eles se comunicam quando querem e com quem lhes convém, e também quando podem, pois têm as suas ocupações. Eles não estão às ordens e ao capricho de quem quer que seja, e a ninguém é dado fazê-los virem contra a sua vontade, nem lhes fazer dizer o que não querem, de sorte que ninguém pode afirmar que um certo Espírito virá a seu apelo em determinado momento ou responderá a esta ou àquela pergunta. Dizer o contrário é provar a absoluta ignorância dos princípios mais elementares do Espiritismo. Só o charlatanismo tem fontes infalíveis.
Kardec tenta traçar parâmetros para se reconhecer as boas mensagens ou boas inspirações espirituais. De fato a linguagem é um fator importante na vida humana, então quanto menos contraditória e mais alicerçada em valores universais, mais ética e mais verdadeira a mensagem. Uma linguagem ofensiva bem como uma complexidade exagerada na utilização de palavras, certamente não são sinais de universalidade nem de preocupação com o bem coletivo...
Além disto, os espíritos sendo seres existentes em uma realidade para além da meramente material/ tridimensional, não podem ser constantemente monitorados ou controlados. Neste ponto, Kardec não só desmonta argumentos de espiritualistas charlatães que poderiam vir a alegar ter domínio sobre os espíritos ou sobre temas espirituais e até divinos, mas também abala a ideia de que o conhecimento superior o universal dependa da reprodutibilidade típica da ciência "mainstream". Isto porque, apesar de Kardec não discutir como a realidade espiritual poderia ser adimensional ou estar para além do mero espaço tridimensional (mencionei no texto anterior sobre a descoberta matemática do conceito de quarta dimensão), é óbvio que a ciência de viés positivista se limita a investigação empírica (sensorial) de pressupostos materialistas (parte da suposição de que não há nada além da matéria perceptível e do espaço tridimensional). Este método de investigação dominante na ciência, juntamente com sua pré suposição, desde o século 19 não é capaz de aceitar a possibilidade de que a psiquê sobreviva após a morte do corpo, nem de que haja algo relevante além do espaço tridimensional e por isso crê que somente o reprodutível é verdadeiro ou importante.
20. ─ Os Espíritos são atraídos pela simpatia, pela similitude dos gostos e dos caracteres e pela intenção que faz desejada a sua presença. Os Espíritos superiores não vão a reuniões fúteis, do mesmo modo que um cientista da Terra não iria a uma reunião de jovens estúrdios. Diz o simples bom-senso que não pode ser de outro modo; ou, se por vezes aí vão, é para dar um conselho salutar, combater os vícios, tentar reconduzir ao bom caminho. Se não forem escutados, retiram-se. Seria fazer uma ideia completamente falsa pensar que Espíritos sérios se comprazem em responder a futilidades, a perguntas ociosas, que nem provam interesse nem respeito por eles, nem real desejo de instruir-se e, ainda menos, que possam vir dar espetáculo para divertir curiosos. Se não o fizeram em vida, não farão depois de mortos.
Embora possa parecer que o autor, ao falar da simpatia entre espíritos, da comparação com o cientista e de se combater "vícios", abordou diferentes temas aqui, trata-se da relação entre bons sentimentos, raciocínio e interesse pelo conhecimento e ética! Esta lógica mais uma vez é condizente com a filosofia de Platão (e certamente com outras também), pois demonstra para a construção de conhecimento, a importância de aspectos psíquicos e existenciais centrados na universalidade, na justiça e no bem, enfim valores universais/ éticos.
21. ─ Do que precede resulta que toda reunião espírita, para ser proveitosa, deve, como primeira condição, ser séria e recolhida; que aí tudo deve passar-se respeitosamente, religiosamente, com dignidade, se se quiser obter o concurso habitual dos bons Espíritos. É preciso não esquecer que se esses mesmos Espíritos aí se tivessem apresentado quando vivos, teriam tido por eles considerações às quais têm ainda mais direito depois de mortos. Em vão alegam a necessidade de certas experiências curiosas, frívolas e divertidas para convencer os incrédulos: o que acontece é de resultado negativo. O incrédulo, já inclinado a troçar das mais sagradas crenças, não pode ver uma coisa séria naquilo de que fazem pilhérias; não pode ser levado a respeitar aquilo que lhe não é apresentado de modo respeitável. Assim, reuniões fúteis e levianas, dessas onde não há ordem nem seriedade nem recolhimento, ele sempre leva uma impressão má. O que pode convencê-lo é, sobretudo, a prova da presença de seres cuja memória lhe é cara. É diante de suas palavras graves e solenes, diante de revelações íntimas que o vemos empalidecer e comover-se. Mas, pelo próprio fato de que há mais respeito, veneração e apego à pessoa cuja alma se lhe apresenta, ele fica chocado de vê-la vir a uma assembleia irreverente, entre mesas que dançam e chocarrices de Espíritos levianos. Por mais incrédulo que ele seja, sua consciência repele essa aliança entre o sério e o frívolo, entre o religioso e o profano, razão por que taxa tudo de palhaçada, e por vezes sai menos convencido do que quando entrou. As reuniões desse gênero sempre fazem mais mal do que bem, porque afastam da doutrina mais gente do que atraem, sem contar que oferecem o flanco à crítica dos detratores, que aí acham fundados motivos para troça.
22. ─ É um erro transformar as manifestações físicas em divertimento. Se elas não têm a importância do ensino filosófico, têm sua utilidade do ponto de vista dos fenômenos, porque são o á-bê-cê da ciência da qual deram a chave. Posto que hoje menos necessárias, ainda ajudam na convicção de certas pessoas. Mas não excluem, absolutamente, a ordem e a compostura nas reuniões onde se fazem experiências com elas. Se fossem sempre praticadas de maneira conveniente, convenceriam mais facilmente e, sob todos os aspectos, produziriam resultados muito melhores.
Eis um desafio para a prática espírita: Kardec propõe que ela não seja superficial e sim que seja profunda e bem intencionada. As práticas devem não somente se pautarem em valores universais, mas também exigem certa concentração, sinceridade na postura e intenção ética. O recolhimento citado pelo autor é uma palavra certamente usada na Europa ocidental ao menos desde a renascença. Ela parece se referir a um estado similar à meditação, que é mais comum nas culturas orientais e se refere a uma prática em grande parte da espiritualidade ou da religiosidade. Aquietar a mente, buscar o silêncio, o autocontrole etc... São fatores importantes não só para a pessoa pausar ou buscar uma saúde mental dentro de uma civilização dominada por um sistema econômico mercantil e uma ideologia capitalista - Na verdade, é um distanciamento de tal superficialidade e objetificação do ser humano, pois é cuidar do sentido existencial, de um nível mais profundo relacionado à psiquê, e a possibilidade da transcendência: este último um elemento da espiritualidade e da religiosidade.
Certamente praticar as reuniões espíritas da maneira que Kardec propôs traz semelhanças a alguns ensinamentos de Jesus e de mestres/ yogues do sanatana dharma. Salvo as possíveis diferenças teológicas ou filosóficas entre espiritismo e espiritualidade "hindu", ambas trabalham a existência para além da pressuposição materialista e reducionista e requerem por parte de seus praticantes uma combinação de empenho, postura humilde, objetivos solidários e de progresso espiritual; Progresso esse que seus frutos podem ser percebidos não só em um despertar da moral de indivíduos, pois em algum nível é ético (uma moral sem ética tende ao moralismo) e social, colaborando com a formação de sociedades mais justas, equitativas nas esferas ideológica e material.
23. ─ Sem dúvida estas explicações são muito incompletas e necessariamente podem provocar numerosas perguntas, mas não se deve perder de vista que isto não é um curso de Espiritismo. Tais quais são, bastam para mostrar a base sobre a qual ele repousa, o caráter das manifestações e o grau de confiança que podem inspirar, conforme as circunstâncias. Quanto à utilidade das manifestações, ela é imensa, por suas consequências. Entretanto, ainda que só tivessem como resultado dar a conhecer uma nova lei da Natureza e demonstrar materialmente a existência da alma e a sua imortalidade, já seria muito, porque seria uma larga via aberta à filosofia.
Como diz o próprio autor, muitas dúvidas (e questionamentos) podem surgir em relação ao espiritismo, mas vale ressaltar que ele reconhecia uma importância em construir um conhecimento aberto à filosofia. Isto porque a filosofia ocidental por exemplo, desde sua origem no século 4 a.C. com Platão que reuniu várias teorias anteriores em um corpo de obras coeso, trabalha a construção de conhecimento com universalidade, ética e um rigor, ainda que este último elemento seja bem diferente do rigor da ciência que se espalhou do século 19 em diante. Embora a ética platônica possa ser percebida em maior parte dos textos do filósofo, o rigor da construção de conhecimento proposta por Platão pode ser entendido melhor nas obras A República, Crátilo, Teeteto, e, principalmente em Sofista e Parmênides.
A obra de Kardec então não traz uma verdade absoluta e nem é charlatanismo, pois não visa trazer poder ou bens materiais ao autor e seus colegas, prejudicando outrem. O espiritismo francês durante o século 19 se mostrou uma investigação aberta ao diálogo entre ciência e espiritualidade e com algum grau de inter religiosidade. Teve suas imprecisões e limitações? Certamente, mas colaborou com uma visão mais ampla do ser humano do que a proposta pelo materialismo e com uma cosmovisão que possibilita uma construção de conhecimento mais abrangente e menos excludente.
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