Prelúdio: Discursos Contraditórios e Manipuladores nas Religiões
Para abordar um problema possivelmente complexo envolvendo "individualidade e coletividade", começarei com o típico conflito entre religião e ciência.
Na "revista espírita/ jornal de estudos psicológicos" de maio de 1862, O fundador do espiritismo, Allan Kardec, (recebeu e) publicou a seguinte carta de autoria de um indivíduo que se identificou como "Gauzy":
"Li com muita desconfiança, direi mesmo com o sentimento de incredulidade, vossas primeiras publicações sobre o Espiritismo. Mais tarde as reli com enorme atenção, bem como as vossas outras publicações, à medida que apareciam.
Devo dizer sem preâmbulo que eu pertencia à escola materialista, porque de todas as seitas filosóficas ou religiosas era a mais tolerante e a única que não tomava armas para a defesa de um Deus que disse pela boca do Mestre: “Os homens provarão ser meus discípulos amando-se uns aos outros”. Depois, porque a maioria dos guias que tem a Sociedade para inculcar nos espíritos jovens as ideias de moral e de religião, pareciam mais determinados a lançar o pavor nas almas do que ensinar-lhes a bem se conduzirem e a esperar uma recompensa aos seus sacrifícios e uma compensação às suas aflições.
Assim, os materialistas de todas as épocas, e principalmente os filósofos do século passado, a maioria dos quais ilustram as Artes e as Ciências, aumentaram o número de seus prosélitos, à medida que a instrução emancipava as criaturas. Preferiu-se o nada aos suplícios eternos.
É natural que o infeliz compare. Se a comparação lhe for desvantajosa, ele duvidará de tudo. Com efeito, quando vemos o vício na opulência e a virtude na miséria, se não termos uma doutrina raciocinada e provada pelos fatos, o desespero apodera-se da alma, perguntamos o que é que se ganha em ser virtuoso, e atribuímos os escrúpulos da consciência aos preconceitos e aos erros de uma primeira educação." (...)
O correspondente continua explicando que aceitou o espiritismo porque este procura explicar fenômenos sem as contradições absurdas e as condenações tão comuns no meio religioso.
Aqui não vou avaliar as qualidades ou defeitos do espiritismo. O fato mais importante da carta de Gauzy é mostrar que muitas pessoas deixaram o cristianismo na Europa dos séculos 18 e 19 por causa de certas contradições na igreja. Estas contradições obviamente são propagadas por pessoas em posição de poder dentro do meio religioso - não se trata de uma propagação feita pelo povo, nem pelas massas dos fiéis.
A religião/ a espiritualidade geralmente faz parte de uma "visão de mundo", de uma cosmovisão que toda pessoa tem. Isto pode ser notado na história - Cada cultura da humanidade tem uma visão de mundo diferente entre si porque o ser humano se organiza em sociedade/ em coletivos, e cada indivíduo é afetado por esta, mas pode alterá-la com suas próprias interpretações devido suas experiências particulares.
Contradizer os ensinamentos de amor e piedade propagados por Jesus, defendendo a utilização de armas, e portanto, de violência, pode ser feita por qualquer indivíduo interesseiro, mas quem espalhou tal tipo de mentira por séculos? Os chefes das igrejas (bispos etc) fazem isto no mínimo desde a Idade das Trevas (séc 5...)
Propagar medo através de discursos de penas eternas, inferno e coisas similares é ato de quem nas religiões? Isto é realmente diferente de um discurso condenatório ou limitador? Quem ao invés de propagar a partilha do alimento, a solidariedade, a piedade, o amor, a humildade, prefere deixar os cristãos amedrontados? Eles novamente: os líderes, os religiosos em posição hierárquica, no mínimo, em posição de autoridade sobre os coletivos de fiéis.
Diante tal cenário, as pessoas que buscam viver os ensinamentos de Jesus em algum nível (os cristãos, por exemplo), tem poucas opções: Uma é continuar cristão. Neste caso, ou ele vira um cristão independente de igrejas (algo muito raro durante o século 19, época de Kardec), ou ele contradiz o que entendeu de Jesus Cristo e passa aceitar os absurdos de seu líder corrupto. Outra opção é se afastar, buscar outra "visão de mundo". É aí que se encontrava Gauzy - Diante as contradições apresentadas por líderes picaretas, ele havia se tornado materialista que é praticamente um ateísmo e um abandono da visão de que possa existir algo além da mera vida material. Ele passou a negar tudo que não era perceptível sensorialmente, o que é uma reação intensa que extrapola a religião/ o cristianismo - é uma aversão à TODA religião / espiritualidade, uma visão de mundo reducionista, que nega o desconhecido para os sentidos.
Esta reação exagerada (um "over react") continuou a ocorrer na história da humanidade após o século 19. Cada pessoa pode ter sua cosmovisão ou visão de mundo, mas não é algo ético tentar forçá-la sobre os outros, seja através de ameaças, ou através de métodos mais sutis, como disfarçar sua opinião de alguma forma de conhecimento/ de saber. Utilizar-se de um meio do qual as pessoas esperam alcançar a verdade (ou alguma verdade) para propagar a própria opinião e/ou realizar discursos manipuladores é algo que se espalhou para além da religião já na época desta carta (século 19). E se os discursos/ argumentos mentirosos se propagam, eles podem causar estragos a nível social coletivo das mais variadas maneiras.
160 anos depois ainda temos a propagação de discursos contraditórios e manipuladores
Ano passado (2022) me entregaram um jornal de uma das inúmeras igrejas evangélicas da capital paulista e eu dei uma olhada para ver do que se tratava as matérias.
De fato eu não esperava muita coisa, talvez por preconceito, talvez porque eu tivera uma rápida conversa com um pastor daquela igreja que apareceu em um centro de acolhida que eu visitava regularmente. O que eu vi no jornal foi os seguintes tipos de discurso: Que atualmente as pessoas estão se perdendo em questões externas, que olham muito para o que está acontecendo ao seu redor, ou pelo mundo; Por causa disto, as pessoas não prestam atenção em si mesmas, não dedicam tempo a si mesmas;
Até aqui, há uma verdade (possivelmente vaga) nestes argumentos pouco embasados e pouco conclusivos, porém o seguinte tipo de discurso completava estes dois, mostrando quais eram os "valores" daquela igreja: As pessoas tem que dedicar mais tempo a si mesmas, ou nada muda. Não conseguirão empregos, nem dinheiro, nem os tão sonhados bens básicos que todos querem, como casa e carro...
O que dizer sobre tal tipo de conteúdo? Ensinamento de Jesus Cristo? Certamente não.
Meritocracia? Coach corporativista? Conservadorismo? Sim, um pouco de cada uma destas coisas, ou tudo isto junto. É mais do mesmo: Teologia da Prosperidade, ou seja, praticamente um culto ao "deus" dinheiro, uma ideologia precificadora e desumanizadora que vem crescendo há tempos, principalmente dentro de certas religiões ou espiritualidades.
Esse tipo de discurso asqueroso (feio e nocivo), foi se espalhando na "grande mídia" lá pelos anos 70 ou 80 do século 20 e depois do crescimento das empresas de redes sociais na internet (por volta das duas primeiras décadas deste século 21), obviamente o espalhamento continuou. Nos últimos anos vi este discurso infestar a internet: Grupos de que participei tinham alguns admiradores de religiões orientais (budismo e/ou hinduísmo) que eram "teólogos" da prosperidade. Pregavam que a dificuldade dos outros era karma, mas a de si próprios não. Tentavam manter postura "gratiluz", mas mal superavam seus próprios egoísmos, machismos e outras atitudes nocivas. Um ou outro destes indivíduos que se abria ao diálogo começava a entender a realidade e se corrigir, mas tantos outros se fechavam em suas ideias individualistas. Deixando de lado os ateus de direita e falando só dos religiosos e "espiritualistas", eu vi o mesmo tipo de postura entre espíritas, umbandistas (!) e claro, entre católicos e crentes (evangélicos/ "protestantes"). Mais surpreendentemente encontrei pessoas que (supostamente) admiravam a filosofia de Sócrates e Platão e discursavam argumentos neoliberais/ capitalistas/ de direita... Estes não entenderam nada de Górgias, da Apologia de Sócrates, de Filebos nem da República...
Por fim, defensores deste tipo de discurso hipócrita e alienado não se limitam às religiões e filosofias, pois se espalharam, invadindo também as ciências. Seguem dois exemplos distintos entre si nas ciências: Olavistas (místicos conservadores e fascistas) distorcendo a teoria (e certamente a prática também) da logoterapia e materialistas utilitários na neurologia e na neuropsicologia, negando a existência da mente (consequentemente da alma também, é claro) e classificando sentimentos e sentido de vida como ilusões, tolices ou ingenuidades... O 1º caso é fácil de ser identificado como pseudociência, ao menos entre pessoas com algum estudo. Já o 2º caso eu tratei em outros textos e é bem mais complicado: Isto porque tal caso está enraizado na ciência tradicional, ou, em outros termos, é uma mera visão de mundo/ opinião vendida como verdade e como pressuposto filosófico no "mainstream" da ciência.
Mas o que há de errado em se posicionar como neoliberal, ou "à direita na política"?
Basicamente é a idolatria da ganância e propagação do egoísmo, mas isto eu também já devo ter explicado em outros textos e não vou detalhar mais aqui.
Referente a "esquerda política" o erro mais comum é propagar o materialismo como verdade absoluta - um reducionismo que acaba servindo grandes líderes da direita que obviamente defendem não só uma "filosofia" (visão de mundo), como também um estilo de vida... materialista.
Porém a questão é mais do que social, política e econômica: Ela não é só coletiva, mas um problema dos indivíduos também; é uma questão psicológica e ética! E sendo ética, é também uma questão filosófica, metafísica e até espiritualista/ religiosa!
Individualidade e Coletividade
Alegar que a pessoa não olha para si mesmo é uma afirmação parcial e incompleta. Deve-se questionar, olhar para si mesmo em busca de quê? De se tornar compreensivo? Tolerante, solidário, humilde? Buscar uma postura ética de valores universais que se aplicam a si mesmo e a todos os outros? Isto seria bom, e é o que pregaram, ao longo da história da humanidade, certas espiritualidades e líderes espirituais como (Santa) Teresa d'Ávila, Lahiri Mahasaya, Yogananda entre tantos outros.
Porém o que os religiosos do jornal mencionado neste texto (similarmente a outros indivíduos neoliberais/ individualistas) pregam é a busca pelo sucesso material (financeiro, status etc) deixando de lado questões sociais. Parando de olhar os problemas no entorno, na sociedade, a nível coletivo. É um discurso antissocial e anti político que favorece a busca descontrolada por riquezas materiais e portanto de prazeres materiais etc. É um individualismo disfarçado de individualidade, que fomenta a ignorância política, a conveniência com o "cada um por si e ninguém por todos". Não tem nada do Deus que Jesus nos ensina neste discurso...
Seja de um ponto de vista religioso, filosófico ou científico, cada indivíduo precisa aprender a viver em sociedade. Ele pode tirar o quanto de tempo for em retiro ou isolamento e isto pode lhe fazer algum bem. Mas destes 3 pontos de vista ele tem deveres de convívio - ninguém existe só para si mesmo. Tentar omitir ou distorcer isto é uma falácia: para ser forte não é preciso ignorar o meio, muito menos tirar proveito de outros indivíduos ou coletivos. Esta suposta força invocada por coachs, por pastores do deus dinheiro e por mega empresários é vendida como algo mental, como se abandonar a empatia ou contrariar a empatia fosse um sinal de superioridade intelectual ou força de vontade. Porém, na verdade, é o contrário: qualquer indivíduo que sucumbe a desejos de posse ou de prazer, facilmente faz mal ao próximo e não demonstra força de vontade alguma!
Força de vontade é resistir impulsos animalescos, desejos mesquinhos e caminhos fáceis de se dar bem prejudicando outros. É não revidar ofensas banais, mas também é não deixar de denunciar quem prejudica os outros buscando proveito próprio. Esta força de vontade foi atacada em diversos setores da sociedade, particularmente nas áreas do saber, ao menos, desde o início do século passado.
Nas religiões (particularmente nas "cristãs"), temos a propagação da insensibilidade, do conservadorismo da pobreza e da miséria alheia, criticado por alguns poucos movimentos como a teologia da libertação, por exemplo.
Na filosofia e na ciência, tivemos movimentos niilistas e materialistas que atacaram e ainda atacam a espiritualidade e a subjetividade dos indivíduos, como nos mostram por exemplo, Rollo May (no livro Love and Will) e Viktor Frankl (em sua obra Vontade de Sentido).
Com todos estes ataques à empatia e à força de vontade deveríamos entender que para se criticar o que há de errado nas religiões, não é necessário assumir uma postura anti religiosa nem anti espiritualista. Não é a possível existência de espíritos, da imortalidade da alma, nem a presença de uma mente cósmica (Deus) que precisa ser combatida: São os interesses mesquinhos e práticas de extorsão, chantagem e ameaça que devem ser combatidas.
Eles também mostram que a ciência não precisa impor verdades absolutas, emitindo juízos sobre outros saberes. Não são essas coisas que constroem conhecimento, na verdade é bem possível que tais posturas atrasem ou impeçam investigações e descobertas. Construir conhecimento não é coerente com determinismos nem com relativismos: requer buscar melhoria, seja essa melhoria chamada de progresso, de desenvolvimento ou de evolução.
De fato, como indivíduos, durante a maior parte do tempo é difícil fazer algo em prol do coletivo e isto é óbvio. Porém uma sociedade composta por pessoas de mentes (ou almas) empaticamente, eticamente ou espiritualmente bem desenvolvidas não se compraz na miséria de outros. Pessoas éticas, empáticas ou verdadeiramente espirituais/ religiosas não pensam nem agem de maneira mesquinha, buscando cada vez mais riquezas materiais. Não buscam se sobressair sobre os outros, humilhando-os ou oprimindo-os. Pessoas evoluídas moralmente, socialmente ou espiritualmente desejam o bem dos outros à nível coletivo, em outras palavras, desejam o bem da sociedade e da humanidade. Claro que não só materialmente, pois deve-se desejar o bem-estar psíquico dos outros, e, porque não, espiritual também... Mas desejar que os outros desenvolvam-se moralmente ou espiritualmente é algo que requer paciência e esperança, pois não se pode forçar as outras pessoas neste tipo de evolução ou progresso. Esta evolução humana é interdependente: Há progresso material, social e há progresso moral/ ético. Este último está mais ligado à psicologia, à filosofia e à espiritualidade de cada pessoa. A civilização evolui quando os indivíduos evoluem e vice-versa: uma sociedade justa, com boas leis funcionando, com equidade (acesso aos recursos e oportunidade para todos) e diversidade (cultural/ artística, espiritual, religiosa) causa muito menos entraves no progresso dos indivíduos, pois há menos dificuldades, sejam conflitos/ violência ou miséria. Portanto a evolução individual deve servir a coletiva em algum nível, e a coletiva deve servir a individual. Não há espaço para discurso de enriquecimento individual nem de rivalidade (seja competitividade ou intolerância) nesta evolução.