Este texto (que escrevi em 06/2021) começa com relatos autobiográficos. Ao menos neste primeiro momento, o texto não tem pretensão alguma de ser científico (empirista/ racionalista), pois trata de sentimentos e para expressá-los acho útil me afastar de linguagens muito formais ou acadêmicas:
Relatos do Passado
As primeiras lembranças de minha vida são da época em que eu tinha aproximadamente 3 anos de idade: Ir para uma tal de Escolinha da Tia Lia, desenhar em papel de pão (em 1984 não havia saco de pão, ao menos não na Vila Esperança, na capital de SP) e brincar com faquinhas coloridas de plástico no chão da sala. Lembro-me vagamente que eu preferia ficar com minha família ao invés de relacionar-me com outras crianças da escolinha. Também lembro-me vagamente de fazer perguntas aos adultos (minha mãe e talvez a mais alguém) sobre de onde eu vim e sobre a morte, mas não lembro das respostas que obtive.
Aos 4 anos de idade lembro que meus desenhos progrediram: não esqueço que fiz 10 desenhos enumerados e coloridos de paisagens em folhas que pareciam as de um caderno de desenho. Fui elogiado, acho que pela minha mãe e ao menos por um tio meu e fiquei feliz com tais elogios, pois pareciam me incentivar a desenhar mais. Não sei porquê, mas o desenho que mais ficou gravado em minha memória era de um circo rosa-choque (ou vermelho?) e amarelo com algo a mais como um céu azul e nuvens brancas. Durante esta época, minha mãe ensinou-me a rezar, pois ela era bem católica e passamos a ir semanalmente às missas.
Os anos foram passando e me lembro que continuei desenhando bastante, também me lembro de brinquedos e de brincadeiras que não precisavam de brinquedos, como esconde-esconde, pega-pega e interpretar heróis e vilões imaginários junto de meus dois irmãos.
Haviam algumas discórdias, é claro, sobre brinquedos e sobre quem estava certo ou errado nas brincadeiras. Alguns dos mini conflitos eram resolvidos com broncas de minha mãe, outros com chineladas, uma punição coerciva, mas nem tão dolorosa assim, pois obviamente nem chegava a machucar. Broncas, chineladas, palmadas e raros castigos faziam parte da educação, mas nada para se gabar nem para se envergonhar, pois eram medidas corretivas usadas quando as medidas preventivas eram insuficientes. E quais eram as medidas preventivas? O ensino em geral e algumas orientações sobre o que se devia fazer e o que não devia. Não brigar com os irmãozinhos era algo que devia ter sido repetido várias vezes, é claro, afinal a convivência tem seus momentos de dissonância. Mas as orientações, em geral, se limitavam à vida que nossos pais eram capazes de observar. E também eram limitadas de acordo com as experiências que nossos pais tiveram antes de constituir família.
Quando me recordo de minha infância, percebo minha mãe como uma pessoa braba e carinhosa (mais precisamente amorosa). Meu pai era sério, pouco envolvido no ambiente domiciliar, mas trabalhador e responsável (principalmente do ponto de vista econômico, apesar da fama de sovina). Considero que tive uma boa infância: Recebi afeto (principalmente no sentido positivo da palavra) e educação, além disso meus pais me davam a sensação de uma segurança no mínimo razoável.
Mas conforme a adolescência chega, transformações são inevitáveis. A minha foi desagradável em vários aspectos: Tive uma série de problemas intestinais que me atormentaram ao longo dos anos, passei a estudar em escola de período integral (a Escola Técnica Walter Belian, da antiga Antártica, onde meu pai trabalhava), sofri com minha timidez diante o cenário de tosca rivalidade escolar, passei a fazer psicoterapia (bancada pela Antártica) e odiava acordar cedo, fazer o trajeto “casa-escola-casa” (bastante longo na maioria dos anos) e carregar mochila pesada quase todos os dias. Na 5ª e nas duas 6ª séries (repeti de ano) tive mais “inimigos” que amigos. Numa linguagem vulgar: Foi uma bosta. Perdi a fama de menino inteligente de uma vez por todas e só não viciei em vídeo game porque minha mãe estabeleceu horários rígidos para jogar, ao menos até minha 7ª série, se não me engano.
Da 6ª série em diante os hormônios começaram a dominar a molecada da escola que cada vez mais queria se mostrar “adulta”, um comportamento do qual eu praticamente não compartilhava: Eu preferia meus brinquedos e o vídeo game até terminar minha sexta-série e meus jogos (video game e rpg) até terminar a 8ª série. 8ª série que por sinal, era notável o ápice do comportamento “quero ser adulto” nos colegas de escola. Alguns colegas começavam a falar de músicas, de roupas e se enturmar com o sexo oposto, chegando a se encontrar fora do horário de aula. Outros colegas fracassavam miseravelmente em “ser adulto” e buscavam se sentir melhor procurando alguém para humilhar e/ ou provocar.
Encerrando esta época, abandonei a psicoterapia, fui reprovado na prova para continuar na ETWB e estudei 6 meses numa escola pública. Durante estes 6 meses continuei quase que incapacitado pela minha timidez, mas o ambiente escolar era um pouco melhor do que a tão conceituada ETWB.
No fim do semestre passei no concurso (vestibulinho) para fazer o ensino médio-técnico no SENAI (semestral) e finalmente fui resolvendo meus recorrentes problemas intestinais com bastante dificuldade. Candidatas a namoradas não me faltaram, mas continuei só durante todo este período, pois apesar de superar a timidez para falar em público, continuei incapaz em lidar com garotas. Meu desempenho escolar era medíocre, ocorrendo uma melhora significativa apenas em história e geografia.
Durante este período, meus irmãos fizeram novas amizades numa “loja de artigos importados”, onde jogavam role playing game (RPG) e eu acabei apresentado para a turma de jogadores que frequentavam o local, apesar de ter pouco tempo disponível, pois o curso do SENAI era de período integral.
A escola oferecia especialização em 3 segmentos da indústria gráfica: Pré-Impressão, Impressão Offset e Impressão “Roto/Flexo”. Quem tinha as melhores notas escolhia primeiro e eu me lembro que eu peguei a última vaga da pré-impressão. Nada muito útil: O setor estava se digitalizando e eu não tinha os programas de edição gráfica em casa para praticar. Acabei encontrando grandes dificuldades para conseguir emprego, pois além da falta de prática eu não tinha desenvoltura nenhuma para “conquistar” entrevistadores das empresas.
Minha
adolescência se encerrou assim: Passei a frequentar menos as missas,
terminei de estudar em mais uma escola bem conceituada (o SENAI), mas
sem notas impressionantes, sem namorada, e praticamente sem me fixar em
emprego algum. Eu era um fracassado para os intelectualóides
racionalistas (que repetem frases como "você devia estudar engenharia ou
medicina"), para os típicos machistas pró patriarcado (que pregam que
"homi tem que pegá várias muié") e para os meritocratas (do discursinho
"o sucesso só depende de você").
No âmbito familiar passei a ver minha mãe como uma pessoa mais controladora (ainda bastante carinhosa), mas reconheci que ela fazia muito por mim e pelos meus irmãos e que precisava de ajuda com as tarefas domésticas. Já em relação ao meu pai, desgastamos nosso pífio relacionamento, pois depois que ele se aposentou, mais ou menos durante minha transição da ETWB para escola pública, ele se tornou mais amargurado e difícil de lidar. Com meus irmãos o relacionamento continuou bom, passei a escutar as músicas que eles escutavam, mas eu me recusava a sair para beber como eles faziam, pois pensava comigo mesmo que não precisava ficar bêbado para ser feliz (ou algo assim).
A Juventude Adulta
Enquanto eu não conseguia “me colocar no mercado de trabalho”, peguei mais gosto por estudar (variados temas fora das exatas) e desenvolvi meu próprio cenário de RPG.
Eis que a solidão começou a me incomodar profundamente. Senti falta de meus colegas do ensino médio, e meus “amigos do RPG” estavam me parecendo distantes conforme eles saiam para beber com meus irmãos… Então entre 2002 e 2003 decidi começar a beber com eles e (por coincidência ou não) gradualmente tornei-me ateu nos anos seguintes, ao menos, em prática. Mas deixemos o assunto da religiosidade para outra ocasião.
Neste período pensei comigo mesmo: não preciso criar grandes expectativas ao sair ou ao beber, só preciso estar com meus amigos/ irmãos e se possível, me divertir. Até me diverti, apesar das roubadas em que me enfiei algumas vezes e achei curioso o padrão de conversas utilizados pelo meu irmão mais novo e por alguns amigos ao se aproximarem de mulheres: As conversas alternavam entre frágeis exibicionismos e lorotas. É compreensível, uma vez que em uma sociedade predominantemente capitalista, o que se cultua são bens materiais e status, coisas que a maioria deles tinha pouquíssimo ou nada. Alguns deles começaram a namorar e passei a sair com alguns colegas literalmente mais novos (que conheci entre 2004 e 2005). Inicialmente os colegas mais novos me conheceram predominantemente bêbado, mas após alguns meses notaram que eu era muito menos extrovertido enquanto sóbrio, ou seja, tornei-me dependente da bebida em algum nível para socializar.
Estes anos por volta de 2005 e 2012 foram melhores em um conjunto de aspectos gerais: Mantive amizades, estudei mais e fui melhorando minha carreira profissional. Porém houveram dificuldades durante este período: Meu pai faleceu, mais amigos entraram em relacionamento sério e os que já estavam neste tipo de relacionamento, casaram. Esta questão dos relacionamentos não foi nada fora do esperado, na verdade ocorreu tudo nos conformes das regras e costumes sociais. Vendo isto eu finalmente comecei a me esforçar para superar minha timidez com mulheres e após superar comecei a cogitar namorar, mas para isso precisava conhecer mulheres.
Então durante as manifestações de 2013 tive a talvez não tão feliz ideia de me informar sobre política. Houveram alguns pontos interessantes neste processo, como enxergar a relação deste campo com algumas áreas de estudo, principalmente com a geografia, a economia e a sociologia, porém nesta mesma época perdi meu emprego e demorei vários meses para conseguir outro.
Em paralelo decidi ajudar uma amiga que aparentemente tinha se tornado drogadicta há pouco tempo. Foi um período bem difícil, mas de grande aprendizado, durante o qual me interessei pela psicologia. Este meu interesse não aconteceu só pelo fato de ter uma amiga passando por uma situação de drogadição, também surgiu ao ver uma espécie de vazio na mentalidade de variadas pessoas. Este vazio se refere mais aos sentimentos do que a qualquer outra coisa. Lembro-me que nesta época li sobre o os casos de overdose do cantor Chorão, além dos casos de suicídio dos atores Fausto Fanti e Robin Williams…
O que leva as pessoas tão bem sucedidas no sistema social e econômico dominante nos países da América (chame de neoliberalismo ou de capitalismo, tanto faz) a destruírem a própria vida? O ditado “Dinheiro não traz felicidade” parecia fazer mais sentido após esta época, mas não me explicava tudo. Então eventualmente fui pensando sobre este e outros assuntos similares e me lembrei que nunca almejei ser rico / multimilionário. Lembro-me que eu achava importante ter pessoas que eu gostasse por perto e que meus amigos seguindo rumos diferentes, talvez a melhor idéia fosse eu arranjar uma namorada. Ora, então o que mais faz sentido na vida é ter alguém para gostar? Quase isto… mas nos dois ou três anos seguintes fui complementando estes meus pensamentos e reflexões.
Reflexões sobre o Vazio e o Sentimento
O que era o vazio presente em tantas pessoas? Comecei a estipular que era falta de afeto - sentimento direcionado de uma pessoa à outra (de acordo com a psicanálise), ou seja, sentimento expresso. Para fazer uma diferenciação entre o sentimento interno na mente (não expresso) e o sentimento expresso, chamarei este último de emoção e o primeiro de sentimento. Importante mencionar que isto só serve como um vago parâmetro para comunicação. Não é uma verdade rígida nem totalmente segmentada.
Sentimento é o ato de sentir, e por isso, está vinculado à intuição e às sensações. Sentir é básico de toda forma de vida, ao menos da vida animal e principalmente dos mamíferos. Mesmo que não for manifesto/ expresso, o sentimento existe e certamente não existe para ficar contido. Como um elemento do aparelho psíquico (a mente, estruturada conforme determinadas abordagens psicológicas), o sentimento é naturalmente direcionado a outros aparelhos psíquicos. Isto porque é onde ocorre uma ação e uma reação: Objetos não retribuem afetos de nenhuma natureza, em geral, eles só reagem às ações físicas, ou seja, necessitam da intermediação do corpo.
Não é impossível uma pessoa tentar direcionar um sentimento a um objeto, mas a pessoa não obterá resposta e em algum momento tal pessoa irá sofrer a consequência disto.
Por exemplo, uma pessoa passa a “amar” um objeto, que pode ser uma peça de roupa, um vaso de flores, um bichinho de pelúcia, um carro, ou até mesmo um determinado tipo de comida. A consequência desta falta de relação (ou de resposta) poderia ser crises de ansiedade, depressão ou qualquer outro distúrbio psíquico, pois o sentimento não é correspondido. O sentimento ou a emoção simplesmente não existe para o objeto. Claro, a pessoa poderia desenvolver um sentimento negativo como ódio e atacar fisicamente (corporalmente) destruindo o objeto, mas mesmo assim não dizemos que o objeto foi quebrado pelo ódio da pessoa e sim pelo golpe físico, seja uma paulada, um chute etc. Este ódio manifesto através de um golpe contra o objeto, não cessa a necessidade da troca de sentimentos/ emoções da pessoa. Ela apenas manifestou um outro sentimento (ódio) por não trocar um sentimento positivo que ela desejava (como acolhimento, amor etc). Neste exemplo simplório, também notamos que sentimentos negativos têm como objetivo uma reação destrutiva ou subtrativa. No caso do vaso, por exemplo, este objeto seria despedaçado, ou seja, fragmentado, reduzido a cacos. Portanto, os sentimentos positivos, são o contrário: Eles têm o objetivo de construir, criar ou até de embelezar e aumentar. Sentimentos negativos fazem parte da vida humana e não devem ser simplesmente reprimidos, mas os positivos são notoriamente mais necessários. São eles que possibilitam o desenvolvimento da paciência para tolerar determinadas situações, ambientes ou até mesmo relações. Também possibilitam o desenvolvimento da empatia para compreensão de outros indivíduos e para o convívio em sociedade de maneira menos conflituosa. Obviamente esta importância maior do sentimento positivo não significa que devemos reagir positivamente a um agressor que nos odeie ou que seja uma grande ameaça. Significa que devemos cultivar os sentimentos positivos e difundir sua importância. Mesmo porque manifestações exageradas dos sentimentos negativos resultam em grandes violências, seja contra algumas pessoas em específico, contra um grupo de pessoas ou contra nações inteiras. Discursos e propagação de ódio e intolerância, por exemplo, devem ser combatidos não só pelas leis, e por denúncias, mas também por uma educação humanizada, que não deixe de lado a importância de emoções e sentimentos como a solidariedade e a empatia.
Então o que são os vazios? Quais são e como podem ser preenchidos? Obviamente o tema aqui refere-se à mente humana (ou aparelho psíquico, chame do que quiser), então este vazio é um vazio de sentimento ou de correspondência de sentimento. Como mencionei anteriormente (creio que não só neste texto), não existem sentimentos neutros: Ou eles são agradáveis ou desagradáveis, benéficos ou maléficos… E por aí vai. O vazio do aparelho psíquico então surge de relações muito fragilizadas, seja por um distanciamento, por uma frieza (não correspondência) ou talvez até por repressão de sentimentos, de expressões, de ideias etc. Desta forma tanto o termo vazio afetivo como vazio existencial estão corretos e ambos são nocivos para as pessoas, seja a curto prazo ou a longo prazo. Embora tais vazios sejam relativamente comuns, e algumas pessoas possam tomar atitudes por se sentirem incomodadas por eles, todo ser humano precisa dos sentimentos e a maioria irá preferir bons sentimentos. Sim, eu sei e já falei que os sentimentos ruins fazem parte de nossa existência, mas também expliquei que de maneira mais evidente ou menos evidente, os sentimentos ruins estão relacionados à dor, à contenção forçada, ao aprisionamento, ao impedimento, à separação, às manifestações destrutivas etc.
Então são os sentimentos que preenchem os vazios da mente? Essencialmente sim, é claro, e provavelmente apenas os sentimentos positivos podem preenchê-los de maneira mais plena. Afinal, como citei anteriormente, os sentimentos negativos tendem a todo tipo de destruição e redução das coisas. Portanto o ato de preencher vazios com sentimentos negativos, além de potencialmente nocivo, é, no máximo, um fenômeno temporário, uma vez que eles têm estes objetivos de separação / redução/ destruição. Este movimento contrário à união, à expansão e à criação/ criatividade, nada mais é do que uma forma de esvaziamento, seja de relações ou de sentimentos.
Por fim, para cultivar os sentimentos positivos é preciso expressá-los ou buscar quem os expresse. É preciso iniciar e construir relações, mas quais destas relações devem passar por uma manutenção e quais devem acabar para outras nascerem, é uma outra história...
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