Observações sobre Fédon (Da Psiquê); Parte 2

Continuo aqui um resumo sobre a obra Fédon, com algumas observações.

95c Em reação a Cebes, que perguntou se a alma não poderia desgastar-se ao longo da metempsicose (similar à reencarnação em corpos), Sócrates faz uma pausa absorto em pensamentos antes de seguir; 96a Até que ele continua o diálogo com um relato, dizendo: “Então, ouve o que passo a relatar-te. O fato, Cebes, é quando eu era moço sentia-me tomado do desejo irresistível de adquirir esse conhecimento a que dão o nome de História Natural. 

Para mim, se afigurava realmente maravilhoso conhecer a causa de tudo, o porquê do nascimento e da morte de cada coisa, e a razão de existirem. Vezes sem conta me punha a refletir em todos os sentidos, inicialmente a respeito de questões como a seguinte: Será quando o calor e o frio passam por uma espécie de fermentação, conforme alguns afirmam, que se formam os animais? É por meio do sangue que pensamos? Ou do ar? Ou do fogo? 
Ou nada disso estará certo, vindo a ser o cérebro que dá origem às sensações da vista, do ouvido e do olfato, das quais surgiria a memória e a opinião, e, da memória e da opinião, uma vez, tornadas calmas, nasceria o conhecimento? De seguida, ocupei-me com a corrupção das coisas e com as modificações do céu e da terra, para chegar à conclusão de que nada de proveitoso se tirava de minha inaptidão para considerações dessa natureza. 
Vou dar-te uma prova eloquente disso mesmo. Para as coisas que, segundo meu próprio parecer e de outras pessoas, eu conhecia bem, a tal ponto me deixaram cego semelhantes especulações, que cheguei a desaprender até mesmo o que antes eu presumia conhecer, entre outras, por exemplo, por que o homem cresce”(...) 
97b Ao ouvir, porém, certa vez alguém ler num livro de Anaxágoras – segundo dizia – que a mente* é organizadora e causa de tudo, fiquei satisfeitíssimo com semelhante causa, por parecer-me de algum modo, muito certo que a mente* fosse a causa de tudo, tendo imaginado que, a ser assim mesmo, como coordenadora do Universo, a mente disporia cada coisa particular pela melhor maneira possível. Se alguém quisesse explicar a causa de como alguma coisa nasce ou morre ou existe, teria apenas de descobrir qual é a melhor maneira para ela de existir, sofrer ou produzir seja o que for. Segundo esse critério, só o que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o mais, é o modo melhor e mais perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente conhecendo o pior, por ambos serem objeto do mesmo conhecimento. Depois dessas reflexões, alegrei-me ao pensar que havia encontrado em Anaxágoras um professor da causa das coisas (de didáskalon tís aitías perí tón ónton, também traduzido como "professor das coisas que são") como havia muito eu desejava, que começaria por dizer-me se a Terra é chata ou redonda, e depois me explicaria a causa e a necessidade dessa forma, recorrendo sempre ao princípio do melhor, com demonstrar que para a Terra era melhor mesmo ser assim. No caso de dizer que a Terra se encontra no centro, explicaria porque motivo é melhor para ela ficar no centro. Se ele me demonstrasse esse ponto, decidir-me-ia, de uma vez por todas, a não procurar outra espécie de causa. O mesmo faria com relação ao Sol, à Lua, e aos outros astros, no que diz respeito à sua velocidade relativa, o ponto de conversão e demais acidente a que estão sujeitos, bem como a razão de ser melhor para cada um deles fazer o que fazem ou sofrer o que sofrem. Um momento sequer não podia admitir que, depois de afirmar que tudo está ordenado pela mente*, indicasse outra causa que não a de ser melhor para tudo proceder como procedem. Ao atribuir uma causa particular a cada coisa e ao conjunto, estava certo de que no mesmo ponto demonstraria o que para cada um era melhor e em que consistia para todos o bem comum. Por nada do mundo abriria mão dessa esperança. Por isso, havendo tomado do livro com sofreguidão, li-o de um fôlego, para poder ficar conhecendo, o mais depressa possível, tanto o melhor como o pior. 
Assim Sócrates mostra o que seria preciso para o estudo “do ontos”, ou para um professor de "onto-logia": Apurar qual a melhor maneira das coisas serem. Isto complementa a visão “teleológica” (finalidade dos estudos ou da construção de conhecimento, no caso, da filosofia) socrática/ platônica apresentada em Parmênides
A postura, ou conjunto de posturas de Sócrates ao longo dos diálogos (que certamente é a mesma postura de seu pupilo, Platão) é ética e leva em consideração a epistemologia, ontologia, psicologia e a metafísica. Obviamente a psicologia da antiguidade clássica parecia lidar mais com questões morais, éticas e de espiritualidade, devido a fatores histórico-culturais. Tal psicologia lida com pensamentos, intenções, valores, praticamente não se aproximando de possíveis problemas neurológicos - mesmo porque a neurologia é outra área de estudos. 
De todo modo, em nenhum momento Platão ou Sócrates impõem limites ao saber, à filosofia ou a qualquer um de seus campos. Com a postura de presumir a própria ignorância, mas sem aceitar qualquer argumento imediatamente e utilizando-se o método da maiêutica, Sócrates buscava o saber trabalhando a noção do que é bom (e consequentemente do que é ruim também) em seus interlocutores
Porém, não demorei, companheiro, a cair do alto dessa maravilhosa expectativa, ao prosseguir na leitura e verificar que o nosso homem não recorria à mente* para nada, nem a qualquer outra causa para a explicação da ordem natural das coisas, senão só o ar, ao éter, à água, e uma infinidade mais de causas extravagantes. Quis parecer-me que com ele acontecia como com quem começasse por declarar que tudo o que Sócrates faz é determinado pela inteligência, para depois, ao tentar apresentar a causa de cada um dos meus atos, afirmar, de início, que a razão de encontrar-me sentado agora neste lugar é ter o corpo composto de ossos e músculos, por serem os ossos duros e separados uns dos outros pelas articulações, e os músculos de tal modo constituídos que podem contrair-se ou relaxar-se, e por cobrirem os ossos, juntamente com a carne e a pele que os envolvem. 
Sendo móveis os ossos em suas articulações, pela contração ou relaxamento dos músculos fico em condições de dobrar neste momento os membros, razão de estar agora sentado aqui com as pernas flectidas. A mesma coisa se daria, se a respeito de nossa conversação indicasse como causa a voz, o ar, os sons, e mil outras particularidades do mesmo tipo, porém se esquecesse de mencionar as verdadeiras causas, a saber: pelo fato de haverem acordado os Atenienses em condenar-me, pareceu-me, também, melhor ficar sentado aqui, e mais justo submeter-se neste local à pena cominada. 
*Esta mente citada nas traduções é nous, possivelmente a mente cósmica citada por Anaxágoras. Tal Mente ou Inteligência, além de ser a causa de todas as coisas, é tratada como O Deus, ou a divindade de Sócrates, em Filebo. O teor monoteísta não é novidade nas obras de Platão, vide Parmênides.
A seguir Sócrates critica claramente as explicações mecanicistas e sensoriais que os filósofos naturalistas geralmente apresentavam como verdades. Sócrates exemplifica que ele toma suas decisões não por causa de seus nervos ou ossos, mas por causa de sua inteligência (de sua psiquê). Ele foi preso e condenado por decisões de outros indivíduos, que tinham intenções próprias, interpretaram as atitudes de Sócrates e emitiram suas respectivas opiniões. Assim Sócrates traz a proeminência da psique por trás dos fatos. E continua: 
99. Imagine não conseguir distinguir a causa real, daquela sem a qual a causa não seria capaz de agir, como causa. É o que a maioria parece fazer, como pessoas tateando no escuro; chamam-lhe causa, dando-lhe assim um nome que não lhe pertence. 
A filosofia socrática-platônica traz a importância das áreas de estudo citadas anteriormente. Ela indica e fomenta a atividade mental/ psíquica: O pensar, decidir, expressar/ dialogar, interpretar etc. Para que haja estudo sobre a psiquê, seja alma ou a mente, com seus pensamentos, sentimentos, valores, intenções (etc), as experiências mentais devem ser relatadas ao estudioso (geralmente o psicólogo, a partir do séc 20) que trabalhará com métodos reflexivos e talvez comparativos, raramente um método objetivo devido a própria natureza das experiências mentais. Isto explica, ao menos parcialmente, as origens da psicologia dentro da filosofia; Qualquer estudo que force o enquadramento das experiências mentais dentro de um método meramente objetivo, sensorial/ de repetição (reprodutível), está fadado a graves distorções dos fatos. Distorções estas que facilmente levam ao erro e não constroem um conhecimento verdadeiro e completo sobre o(s) indivíduo(s) estudado(s). Um exemplo clássico é que o método de investigação empírico em sua origem considera toda experiência subjetiva como irrelevante, falsa ou inexistente - principalmente as ditas “místicas”, “sobrenaturais”, transcendentais e similares. É claro, que na história das ciências e da psicologia, houveram tentativas e alegações de que o método empírico funciona para construir um conhecimento psicológico, mas isto se deu distorcendo/ modificando o significado do termo (ou do próprio método) empírico. O que se entende do ser humano, através de um estudo empírico à rigor, é seu comportamento observável, não suas intenções, opiniões e outros elementos mentais internos, que não foram expressos. Ainda que através do comportamento seja possível obter evidências sobre o psiquismo ou mentalidade do indivíduo, em geral, tais informações são parciais ou superficiais. A causa disto é óbvia: métodos sensoriais, como o empírico, trabalham só uma pequena porção da realidade: a perceptível pelos sentidos. 
É por isso que um homem envolve a terra com um vórtice para fazer com que os céus a mantenham no lugar, outro faz com que o ar a sustente como uma tampa larga (uma gamela, do grego kardópoi plateiai). Quanto à sua capacidade de estar no melhor lugar que poderiam estar neste exato momento, isso eles não buscam, nem acreditam que tenha alguma força divina (daimonian iskhyn), mas acreditam que um dia descobrirão um(a) Atlanta (Edson Bini, traduz como o titã da mitologia, embora esse se chame Atlas) mais forte e mais imortal, para manter tudo mais unido, e eles não acreditam que o que é verdadeiramente bom e 'vinculativo' os une e os mantém unidos. 
Sócrates explica que em seu ponto de partida, supõe a existência do belo em si mesmo, do bom e si mesmo* e do grande em si mesmo.
*[kalon, relacionado à kalos, o bem, a bondade; uma virtude/ excelência...]
Assim, quando Sócrates ouve alguém dizer que algo é belo por causa de sua cor, de sua forma e coisas desse gênero (por causa do que é perceptível sensorialmente), ele ignora e agarra a si mesmo de forma simples na ideia (eidos) de que as coisas são belas porque participam/ comungam da beleza em si mesma - é a presença do belo em si mesmo nas coisas que as fazem belas. 
Sócrates não discute diretamente a possibilidade do desgaste e da dissolução da psiquê/ alma, mas indica a existência das eidos, como o bem/ o belo, existindo de modo imutável e uno. Sendo algo alcançável pela psiquê/ alma humana, é mais próxima desta do que do corpo, e sendo mais próxima e alcançável, possivelmente Sócrates convence seus interlocutores de que a psiquê é indestrutível.
Sócrates traz a ênfase no bem/ belo (kalos, um valor não meramente individual, mas universal) para a construção do conhecimento. Ele entendia que a Terra deveria ser redonda porque este deveria ser “o melhor jeito dela ser” (vide A República). Buscar entender o melhor jeito dos seres existirem e das coisas serem, era a função ontológica da filosofia. Isto não é separável da busca pelo bem: a filosofia, como todo o saber, deve ser ética - se pautar sempre por valores universais. Embora alguém possa atacar a ideia de valor universal alegando que eles são relativos, a verdade é que os valores universais são de utilidade coletiva e devem ser desenvolvidos individualmente, para que cada indivíduo trate todos com justiça, ou seja, com equidade. Quando Sócrates critica os indivíduos que favorecem os amigos e prejudicam os demais, na obra A República, certamente ele estava buscando propagar a ética como parte da amizade pelo saber (filosofia). 
103b-107a Sócrates realiza uma investigação racional dialética com seus interlocutores, onde faz comparações entre os números pares e ímpares, o frio e o calor a vida e a morte, concluindo que a psiquê (alma) é imortal e o corpo, mortal; 107c "Porém devemos senhores, considerar também o seguinte: se a alma for imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nesta porção do tempo que denominamos vida, senão o tempo todo em universal, parecendo que se expõe a um grande perigo quem não atender esse aspecto da questão. Pois se a morte fosse o fim de tudo, que imensa vantagem não seria para os desonestos, com a morte livrarem-se do corpo e da ruindade muito própria juntamente com a alma? Agora, porém, que se nos revelou imortal, não resta à alma outra possibilidade, se não for tornar-se, quanto possível, melhor e mais sensata. Ao chegar ao Hades, nada mais leva consigo a não ser a instrução e a educação, justamente, ao que se diz, o que mais favorece ou prejudica o morto desde o início de sua viagem para lá." 
107d O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o daemon (espírito) que em vida lhe tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em que se reúnem os mortos para serem julgados e de onde são conduzidos para o Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o caminho. Depois de terem o destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável, outro guia os traz de volta, após numerosos e longos períodos de tempo. Esse caminho não é o que diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém se perde onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e bifurcações. Digo isso com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso. De qualquer forma, a alma prudente e moderada acompanha seu guia, perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas, como disse há pouco, a que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo em torno dele e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem conta, é por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo daemon incumbido de conduzi-la. Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a que se acha impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes semelhantes, irmãos daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de umas alma como essa todas se afastam, evitam-na, não havendo guia nem companheiro de jornada que com ela se associe. Tomada de grande perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo tempo, depois do que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A que atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e companheiros de jornada, obtém moradia apropriada. 
Na sequência Sócrates especula que a Terra seja redonda e que esteja localizada no mesmo "céu" dos demais astros, onde haveria o que outros filósofos chamavam de "éter". Para Sócrates (e certamente Platão), a água, o vapor e o ar eram sedimentos desse éter do "céu" onde situam-se os astros, e estes "sedimentos" fluiriam para a Terra e suas concavidades (certamente o formato irregular da geomorfologia: desde as montanhas, passando pelos continentes, até as partes mais profundas/ o oceano). Os povos do mediterrâneo são comparados com pequenos animais vivendo em torno de um poço, pois a Terra seria muito maior do que aquela região (Europa, norte da África e oriente médio) onde viviam. Embora tais argumentos pudessem parecer uma especulação sobre física (a circunferência da Terra só foi calculada cerca de 150 anos após Platão, por Erastóstenes), Sócrates segue explicando, que devido à fraqueza (certamente psíquica: mental e espiritual) e a indolência, os seres humanos são incapazes de alcançar a superfície além da Terra: Aqui o filósofo já não fala em mero espaço físico, ao menos, não no espaço tridimensional: Ele se refere a um "céu verdadeiro" e uma "luz verdadeira" de onde poderíamos ver que a nossa Terra onde vivemos não passa de um mundo rústico e imperfeito. Nesta realidade mais verdadeira haveria a beleza superior às coisas de nosso mundo, e ali, seria possível ver uma Terra mais perfeita: Sócrates menciona um mito onde haveria uma "Terra" mais bela e perfeita (teria relação com o hiper ouranos mencionado em Fedro? Ou com o mundo das eidos mencionado em outras obras?) e todos minerais de nossa terra seriam feitos de fragmentos daquele mundo mais puro. Comparado com aquela Terra mais pura, no mundo onde vivemos normalmente, as coisas são maculadas ou corroídas, causando deformidades e enfermidades tanto nos animais, como nos vegetais e nos minerais. Os seres daquele mundo mais puro teriam tudo mais aperfeiçoado que os humanos da Terra: os sentidos, a saúde e a inteligência - o tanto quanto o ar é mais puro do que a água e o éter do que o ar, diz o filósofo (seria uma alusão aos estados da matéria, considerando mais puro, o mais sutil, ou literalmente mais "etéreo"?). Estes seres se comunicariam com os deuses e veriam os astros (por exemplo, o sol e a lua) como realmente são e a seguir, Sócrates arrisca-se a descrever o lugar de julgamento das almas, os rios por onde estas navegam ou são jogadas e o Tártaro (local mítico de punição). Ao anunciar o fim de sua narrativa, Sócrates é indagado por Críton como proceder. O filósofo responde para Críton fazer como sempre e viver conforme explicado na recente conversa, pois se não fizer assim, de nada adiantaria fazer juramentos e nenhum avanço seria realizado. Críton então pergunta sobre o que fazer com o corpo de Sócrates após sua morte. O filósofo sorrindo, diz que por mais que explique sua situação, seu amigo Críton continua achando que ele é só o corpo e que discursou apenas para tranquilizar a todos (como se a alma de Sócrates não fosse partir).
116b Por fim, após Sócrates receber a visita de seus 3 filhos e das mulheres de sua família, o agente/ comissário dos arcontes anuncia: 
Sócrates, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais gentil e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente da mensagem (angelon) que vim anunciar-te: Adeus. Tente suportar o inevitável o mais tranquilamente possível. E colocando-se a chorar, deu as costas e retirou-se. 
Sócrates olhou para ele disse: Adeus, também para ti; faremos isso mesmo. Depois, voltando-se para o nosso lado, disse: Que homem delicado! Durante todo este tempo, vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos, Críton; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de prepará-lo o encarregado disso.
Críton então tenta convencer Sócrates para não se apressar, argumentando que outros condenados pedem por um último momento de prazer e muitas vezes são atendidos. 
Sócrates lhe responde: É natural, Críton, que esses tais procedessem conforme disseste, por imaginarem que disso ganhassem alguma vantagem. Mas certamente eu não procederei dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a ganhar em beber o veneno um pouco mais tarde. Só me tornaria ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedece-me e só faças o que eu digo.
117a Ouvindo-o, Críton fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este saiu e voltou depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Fitando o homem, com aquele seu olhar de touro (olhos bem abertos), perguntou-lhe: 
Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?
O homem respondeu: Só preparamos, Sócrates, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Críton levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.
Que é isso, ó gente incompreensível (thaumasioy)? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos (silenciai-vos) e sedes corajosos (pacientes)!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. (...), mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: 
Críton, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças e dê (salde essa dívida)!* 
Assim farei, respondeu Críton, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção.
O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Críton fechou-lhe os olhos e a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo. 

*(traduzido de: "ó Kríton, éfi, tó Asklepió ofeílomen alektryóna: allá apódote kaí mi amelísite") Interessante notar que na língua grega atual, galo é kókkoras e não alektryóna; Na mitologia havia um personagem chamado Alektryon: um soldado designado como guarda por Ares, deus da guerra (considerado mais selvagem e estrangeiro em comparação com Atena); Após Alektryon falhar em sua missão de alertar Ares contra Hefesto (deus da forja e das invenções), ele acabou transformado em um galo. O mito, porém, não é mencionado em obra alguma de Platão.
Enfim, ao mostrar possíveis consequências da imortalidade da alma no diálogo Fédon, Platão traz mensagens de responsabilidade, mas de sabedoria e esperança também. 
Em "O Banquete", quando Platão diz que devemos amar o bem (as psiquês coletivamente e as leis que fazem bem ao coletivo etc) ele indica que o bom sentimento deve nos guiar para o bem coletivo e também transcendente. Isto porquê o bem/ belo (kalos) é a ideia/ forma (eidos) sublime que não é meramente sensorial/ corporal, mas sim cognoscível/ psíquica. É assim que se alcança o "hiper ouranos" (além céus, mencionado em Fedro), o reino divino onde não há espaço para malevolência. O bem e as demais eidos então são virtudes humanas/ são o que pode nos fazer excelentes e são mais reais que o mundo sensorial, pois são ligados ou oriundos desta realidade superior, seja qual for seu nome. 

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