Considerações sobre Platão e suas propostas de estado e de episteme

 Trago aqui algumas considerações sobre as propostas da filosofia de Platão, mais centradas nos 4 primeiros livros da República, mas também contando com algumas ideias apresentadas em outras obras do autor, afinal há (bastante) coerência entre os diferentes textos do filósofo.

Platão destaca a importância da educação para as duas classes que constituíam seu modelo de governo/ estado - Eles teriam que, além de cuidar da saúde de seus corpos, estudar as "artes das musas" (a grosso modo filosofia, história e artes, como indico neste texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/09/observacoes-sobre-politeia-republica_01303578338.html)... Este estudo de filosofia, história e artes serviria para trabalhar as virtudes na psiquê das classes guardiãs (governantes e guerreiros), desenvolvendo os valores universais nestes (sabedoria, moderação, coragem e justiça), portanto desenvolvendo a ética. Desta forma eles deteriam a episteme (conhecimento ou ciência) para servir a todos no estado e regular a classe mercantil/ artesã, evitando que esta cresça em riquezas e tente tomar o poder. Além disto, o autor proíbe as classes responsáveis pela segurança do estado de participarem de toda e qualquer atividade mercantil. E como esta educação e leis valem para os filósofos também (a classe governante ideal), o dinheiro e as propriedades privadas, ficam proibidos de circularem entre estas classes que abrangem todo o governo/ todo o estado. Para compensar, estas classes teriam os recursos compartilhados entre si, suficientes para uma sobrevivência digna e saudável. Isto resulta em um estado apartado da economia, onde nenhum interesse comercial pode adentrar ou influenciar o governo e as forças armadas. Platão ainda cita no livro 3 da República que os praticantes de atividades comerciais (mercadores etc) tornam-se inimigos uns dos outros, odiando e sendo odiados, e conspirando uns contra os outros. Assim o autor indica que se as classes dos "guardiões" (de defesa, militar etc) e a classe de governantes (no caso os filósofos, detentores e construtores de episteme/ conhecimento) participassem da atividade mercantil, eles seriam distraídos e imersos nos problemas recorrentes deste tipo de atividade, desta forma acabariam disputando entre si. Isto porque a atividade mercantil é própria da classe trabalhadora que devido ao fato de executarem seus respectivos serviços ou produzirem itens para o consumo, não devem se ater à gestão geral da sociedade/ do estado que organiza as relações humanas e protege o coletivo.

Obviamente, um ponto criticado na proposta de governo de Platão, é o fato da classe governante ser composta de "reis filósofos". De fato o autor indica em alguns textos seus, como no "Político" e na "República", que o governo ideal seria composto por poucos (ou um) filósofo(s). Mas é importante fazer algumas ressalvas: É verdade que Platão teve uma má experiência com a "democracia" de seu tempo, pois seu mestre foi executado injustamente sob esse tipo de governo. Porém a democracia que temos hoje parece um meio termo da oligarquia e da aristocracia explicadas pelo autor em sua obra "Político", com vagos traços de democracia, pois a eleição (presidencial ou parlamentarista) escolhe poucos governantes e não impede a intromissão dos interesses privados/ comerciais na política. Além disto, o autor denota a importância dos governantes (e em algum nível, a classe defensora/ "guardiã" da nação) deterem uma episteme. Esta palavra nas obras de Platão, traduzida como ciência ou como conhecimento, se refere à "tekhnes" (arte ou profissão) de governar (as pólis, ou seja, as cidades/ estado, na época e local do autor). Platão se pautou na ética não só neste tema isoladamente, mas em toda sua obra, apesar de algumas restrições sócio culturais de seu tempo, algumas destas que perduram em nações até os dias de hoje (a pena de morte etc). Essas minúcias podem ser discutidas e melhoradas, mas o essencial é que a episteme ética de Platão é voltada à construção de conhecimento e à execução da arte/ profissão de governar e essa arte é realizada por alguém que tem a finalidade de servir a todos em seu respectivo estado/ nação.

Um resumo: Houve espaço para as propostas de Platão na história da civilização?

A partir daí, torna-se nítido que sua proposta de sociedade e economia, nunca (ou quase nunca) foram colocadas em prática na história da humanidade: Após a morte de Platão, seu pupilo mais famoso, Aristóteles, modificou algumas de suas ideias e os macedônios (sob Filipos II e Alexandre) conquistam todas as cidades/ estado gregas, unindo-as em um império absolutista. Seu governante, Alexandre, o Grande, pouco ou nada tinha de filósofo e após sua morte, o Império se dividiu em estados menores, governados por militares. Em seguida, Roma torna-se a maior potência do ocidente, e a maioria de seus governantes estavam envolvidos em conspirações por poder e riquezas. A Academia de Platão foi destruída pelo general romano, Susa, e os filósofos platônicos foram recorrentemente desprezados ou perseguidos. Um dos poucos governantes amigáveis à filosofia, foi Marco Aurélio que criou cátedras para diferentes filosofias em seu governo. Com o passar dos anos, Roma sucumbe devido a corrupção dos governantes e dos militares, além de sofrer investidas de diversos povos "bárbaros". O feudalismo passa a ser adotado na Europa e a filosofia é praticamente enterrada, tendo tímidas aparições entre os séculos 5 e 11 neste continente. Tais "aparições tímidas" da filosofia eram dominadas pela igreja católica já institucionalizada. Assim, somente após o contato com a civilização árabe entre os séculos 11 e 12, a filosofia grega volta aos poucos para as nações da Europa: As obras de Aristóteles tornam-se aceitas nos altos círculos da igreja católica que era o maior centro de poder do continente. 

No século 15, a filosofia ressurge na Europa, desta vez abalando o poder da igreja, por via da divulgação de obras de Platão, do estoicismo e do epicurismo. Mas as propostas feitas por Platão, de um estado governado por uma classe apartada do comércio e que construía conhecimento pautado pela ética, ainda eram muito distantes da mentalidade européia moderna: Prevaleceu o mercantilismo em favor da burguesia que vinha crescendo desde o fim da era medieval. Desde então se passaram cerca de 600 anos e "o mercado" ainda não deixou de interferir nos estados/ nos governos das nações. Na verdade este modelo ideológico por trás do mercantilismo, do liberalismo e do neoliberalismo foi imposto (muitas vezes com violência) sobre todos outros modos diferentes de pensar, de sonhar, de se comportar, enfim de existir. Sejam estes modos de existir um dos muitos das nações nativas da América, da África, da Ásia e da Oceania, ou mesmo um modo de existir de minorias da Europa. 

O modelo ideológico ao que me refiro é o que está ligado às intenções dos que querem acumular riquezas materiais incessantemente, ou seja, é o capitalismo. Ele vem ditando cada vez mais as regras da sociedade humana desde que intensificou o mercantilismo europeu dos séculos 15, 16 e 17 e o transformou no liberalismo. Sim, a revolução industrial ocorrida entre o fim do século 17 e o início do século 20 tem relação com essa mudança, mas é um reducionismo negar as intenções, as escolhas e atitudes humanas que ditavam o que era comercializável antes das inovações tecnológicas do iluminismo e seu período posterior. Estas intenções e escolhas de elites européias intensificaram a utilização, o tráfico e o comércio de seres humanos escravizados nativos do continente da África. Este momento pouco mencionado da história, foi onde ocorreu um dos maiores aumentos da lucratividade da produção de vários insumos, como açúcar, arroz, algodão, cacau e café. Estes lucros foram obtidos por burgueses e aristocratas da Europa a partir do trabalho de povos retirados de sua terra natal, obviamente mal tratados e não remunerados por seu trabalho exaustivo. Esta escravização dos povos africanos sob poder das elites europeias, em geral, eram bem mais opressoras e violentas do que as exercidas entre os diferentes povos da África e também mais opressoras e violentas do que os tratamentos dados aos indígenas americanos, pelos jesuítas. Dois exemplos deste período de aumento da exploração da força de trabalho e da lucratividade de tal ação violenta são a invasão da Xamaica (Jamaica) espanhola pela Inglaterra e a substituição da mão de obra indígena/ jesuítica ("ameríndios convertidos") do Brasil pela mão de obra de povos africanos escravizados. Este período que abrangeu aproximadamente de 1650 a 1770 marcado por esta intensificação do mercantilismo é a aplicação do liberalismo como sistema sócio econômico e foi feito a custa de vidas humanas tratadas como objetos. Este portanto é o 1º período de intensificação da ideologia capitalista em si e não a "era industrial" que viria se iniciar a seguir. O que é pouco ou nada mencionado em aulas de história, é que neste período muitos bancos cresceram e o "racismo científico" começou a ser gradativamente propagado entre as "elites intelectuais". 

Resumidamente na Europa, segue um período de revoltas, pois apesar do enriquecimento de pequenos grupos de burgueses e aristocratas, a maioria do povo europeu continuou na pobreza. Como exemplos temos revoltas nas indústrias têxteis da Inglaterra ("pré luditas"), a Revolução Francesa, a revolta dos escravizados do Haiti, até então colônia da França, o surgimento de pensadores socialistas ("utópicos") como Charles Fourier, Robert Owen e Johann G. Fichte etc. Entre o fim do século 18 e início do 19, talvez o que mais tenha se aproximado das ideias de Platão em priorizar a "episteme" e a educação desde a infância, foi o pensamento e obras de Pestalozzi, um dos precursores da universalização do ensino na Europa.

No século 19 então, a ideologia capitalista e seu sistema sócio econômico liberal já estavam considerados naturais entre as elites da Europa e um dos poucos opositores a esta política, foi o pensador socialista Karl Marx. Suas propostas certamente não são muito parecidas com as de Platão, mas serviram de crítica a uma classe da sociedade ocidental que enriquecia continuamente de modo similar ao que o filósofo da Grécia Clássica fez em obras como Górgias e Apologia de Sócrates

Ainda neste século, houve o movimento pela abolição da escravidão, porém os povos indígenas e negros já eram considerados como inferiores pelos intelectuais europeus: isto por si só é um afastamento do diálogo, e assim, um distanciamento da ética também. Tratados de paz com indígenas foram quebrados por autoridades descendentes de europeus da América do Sul à América do Norte e a África foi invadida pelos poderosos da Europa.

No século 20 algumas nações, principalmente no oriente, tentam praticar o modelo socioeconômico proposto no século anterior: o socialismo (suposta etapa para o utópico comunismo). Porém, depois deste período, houve uma nova intensificação do liberalismo e este é transformado no neoliberalismo - resumidamente a desintegração de infraestrutura das nações e das leis de regulação das empresas e de proteção ao trabalhador. Isto somado ao fato das falhas internas da nações socialistas, acaba na derrota do socialismo ante o neoliberalismo. Embora o socialismo, em teoria, visasse o bem comum e possivelmente o achatamento da economia (portanto do mercado em algum nível, porém não estudei a fundo o pensamento dos líderes socialistas), nenhum destes sistemas "socioeconômicos" tem a ética como tema central porque eles se baseiam quase que exclusivamente na realidade exterior, medível e observável sensorialmente - assim, nestes sistemas a ética pode ter seu valor, mas fica em segundo plano. Sim, os elementos mensuráveis são importantes, mas são resultados de intenções e ações, não sendo a intenção em si - eles não têm finalidade de tornar o ser humano mais ético, chame de mais "bonzinho" ou de "menos egoísta". Tais sistemas então ignoram ou menosprezam os conceitos platônicos em que a classe governante do estado se pauta na construção de conhecimento por via da presunção da ignorância, na finalidade (ontologia) de melhoria de todas as coisas e na ideia de kalos (o bem e belo) como o que há de mais desejável para o ser humano.  

A importância da filosofia na política e na construção de conhecimento

Seria possível atualizar as propostas de Platão, analisando o que há de útil nos sistemas que foram propostos como alternativa aos sistemas mercantil, liberal e neoliberal? 

Estes sistemas que dominaram as nações e a humanidade na era moderna têm uma ideologia tão tosca e afastada da ética como a ideologia do período anterior: o feudalismo que era resumidamente centrado em obediência irracional. Porém a ideologia desumana por trás dos sistemas modernos/ pós modernos, diferente do feudalismo e sua ênfase na obediência, é o capitalismo, que ao centrar a vida humana no mercado e no acúmulo de bens, objetifica e precifica vidas. Então não seria necessário uma "ideologia" (ou melhor, a filosofia proposta por Platão e sua construção de conhecimento) pautada na ética, no diálogo, ao invés de tal ideologia objetificadora e precificadora?

Um sistema alicerçado na filosofia que visa esta ética e este diálogo, não teria a mera finalidade de melhoria das condições de vida, mas da também da melhoria da psiquê humana. Esta melhoria se dá pela construção de conhecimento, ou seja pela educação e pela conscientização e por este caminho também trabalharia as relações humanas sociais e culturais.

Só para ter uma idéia da disparidade entre o mercantilismo e a filosofia platônica, analisemos o capitalismo nesta sua fase mercantil que é o menos desenvolvido, menos poderoso e menos agressivo de seus estágios: Os europeus saem de seu continente em meados do século 15 buscando variadas riquezas materiais, desde as tais especiarias "da Índia", passando a se interessar por madeira, minerais de valor, até mão de obra gratuita, ou seja, escravizada. Com esta ideologia mercantil, o contato com os indígenas americanos (e com muitas das nações africanas) foi predominantemente conflituoso - portugueses e espanhóis (depois outros europeus, como franceses, ingleses etc) obviamente queriam tirar vantagem sobre o indígena e isso já impossibilita relações de confiança mútua e de respeito. Não há nada de filosófico nas intenções dominantes dos europeus - Platão critica a priorização da busca pelo enriquecimento abertamente como nas obras mencionadas anteriormente. O fundador da filosofia ocidental, por mais que seja considerado racionalista, também dialogava com culturas espiritualistas (diferente da maioria das lideranças europeias) - isto é explícito em sua obra Fedro, onde cita o valor das profetizas e tenta explicar alguns estados alterados da psiquê (manike) como os transes místicos e a inspiração por "entidades sobrenaturais" (daemons, ninfas etc). O tema também é abordado em Ion (da Ilíada) onde o autor faz uma crítica construtiva da inspiração, defendendo a importância da reflexão e da busca por conhecimento. É verdade que Platão citava povos estrangeiros pouco ou nada urbanizados como "bárbaros", mas se não o fizesse assim, ele não conseguiria dialogar com as elites intelectuais e sociais da "Grécia" de seu tempo, 4 séculos antes de Cristo. Os pontos da filosofia de Platão a serem mais atualizados e humanizados são quase óbvios, pois são pautas de nosso tempo: a luta pelo direito das mulheres, a luta contra a pena de morte, contra o trabalho escravo/ análogo à escravidão etc. De resto é trazer a ética para o centro da construção de conhecimento e da política. Trazer o diálogo (e não os discursos de ódio, as fake news, o obscurantismo, o etnicismo e o cientificismo deste século 21) trabalhando estas construções.

 

Um comentário:

  1. Ao escrever este texto e alguns dos outros mais recentes, fiquei em dúvida de ressaltar que as propostas de Platão (e talvez de seu mestre Sócrates) foram idealizadas para uma CIDADE-estado, particularmente Atenas. Mas porque isto seria importante? Para defender a autonomia e a cultura de cada povoado, sejam estes povoados nomeados de cidades, tribos, pequena nações ou qualquer outro nome. O autor insinua (entre os livros 2 e 4 da "República") que a cidade deve crescer APÓS a instauração de sua ideia de governo - Possivelmente ele não idealizou sua proposta para um Império já formado, ou seja, sua ideia certamente não era destinada a ser colocada em prática em nações muito grandes, que já tinham diferentes povos sob seu domínio estatal e/ou econômico.

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