Timeu termina a explicação de sua teoria dos elementos, indicando como eles afetam uns aos outros e como se transformam. Na sequência ele começa a explicação sobre o corpo humano e faz uma breve pausa para refutar uma teoria da época (62c-63e), que dizia que tudo que era dotado de massa corpórea se moveria para o lado de baixo do universo e o restante seria constrangido para cima (certamente o "terraplanismo", mas ligado a um possível atomismo). Isto porquê o autor entende que o céu é esférico e "distribuído" de maneira equidistante em relação ao seu centro. Por lógica então, entende-se que o pesado tende a ficar no centro da esfera e o mais leve fica afastado do centro. Após esta explicação, o personagem tenta explicar como se propaga os processos perceptíveis e imperceptíveis no ser humano, comparando as partículas deste com as partículas dos elementos, para então discorrer sobre os sentidos : tato (dor e prazer), paladar, olfato, audição e visão (cores etc). (64a-69a) Os sentidos seriam parte da natureza necessária, pois o deus é suficientemente sábio para combinar o múltiplo com o uno e decompor, inverso o uno no múltiplo*. (*tema abordado em Filebo). Colocando a beleza e o bem (bondade/ kalos) no universo e nos elementos dos quais foram utilizadas as propriedades inerentes, o Demiurgo gerou o ton aytarke te kai ton teleotaton theon (traduzido como deus mais perfeito e autossuficiente: possivelmente a urainon psiquê/ alma do universo). Por isso o astrólogo diz ser importante distinguir a causa natural da causa divina e insinua que o ser humano precisa da vida material ("natural") para alcançar a divina...
Apesar dos argumentos dialogarem com as demais e investigações filosóficas de Platão, ainda há elementos neste texto que parecem exclusivos desta obra: A alma do universo só é mencionada em Timeu, bem como as investigações filosóficas sobre a origem do universo tridimensional/ "material" e seus respectivos elementos.
69b-70 O demiurgo então adicionou proporcionalidade e harmonia (dentro da medida do possível) nos elementos criando o universo e sua psiquê - o deus que continha toda vida em si. Agindo como artífice das coisas divinas, ele (o demiurgo certamente) incumbiu sua progênese (a alma do universo ou os planetas?) de construir a gênese das coisas mortais. Recebendo o princípio imortal da alma, eles criaram os corpos mortais para servirem de veículo desta. Também criaram a "alma mortal" que encerram coisas terríveis e necessárias (o prazer, a dor, ousadia, medo, animosidade etc), alojada separadamente da alma imortal que seria vinculada à cabeça. Assim o "pescoço separaria" as "almas", sendo a mortal alojada abaixo deste e dividida em duas partes: no coração e no fígado/ abdômen.
Este trecho parece dialogar logicamente com a teoria tripartite da psiquê apresentada em A República, mas vale algumas observações: Primeiro que a tradução parece indicar que são "2 tipos de alma": a imortal e a mortal, o que pouco condiz com alguma obra de Platão - Talvez com Fédon, onde Platão indica que os amantes do sobressair-se os amantes do lucro são ambos amantes do corpo, se considerarmos que estes 2 tipos de indivíduos são dominados respectivamente pela parte intermediária da psiquê (ligada ao coração) e pela parte inferior da psiquê (ligada ao fígado). Segundo que a ligação da(s) alma(s) com as partes do corpo parece exclusiva deste texto também, embora isso não seja absurdo, já que Timeu é a obra que aborda a origem do universo, portanto toca questões entre a realidade cognoscível/ a psiquê/ os valores universais e a realidade perceptível/ sensorial/ material. Ligar a alma/ psiquê às partes do corpo não é um problema em si, e inclusive, curiosamente é similar ao conceito de alma da civilização asteca.
A parte da psiquê ligada ao coração então está ligada a animosidade, de modo similar ao apresentado em A República, mas tem a função de controlar os apetites da parte inferior, a "do fígado". Se a parte da psiquê ligada ao fígado e ao abdômen é afetada e conduzida pela parte superior (da cabeça possivelmente), ela pode se tornar serena e jovial, tornando-se capaz da divinação (mantike*) durante a noite, em seu sono. Isto porque a "parte inferior" da psiquê não participa (diretamente) da razão e do entendimento.
*A mantike é tratada na obra Fedro. Ali, Platão mostra Sócrates criticando a separação dos conceitos de mantike (que seria traduzido como mancia, algo referente a uma prática/ magia divinatória) e manike (estado alterado da mente, onde a pessoa pode ter visões - certamente traduzido como mania). O autor não classificava tais experiências de acordo com o método pelo qual elas eram alcançadas/ vividas, mas sim pelos valores inferidos e desejados pela pessoa; Assim a adivinhação, visão / inspiração divina seriam alcançadas pelo agente de divinação (manteis) que desejasse os valores universais (justiça, bondade, coragem etc) e/ ou que fosse belo psiquicamente, ou seja, ético. Desta forma não fazia sentido utilizar o termo mantike para se referir à magia divinatória e manike para classificar todas outras experiências de consciência/ mentalidade alterada, fossem estas transcendentais ou patológicas.
71a-72b: Timeu explica que o deus concedeu o dom da divinação (mantikin) à estupidez humana, pois ninguém em posse de sua inteligência alcança tal estado psíquico. A divinação, de acordo com o astrólogo, só é alcançada em estados de sono, alguma doença ou inspiração divina. Por isso alguém em posse de seu juízo deve lembrar e ponderar sobre acerca dos enunciados produzidos nesse estado divinatório; De modo similar ao que Sócrates propõe à Ion, Timeu diz que essa pessoa (capaz de raciocinar) deve analisar cabalmente e indiscriminadamente todas as visões afim de apurar como e para quem significam algum mal ou bem futuro, presente ou passado. Isso porque a pessoa em estado de "frenesi" (o estado alterado da mente, seja uma inspiração, uma possessão, o sonho etc) está apenas recebendo a "visão", não sendo capaz de pausar e/ ou analisar racionalmente qualquer coisa. Este poder da divinação teria sido concedido ao ser humano para "retificar" a parte inferior de sua alma, auxiliando-o a superar o hedonismo e a não sucumbir aos desejos mesquinhos, pois a parte inferior da psiquê nestas condições "não filosóficas" conseguiria "ver" apenas falsos ídolos e fantasmas.
Sendo Timeu uma obra platônica, este tema é um ponto chave da diferença entre a construção de conhecimento (epistemologia) de Platão e a maioria esmagadora dos pensadores ocidentais posteriores: Platão afirma que há não só uma realidade psíquica, mas que tal realidade permite o contato entre psiquês durante os "estados divinatórios" chamados de mantike, sejam as "psiquês" almas ou mentes de seres "mortais" na Terra ou de daemons (espíritos guias/ anjos da guarda, semi-deuses). Além destas "almas", parece haver outras entidades ao longo da obra de Platão: sejam as moiras (citadas no "Mito de Er" em A República), os falsos ídolos (aparentemente citados só em Timeu) e o deus (seja o Demiurgo e/ ou o Uno/ Nous, a inteligência divina). Platão não busca dar detalhes sobre tais seres e/ ou entidades porque sua episteme é dialética e tem como ontologia/ teleologia, a melhoria de todas as coisas. Sendo dialética, o autor trabalha com o investigável partindo de sua presunção de ignorância e a investigação é feita pela contraposição de argumentos que levam à reflexão sobre os temas/ as coisas. As coisas tendo um fim, têm formas (eidos: ideias/ formas) e este fim é a excelência/ a virtude composta de valores unos (universais, que unem) e imutáveis (eternos, que não se desgastam com o tempo, portanto precedem o tempo). Assim Platão jamais investigaria os "falsos ídolos" bem como ele recomenda que devemos nos empenhar em estudar as coisas que são (imutáveis, unas e cognoscíveis) ao invés das coisas que não são: Fato bem exemplificado na obra "Sofista" (Do Ser). Em Sofista, ou autor também investiga e descreve os pontos fracos e fortes de pressupostos como o espiritualismo, o materialismo (certamente atomismo), a teoria de que todas as coisas são unas, supostamente de Parmênides e a teoria de que tudo está em movimento e o ser humano é o centro de todas as coisas (de Heráclito, Protágoras etc). Assim Platão apresenta a filosofia com abertura à universalidade, mas sem deixar de fazer análises rigorosas, pautadas pelos valores universais, ou seja, pela ética. A filosofia moderna porém, principalmente após Locke, Kant e Comte, não tem essa universalidade e a ciência nasce desta filosofia. A filosofia moderna então não é só racionalista, como apresentada por René Descartes (1596-1650), mas também tende a dar maior ênfase no método do que na finalidade. Este método dominante na ciência é o empírico e seu pressuposto (pré suposição) é o materialismo que nega a realidade espiritual, e, consequentemente, nega toda a espiritualidade. A ciência então, separada de maneira mais notória após a cunhagem do termo cientista no século 19, nasce como um saber voltado às especializações. Esta ciência em grande parte (empirista, reprodutível) também cai no que Platão alerta sobre a limitação dos atomistas/ materialistas de seu tempo (século 4 a.C.): é uma área de estudos mais voltada e mais útil para a produção de corpos e para a manutenção destes corpos (por exemplo: medicina dos órgãos e dos sistemas orgânicos, química, mecânica etc). Ela jamais pode investigar ações oriundas de inteligências para além do espaço tridimensional e/ ou do tempo, ou seja, não investiga a espiritualidade e as experiências transcendentais/ místicas, além de não abordar a ética nem os valores universais. E estas experiências espirituais, sejam visões em sonho, inspirações divinas ou quaisquer outras, interrelacionam-se com questões psíquicas, éticas e existenciais/ de sentido. Para que a ciência passe a considerar tais questões, ela teria que se regida por uma teoria de sistemas pautada pela ética e seus valores universais, sem paradigmas e pressupostos estritamente materialistas.
Timeu diz que, por esta razão, é comum consultar intérpretes (profeton) das entheois manteíais (oráculos divinos, traduzido como divinações inspiradas, por Edson Bini - são as "experiências psíquicas de teor espiritual" como explicado anteriormente). O astrólogo/ astrônomo distingue o agente da divinação (manteis) dos intérpretes das coisas obtidas por divinação (profeton) e conclui que referente ao que concerne à alma e suas "partes" e com que órgãos do corpo elas se ligam, ele só ousaria afirmar que é verdadeiro com a confirmação divina. Porém, ele continuará a explicação tratando seus próprios argumentos como uma probabilidade (74-79). Timeu diz que as 3 partes da psiquê/ alma (a racional, a "irascível" e a "apetitiva") se encontram na medula e explica sobre os ossos, os nervos e a carne do corpo. Ele traça uma vaga ligação entre humanos, animais e plantas e indica que a vida "não humana" deve ter o "terceiro tipo" de psiquê (a "alma apetitiva"). Em seguida tenta uma descrição da constituição do corpo humano e seus sistemas respiratório e digestório por causa da importância destes para nutrir e manter o seu funcionamento biológico. Timeu entende que não há espaços vazios no corpo e onde o ar deixa de estar presente, o "fogo" preencheria tal espaço. Embora teorias da época aceitassem a ideia do fogo no corpo humano, vale lembrar que pelo próprio teor da explicação dos 4 "elementos" ou "tipos" (do grego, genon) apresentada em Timeu, é possível que o autor se refira ao estado da matéria mais fluido do que o ar (o plasma). Esta ênfase na teoria de que tudo está preenchido de alguma força ou partículas aparece nos argumentos das relações entre todas as coisas do universo: Timeu parte da explicação do corpo humano, citando brevemente os sons, as correntes d'água, o relâmpago, o âmbar (elektron) e a pedra heracleana (magneto ou magnetita) - todas estas coisas tem alguma interrelação, nada sendo isolado ou acaso.
(80-81) Timeu, ainda que com a peculiar descrição de partículas (ou moléculas) triangulares, parece ter uma noção que o sangue se move em uma corrente cíclica no corpo e indica uma relação deste com o transporte de nutrientes obtidos dos alimentos. Ele ainda entende que os corpos que nos circundam se mantém nos consumindo (ambiente e/ ou micro-organismos?) e direcionando cada espécie de substância àquilo que lhe é afim. Assim, Timeu encerra esta parte explicando a juventude do corpo, o envelhecer e a morte, através de sua teoria das moléculas/ partículas triangulares e seus movimentos/ mudanças; Após os vínculos destes "triângulos" da medula se partirem, a alma (psiquê) estaria livre para deixar o corpo. A morte natural tende a mais indolor e mais prazerosa do que a morte não-natural, que é sempre dolorosa. 82-86a: Após teorizar sobre as doenças do corpo, Timeu fala das doenças da psiquê: Ele entende que a falta de senso (anoian, ou falta de sanidade, de mentalidade) é uma doença da psiquê e que há 2 tipos dela: a mania (manike, traduzido como loucura) e a ignorância (amathos). Neste ponto, o prazer e a dor excessivos são relacionados aos maiores tipos de loucura: Quando um indivíduo experimenta um regozijo excessivo, ele se torna atiçado pela pressa de obter mais prazer e quando experimenta muita dor torna-se o contrário do primeiro: aversivo/ provocado para evitar dores apressadamente. Neste estado, o indivíduo fica limitado para ver e ouvir, tornando-se ensandecido e incapacitado de exercer a razão. Timeu diz que ocorre um fator corporal de produção (de substância biológica) excessiva do que pode causar muitas dores ou prazeres... Isto faz com que o indivíduo passe maior parte do tempo enlouquecido ("maníaco") pela busca por prazer ou pela evitação de dores. Ele explica que a sociedade de seu tempo costuma classificar tais indivíduos de psiquê enfermas e destituídos de senso como voluntariamente maus; Porém esse desregramento sexual ocorre principalmente pela produção de uma substância do corpo (traduzida como semente) que adoece a psiquê. O autor explica que este descontrole (a mania pelo prazer) não deve ser censurado como meramente uma questão de vontade*, pois é um problema do corpo (biológico) e da má condição ou ausência de educação. O mesmo vale para a "doença contrária" (referente as dores): ela tem causas parecidas, sendo estas principalmente corporais.
*Sócrates e Platão questionavam o argumento de que as pessoas eram voluntariamente más; Assim, a justiça para eles não era mera punição: tinha um fim de corrigir a psiquê da pessoa, como abordado nos diálogos Protágoras e Górgias, por exemplo.
Timeu completa sua explicação sobre tais "psicopatologias" alegando que quando os indivíduos neste estado (de loucura/ mania), vivem em um local onde a política e os discursos* também são maus (*certamente discursos de educadores, advogados e/ ou sofistas), não se deve culpar o educado e sim seus cuidadores ou progenitores que foram responsáveis por tal educação falha. Nestes casos é necessário reunir esforços através de uma educação aliada aos estudos próprios (individuais) para corrigir/ tratar a loucura.
O autor lembra que a psiquê/ alma dada pelo deus ao ser humano é de origem divina e (por causa de sua parte superior, ligada à cabeça) foi feita para ascender aos "céus". Este "céu" é certamente o hiper ouranos, citado em Fedro, o "local dos deuses", onde não há malevolência e as virtudes como a justiça, fulguram. O indivíduo que se deixa levar por seus apetites ou por disputas terrenas fica preso à sua parte mortal e alimenta opiniões mortais (mutáveis, perecíveis), mas aquele que se ocupa de pensamentos verdadeiros, liga-se à sua parte imortal e é apto a alcançar o saber (vide "A República") e o divino. Este último certamente está de acordo com o daemon (espírito guia/ um tipo de anjo da guarda) que lhe foi concedido pelo deus e assim eles podem ser considerados sumamente felizes (eudaimona einai: literalmente estar com um bom daemon). Cada parte da psiquê/ alma deve cuidar do que lhe é devido, por isso o corpo deve ser nutrido devidamente e não ser imerso em exageros de prazer ou de dores. A parte superior da psiquê então cuidaria das "revoluções do universo" (o objetivo da "parte superior" da psiquê parece explicado de maneira mais precisa e mais completa em outras obras de Platão, como O Banquete, Fedro, Górgias, "A República", Fedon, etc).
No fim de seu discurso (90e-92), Timeu apresenta sua teoria da metempsicose, a transmigração das almas, tendo o ser humano como tema central, com o viés patriarcal típico da "Grécia" de seu tempo. Inclusive, Platão sugere os direitos das mulheres (ao ensino etc) em "A República" certamente porque era necessário eliminar ou diminuir a opressão sobre elas em maior parte das cidades gregas.
Ele encerra dizendo que assim, a alma do universo (o deus "perceptível") contém todos os seres vivos em si, de modo maximamente bom, belo e perfeito... Este trecho final da obra Timeu parece ser ou abordar o que Aristóteles diz que Platão reservou uma versão diferente a qual só ensinava pessoalmente (via tradição oral) e isto seria indicado em sua "7ª carta" entre os trechos 341b e 341e... O pupilo de Platão teria afirmado que falar da origem do universo e do Deus e sua bondade causava desprezo ou deboche por parte de alguns ouvintes (certamente os que desprezam ou não entendem as excelências/ virtudes) e sabendo disto, seria mais ineficaz ainda escrever sobre tal tema, como indicado na 7ª carta. Isto gera a dúvida: o quão a obra Timeu carrega de elementos realmente "platônicos"? Certamente há muita coisa coerente com a obra de Platão em Timeu, mas seria tal texto incrementado ou realizado por outro autor admirador do filósofo?
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