O assunto que está me chamando atenção no momento é o retorno do cientificismo, mas o que ele tem a ver com religião? Bom, ele é, ao menos aparentemente, uma resposta compreensível para o fundamentalismo típico de religiões que se tornaram ferramenta de poder há muito tempo. Obviamente, as religiões ou espiritualidade de minorias ou de massas sem poder algum, dificilmente podem se tornar ferramenta de poder, então é compreensível que o cientificismo seja uma resposta às influências do catolicismo ou do protestantismo na sociedade (embora existam cientificistas que ataquem outras religiões também). Mas o que é cientificismo?
Eu gostaria que a maioria das pessoas já soubessem o que é isso neste início de século 21, mas acho que devo apresentar um breve resumo: Cientificismo é o movimento de cientistas, "acadêmicos" ou admiradores da ciência, que prega que a ciência é o único meio de se construir conhecimento, ou o meio mais confiável e portanto, superior a todos outros. E ele pode parecer natural para qualquer um que goste de estudar ou procura entender o mundo, o universo etc, porém o problema é que o cientificismo geralmente prega a visão dominante de ciência como dogma e seus difusores raramente reconhecem ou assumem que estão propagando esta idéia enviesada. O cientificismo ao pregar a superioridade da ciência, geralmente despreza ou nega os elementos das religiões, tais como espírito, fenômenos não explicados pelo empirismo, divindade, universalidade do bem e elementos da filosofia, como a presunção da ignorância/ suspensão de pressupostos, o diálogo, chegando às vezes a ignorar ou deturpar até mesmo a ética. O cientificismo geralmente se apoia em uma visão de mundo / pressuposto materialista que tende a convergir com o niilismo (o argumento de que não há nada além da "matéria" perceptível/ mensurável) e alguns exemplos de cientificismo na história também se apoiaram no biologismo. Por este último motivo ele deve ser comum entre estudiosos de áreas como medicina e biologia, mas também pode ocorrer em qualquer área da ciência.
Enfim, já expliquei sobre os perigos de tais movimentos em vários textos, então vamos à sua relação com o fundamentalismo religioso: O fundamentalismo religioso surge em religiões que são ferramentas de poder, ou seja, são autoritárias de um modo velado, ou de modo notório; São doutrinas dogmáticas, ou seja, cheias de certezas e leis inquestionáveis de um suposto Deus todo poderoso. Estas religiões não necessariamente concordam entre si de modo unânime sobre Deus: O Deus da Igreja Universal por exemplo, como explicado em seus programas de rádio (que escuto quase diariamente à contra gosto), está sempre prometendo "unções" aos seus fiéis. Esta unção seria uma suposta proteção e "selo de aprovação" de que você faz parte da igreja deles caso participe de seus eventos, sejam cultos ou qualquer outra coisa que eu desconheço. Proteção contra o quê? Não tenho certeza, porque não acompanho mais do que os repetitivos programas de rádio que frequentemente convocam seus fiéis para unções e apresentam "milagres" operados por seus pastores. Estes milagres são supostas soluções de problemas familiares, dificuldades profissionais ou financeiras etc (nada de novo, pois muitos pastores espalham tais discursos desde meados do século passado).
Outras religiões protestantes estão mais empenhadas em propagar o fim do mundo e citam com elevada frequência "o demônio", "satanás", enfim, o opositor de Deus... Praticamente um dualismo ao invés de um monoteísmo, pois o capiroto para estes, parece tão poderoso quanto Deus (a última vez que vi esses, foi quando retirei meu "ex" carro de uma oficina em 2023 e me deram um livretinho desta religião). Mas porquê falam tanto do fim do mundo e do rival de Deus? Esse não é um discurso novo, mas não sei dizer exatamente quando surgiu. Imagino que tal doutrina seja uma ferramenta de poder sim, para deixar os fiéis com medo constantemente, pois isso combina com o velho discurso de que "se você não seguir nossas regras rigorosamente, o diabo vai te pegar" e com a acusação que todas outras religiões estão em erro ou são "obras do inimigo". Assim como teologias da prosperidade e do domínio, essas doutrinas religiosas têm uma finalidade: manter o poder de um pequeno grupo de líderes religiosos - seja através do enriquecimento e acúmulo do dinheiro, ou através da criação do discurso "nós e eles" evidente na idéia de "unção" dos fiéis.
Eu poderia buscar discursos manipuladores de outras religiões, mas já deu pra sacar o porque surgiu uma reação à tanto absurdo e além do mais o catolicismo pela 1ª vez na história do Brasil está sendo ultrapassado pelo protestantismo ("evangelismo") de acordo com fontes atuais das quais não anotei e não as citarei por enquanto. (embora o fenômeno seja aparente...) As igrejas evangélicas dos pastores mais enriquecidos detém um poder enorme: influenciam não só a política e as mídias, como já têm muita força na economia e até em setores de segurança do país, como a PM paulista, por exemplo (policias que deveriam servir o estado e à sociedade, fazem a segurança de templos evangélicos, assistem cultos e palestras de pastores em expediente etc).
Então é natural que uma classe de estudantes, cientistas, intelectuais reajam a este movimento conservador e/ ou obscurantista crescente: Isto não é novidade, apesar do Brasil ter suas particularidades; O cientificismo já existia por exemplo no século 19 e teve seu apogeu com o positivismo, movimento que durou praticamente até as duas ou três primeiras décadas do século 20! Embora no século 19 as igrejas fossem mais poderosas devido a uma possível falta de instrução das pessoas, o que gerou os maiores conflitos do mundo, pouco tem a ver com religiões, pois foram as crises do liberalismo, um sistema econômico e "social" charlatão (que causa prejuízo às massas beneficiando uma minoria), aliadas a um saber completamente apartado da ética: A ciência que gerou armas químicas na primeira guerra mundial e armas de destruição em massa na segunda! Essa ciência antiética era positivista, biologista, racista e materialista-niilista! Poucos foram os cientistas (Einstein, entre eles) que criticaram a pesquisa para fabricação de armas! Armas existem com um só objetivo e não é o de proteção: é o de matar!
Após as duas guerras mundiais, a ideia de modernidade começou a ruir: Tal ideia de base iluminista, pregava que o homem tinha alcançado seu ápice com a filosofia natural que passou gradativamente a ser chamada de ciência com a invenção da palavra cientista, mais ou menos na mesma época do positivismo (primeira metade do séc 19); Apesar do abalo, as classes dominantes ainda tentavam suas cartadas: com o advento dos meios de comunicação em massa, os protestantes/ evangélicos passam a utilizar cada vez mais a televisão para promover suas igrejas e o cientificismo ganha um novo fôlego com as descobertas na área de genética (biologia) - seguindo esse movimento, o comportamentalismo ganhou força nos EUA, indicando uma aproximação da psicologia com a medicina/ biologia.
Porém, nos anos 60, são realizados uma série de movimentos e reivindicações populares que marcam o que alguns estudiosos chamam de pós modernidade: o racionalismo frio e niilista por trás das duas guerras mundiais era combatido com o movimento "paz e amor", lutas anti-racistas, feminismo, movimento pela liberação do uso de psicoativos, sincretismo religioso entre ocidente e oriente (new age) entre outras manifestações. Apesar de tantas manifestações, muitas reinvindicações foram ignoradas ou suprimidas, enquanto outras foram ganhando espaço lentamente. As igrejas protestantes/ evangélicas agora dominadas pelo movimento neopentecostal não perderam poder algum com o passar dos anos - pelo contrário passaram a crescer no Brasil e em outros países. E aqui começo minha crítica à inutilidade do cientificismo: O que ele fomentou? Uma construção de conhecimento ética? Não; porque como vimos, na guerra fria, a química e a física foram capitaneadas pela criação de armas; A psiquiatria (medicina) continuava repleta de atrocidades desde a escravização existente no séc 19 até mais da metade da Guerra Fria no séc 20... O que o cientificismo combateu então? O abuso de autoridade de pastores e padres? Suas violências, seus interesses em enriquecer às custas das massas? Também não!
Desde por volta de 2019 estive vendo o crescimento (ou retorno) do movimento cientificista no Brasil e este, seja uma resposta ao fundamentalismo religioso ou não, é um movimento que prega a velha visão de uma elite européia decadente e arrogante - uma visão que propaga indiferença e egoísmo, tanto é assim que atualmente ela já ganha uma força apartada de movimentos pró sociedade, e de movimentos contra preconceito e a favor de oprimidos. Aqui vejo alguns perigos: como psicólogo de formação, o espalhamento da visão biologista na psicologia ataca abordagens humanistas e existenciais, seja diretamente ou indiretamente. O cientificismo, priorizando o método de investigação, acaba deixando em segundo plano a finalidade dos estudos ou da profissão, correndo o risco de até mesmo separar a construção de conhecimento da ética, uma vez que esta não é da área de estudos da ciência; Cheguei a ouvir um professor falar isso abertamente numa palestra: que a psicologia (comportamental) como ciência não se ocupa (e não deve se ocupar) da ética. Minutos depois ele citou a importância da finalidade social da psicologia... Então me perguntei: "Ué, finalidade social não é ética? Existe um fim social "neutro" ou antiético?" Pois bem, então se isso não for cientificismo, é porque a ciência mais aceita na academia se propõe a ser "neutra", permitindo o retorno das atrocidades mencionadas anteriormente e de outras também. Todas atrocidades na história da ciência mostram que nunca houve neutralidade na construção de conhecimento nem em qualquer outra área da civilização humana.
O "cientista" que prioriza o método acima de tudo, esquece ou ignora a finalidade da construção de conhecimento que deveria ser ética! Ele se ocupa de discursos de finalidade dúbia como (exemplos simplificados): "Deus é uma invenção"; "Profeta x ou y não existiu", entre muitas insinuações de que a questão da relação entre mente e corpo está resolvida, alma não existe, espíritos não existem, campos eletromagnéticos dos orgãos humanos são só efeitos colaterais ou residuais (como se não tivessem causa nem finalidade), psicologia de verdade é só comportamental, fora tantas outras banalidades que miram em práticas culturais, religiosas etc.
E o que é a ética da qual os cientificistas se afastam, tanto voluntariamente como involuntariamente?
Com certeza não é o que fundamentalistas religiosos falam, nem o que neoliberais amantes do dinheiro acham... Um dos maiores estudos sobre ética foi feito no período inicial da filosofia ocidental: Platão trata dela em grande parte de suas obras: para o autor, a construção de conhecimento verdadeiro não pode ser apartada de valores imutáveis e unos - apesar da linguagem talvez esquisita de sua época e local, é notório que o autor prioriza o conhecimento que busca o bem de todos (universal), do coletivo, ou do maior número de pessoas possível. Tudo isso através do diálogo alicerçado na presunção da ignorância - esta postura que a fenomenologia traz de volta à construção de conhecimento na virada do séc 19 ao 20, sob o nome de ausência (ou suspensão) de pressupostos - afinal pressuposição em prática, é preconceito. O fundador da filosofia ocidental então dialogava criticamente, mas não destrutivamente com cosmovisões (em Sofista e Fédon), mitos populares (em Político e A República) e com práticas espirituais e experiências místicas (em Fedro e Ion). Platão condenava o interesse particular na construção de conhecimento (em Górgias, Apologia, A República, Fédon, Filebo entre outros textos) e na política, traçando uma relação entre a epistemologia e sua serventia pública, para o estado e a sociedade. Se a ciência deve se apartar de tudo isso... O que ela se tornou? Uma arena de intelectualistas? Clubes de ditadores de regras sobre o que é a verdade, sem buscar a melhoria da humanidade. Sem ética e sem função social? Ignorando o que há de humano... no ser humano?
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