Conforme expliquei em um texto anterior, decidi analisar o espiritismo fundado por Allan Kardec na França não como mera religião, nem como uma área (não) aceita na ciência, mas como uma tentativa de construir conhecimento (um tanto filosófico) sobre uma série de fenômenos. A síntese apresentada aqui toma como base um texto do autor escrito em sua Revue-spirite journal d'etudes psychologiques de 04/1864:
"1. ─ O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações."
Como citei anteriormente, ao observar uma série de casos e relatos na França do séc. 19, o espiritismo iniciado por Kardec não partia da certeza da "não existência" da alma e dos espíritos. Mesmo porquê pressupor inexistências é se apoiar em negações e contradizer a filosofia em sua raiz platônica. Claro, que alguns podem afirmar que a ciência após Kardec conseguiu rastrear "áreas ativadas" no cérebro quando a pessoa tem alucinações ou supostas alucinações, mas o espiritismo trata de fenômenos mais complexos e amplos do que visões ou audições individuais. O espiritismo em sua postura de não pressupor inexistência, se aproxima da construção de conhecimento da filosofia ocidental em sua raiz/ cerne, que propunha a presunção da ignorância ao iniciar uma investigação. Além disto, ao buscar construir conhecimento de modo mais próximo à raiz platônica da filosofia, o espiritismo acaba demonstrando uma semelhança de postura básica com a suspensão de pressupostos da fenomenologia lançada pelo filósofo e matemático Edmund Husserl (1859-1938). Tal postura inicial para se investigar fenômenos que lidam com o psiquismo humano se mostra universal, pois não relega saberes e relatos relacionados à espiritualidade de diferentes culturas ao status de meras mentiras ou psicopatologias.
E porque Kardec fala de "consequências morais"? Certamente por 2 motivos: Os fenômenos ou relatos estudados envolviam frequentemente a psiquê humana - psicografar, observar objetos se mover com padrão inteligente sem interação de corpos, ouvir vozes, ter visões com ou sem espacialidade (este último caso, é a "percepção" mental, chamada de clarividência ou clariaudiência pelos espíritas) etc. Além disto, vários temas envolvendo a psiquê (a alma encarnada ou desencarnada, de acordo com o espiritismo) tocam questões morais e portanto éticas - assunto da filosofia e não da ciência de pressupostos e métodos reducionistas;
"2. ─ Os Espíritos não são, como por vezes os imaginam, seres à parte na criação. Eles são as almas dos que viveram na Terra e em outros mundos. As almas ou Espíritos são, pois, uma só e a mesma coisa, de onde se segue que todo aquele que crê na existência da alma, por isso mesmo crê na dos Espíritos."
Isto diferencia o espiritismo de parte das religiões cristãs institucionalizadas, como a católica e a evangélica. Baseando-se nos textos do evangelho, não há consenso se Jesus, que recebeu o título de Cristo - base dos termos "cristão" e "cristianismo", definiu os espíritos como seres à parte na criação ou não. Sem um consenso referente aos textos do evangelho atribuídos aos apóstolos de Jesus, certamente restam somente interpretações e ideias propagadas por religiosos que viveram séculos após Jesus. Tais interpretações dos evangelhos são obras dos "pais da igreja" ou pré suposições impostas nos concílios da igreja ao longo da história antiga ou medieval. Partindo da lógica que temos alma e esta é imortal, o espírito em nada difere da alma. Chamar separadamente o espírito ligado ao corpo (encarnado) de alma e o desencarnado de espírito não tem utilidade no espiritismo.
"3. ─ Geralmente as pessoas fazem uma ideia muito falsa do estado dos Espíritos. Eles não são, como alguns pensam, seres vagos e indefinidos, nem chamas, como fogos-fátuos, nem fantasmas, como nos contos de aparições. São seres semelhantes a nós, com um corpo como o nosso, mas invisível e fluídico em estado normal."
Este tema é melhor explicado em outras obras como o Livro dos Espíritos. O espírito é incorpóreo - de modo similar a nossa atividade mental: ninguém pode pegar um pensamento ou sentimento com um bisturi e dividi-lo - apenas é possível rastrear seus efeitos eletroquímicos no sistema nervoso, pelas sinapses e talvez pelos campos eletromagnéticos do coração, do cérebro etc. A pré suposição dominante na ciência no mínimo desde a época de Kardec, é que a mente é o cérebro, ou que não há mente nem alma: só o cérebro e o corpo humano. Tal pressuposto afirma que se algo não é observável nem reprodutível sob controle humano, não existe. Deste modo a ciência nega o conceito de alma e contradiz a raiz da filosofia ocidental (Platão, por exemplo), pois também reduz a ética e os valores universais ao status de opinião e valores individuais.
O corpo "fluídico" citado, que dá a forma ou aparência ao espírito, é explicado, ou teorizado, a seguir.
"4. ─ Quando a alma está unida ao corpo, durante a vida, tem um envoltório duplo: um pesado, grosseiro e destrutível, que é o corpo; outro fluídico, leve e indestrutível, chamado perispírito. O perispírito é o elo que une a alma ao corpo. É por intermédio dele que a alma faz o corpo agir e que percebe as sensações experimentadas pelo corpo."
O espiritismo não nega a existência do corpo nem argumenta que este só existe quando percebido por outrem. Assim o espiritismo, embora dê uma ênfase ao espírito, não é um pressuposto meramente idealista nem exclusivamente mentalista, fazendo alegações como: só o espírito é real, todos os corpos são ilusões ou coisas do tipo. Ele simplesmente vai além do materialismo, indicando a importância da alma/ espírito, de modo parecido com os estudos de Platão, que ao mirar no que é uno e imutável (a ética), acabou indicando a imortalidade da psiquê (termo que engloba alma e mente, unindo-os como un só coisa) e a importância do cognoscível.
O conceito de perispírito pode parecer mais polêmico por se tratar do que há entre o corpo e a mente (alma), que é uma discussão no mínimo desde a época de René Descartes (1596-1650). Certamente por também não detectar este agente intermediário sob uma investigação controlada (empírica), ocorreu a predominância dos pressupostos materialistas na ciência - ao estudarmos a história da filosofia e da ciência desde Descartes até a época de Kardec, isto fica claro.
Note que a utilização do termo "fluídico" é restrita à época de Kardec, principalmente aos espíritas, mas têm semelhanças e possíveis relações com os estudos de Franz Mesmer (1734-1815). Mesmer teorizou que assim como os minerais podem ter magnetismo, os vegetais e os animais (ser humano incluso) também deveriam ter. Apesar de exercer alguma influência na sociedade ao tentar realizar "curas magnéticas", Mesmer foi criticado não só por não conseguir explicar toda sua teoria e prática, mas também foi difamado por opositores e discordantes de suas ideias. Kardec reconhece algum valor nas obras de Mesmer em uma de suas Revistas Espíritas e nestes mesmos editoriais, o professor francês estipula que o perispírito poderia ser explicado futuramente com novas descobertas sobre a eletricidade e o magnetismo. De fato, muitos anos depois, entre 1963 e 1968, David Cohen e James Zimmerman descobriram que órgãos do corpo humano, como o cérebro e o coração por exemplo, possuem um campo eletromagnético - porém os estudos de tais campos e sua respectiva finalidade e relação com atividades neuronais e/ ou psíquicas permanecem tímidos e recebem resistência de grande parte das áreas médicas como a neurologia etc.
"5. ─ A morte é apenas a destruição do envoltório grosseiro. A alma abandona esse envoltório como se deixa uma roupa velha, ou como a borboleta deixa a sua crisálida, mas ela conserva o seu corpo fluídico, ou perispírito. A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o homem. A alma e o perispírito, separados do corpo, constituem o ser chamado Espírito."
Em inúmeras culturas espalhadas pelo globo terrestre desde antes das eras dos metais/ antiguidade existiram "xamãs" e outros indivíduos que lidavam com espíritos, fossem esses considerados "da natureza", de ancestrais, ou de ambos. Apesar das diferenças entre tais culturas, todas elas tinham um modo de lidar com a morte ou passagem deste mundo para outra realidade. Obviamente a explicação de Kardec sobre o assunto está mais para teórica/ dialética reflexiva do que empírica, uma vez que em sua época nem os campos eletromagnéticos dos órgãos haviam sido descobertos. O períspirito aparece em explicações espíritas de outros fenômenos além da "morte" do corpo. Tal argumento parece ser utilizado em casos onde espíritos interagem com corpos materiais como o das "mesas girantes" do século 19 que incitou a curiosidade de Denizard antes de escrever sobre o assunto. Estes fenômenos envolvendo o perispírito incluem pancadas, "possessões" e curas e parece ter relação com os de pessoas de épocas anteriores a Kardec, que mencionavam "maus ares" ou "gases sutis" para explicar casos de bruxas e seus animais familiares. Como exemplo deste tipo de argumento existem algumas obras peculiares de Joseph Glanvill (1636-1680) que apresentem ideias certamente mais rústicas e imprecisas do que as da época de Kardec - afinal na Europa do século 17, quando ocorriam variadas caças às bruxas seguidas de execuções, era mais difícil criar toda uma teoria sobre o espírito sem ser ameaçado pelo poder das igrejas.
Para Kardec então, o ser encarnado é o espírito com seu corpo "fluídico" (períspirito) mais o corpo (material), enquanto o ser desencarnado é só o espírito e seu respectivo períspirito. O autor constrói tal argumento sem contradizer a ciência de seu tempo, pois existiam e ainda existem grandes lacunas no conhecimento e muitos temas a serem descobertos e investigados.
"6. ─ A morte do corpo desembaraça o Espírito do envoltório que o ligava à Terra e o fazia sofrer. Uma vez livre desse fardo, ele tem apenas o seu corpo etéreo, que lhe permite percorrer o espaço e transpor distâncias com a rapidez do pensamento."
Kardec chamava o perispírito de corpo etéreo, possivelmente porque o conceito de éter era aceitável na ciência de seu tempo, mas neste parágrafo abordarei mais o conceito de espírito/ alma.
Utilizando-se dos "médiuns ativos", Kardec em sua época, dialoga com espíritos que explicam alguns pormenores de como os espíritos percorrem distâncias e tais assuntos foram publicados em algumas edições das Revistas Espíritas. Resumidamente, o espírito desencarnado, que tem só seu corpo "etéreo" ou "fluídico" ignora praticamente todos obstáculos materiais, porém a locomoção parece influenciada conforme seu desapego ou apego ao mundo corpóreo/ material e conforme suas afinidades com ideias e princípios de outros espíritos encarnados ou desencarnados.
A "vida após a morte" ou sobrevivência da psiquê, também abordada em antigas obras da filosofia, é um assunto que trabalha a esperança: A esperança de reencontrar seres amados, de justiça ou de novas chances para se viver. Apesar disto, ela lida com o desconhecido, por isso a opinião humana varia muito sobre o tema: desde medo diante o desconhecido, até dúvida, recusa ou desprezo por tal ideia. A verdade é que o conceito de "não existência" do espírito e de sua imortalidade parece ter ganhado força gradualmente nas elites intelectuais e econômicas da Europa na Era Moderna, mais especificamente na transição da renascença ao iluminismo. O conceito de não existência não é uma construção de conhecimento, como já mencionado neste texto: De acordo com Platão, tudo o que é desconhecido ou onde há dúvida, é passível de ser investigado; Não se pode afirmar sobre a inexistência de algo, pois se algo não existe, não pode ser conhecido. Portanto afirma-se sobre o que se conhece e o resto se investiga (não só cientificamente, mas filosoficamente) ou fica restrito à mera opinião.
"7. ─ O fluido que compõe o perispírito penetra todos os corpos e os atravessa, como a luz atravessa os corpos transparentes. Nenhuma matéria é obstáculo para ele. É por isso que os Espíritos penetram em toda a parte, nos lugares mais hermeticamente fechados. É uma ideia ridícula crer que eles entrem por uma pequena abertura, como o buraco de uma fechadura ou a chaminé."
Cientificamente parece que era (e certamente ainda é) impossível abordar tal tema. Apesar de especular sobre a relação do perispírito com a eletricidade e o magnetismo em alguns de seus textos no Livro dos Médiuns e Evocadores e nas Revistas Espíritas, Kardec constrói tais argumentos via diálogo e reflexão, sem análise sensorial amplamente aceita: uma ou outra pessoa pode alegar sentir algum estímulo sensorial de origem desconhecida que poderia ter relação com o conceito de perispírito, mas fenômenos públicos deste tipo são muito raros e não reprodutíveis, devido a origem psíquica/ intencional relativa ao(s) espírito(s). Também vale relembrar que a física (ciência) da época de Kardec era newtoniana: tratava o espaço (tridimensional) como algo absoluto e assim ficava difícil imaginar que os espíritos fossem independentes do espaço.
"8. ─ Os Espíritos povoam o espaço. Eles constituem o mundo invisível que nos rodeia, em meio ao qual vivemos, e com o qual estamos em contato incessante."
Como mostrado anteriormente, os espíritos podem interagir através do espaço, mas certamente não se limitam a ele - esta era uma possível interpretação com limitações típicas da maior parte do século 19; O astrofísico germânico, Johann K F Zollner (1834-1882) teorizou que alguns dos fenômenos "mediúnicos" poderiam estar relacionados à quarta dimensão, mas não obteve grande aceitação no meio científico por variados motivos. Tal conjectura não é impossível, mas parece ficar em um impasse; Apesar da quarta dimensão " ter sido uma descoberta matemática que serviu de base para Hermann Minkowski (1864-1909) explicar o "tempo quadrimensional", posteriormente utilizado na teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), ela se trata de algo não investigável pelo método empírico. Assim tal saber certamente permanece pouco conhecido e relegado ao campo de teorias ou taxado como sendo de pouca aplicabilidade.
"9. ─ Os Espíritos têm todas as percepções que tinham na Terra, mas em mais alto grau, porque suas faculdades não são amortecidas pela matéria; têm sensações que nos são desconhecidas; veem e ouvem coisas que os nossos sentidos limitados não nos permitem ver nem ouvir. Para eles não há escuridão, salvo para aqueles cuja punição é ficarem temporariamente nas trevas. Todos os nossos pensamentos repercutem neles e eles aí leem como num livro aberto, de sorte que aquilo que poderíamos ocultar a qualquer um quando vivos, não o podemos mais, se ele é Espírito."
Kardec detalha melhor as percepções dos espíritos ao longo de suas obras (revistas inclusas) - Resumidamente ele explica que a moral (que não é algo meramente individual, portanto trata-se de valores universais e ética) influencia na percepção dos espíritos: quanto mais ético/ puro (justo, benevolente etc), mais apuradas as percepções do espírito. De fato é mais difícil ocultar pensamentos e atividades mentais ante um espírito pois estes independem dos corpos, mas mesmo isto tem algumas variações conforme as explicações da obra espírita (de afinidade, possível nível moral do espírito etc). Por fim, a "punição" é um conceito perigosamente simplório: é claro que há justiça tanto na visão espírita como há nas religiões e na filosofia; mas vale lembrar que Kardec e os demais espíritas se pautam principalmente nos ensinamentos de amor piedoso de Jesus e este diz "nem meu Pai julga" e "hipócrita, tirai primeiro o ramo do próprio olho, e então verá o cisco no olho alheio". Desta forma, a "punição' é entre o indivíduo que erra e a lei divina, pois "aquele que se orgulha de sua obra má, teme a luz e foge para a escuridão" - o espírito moralmente inferior nada pode ocultar daqueles que são verdadeiramente benevolentes, justos e piedosos. Estes são alguns indícios (entre outros) de que o espiritismo também está de acordo com a filosofia de Platão - para o filósofo, as virtudes ou excelências como a coragem, a moderação/ auto controle, a justiça e a bondade/ beleza psíquica estão relacionadas à verdade, pois são imutáveis (não se desgastam com o tempo) e unas (universais, não relativas nem meramente individuais). O hiper ouranos citado por Platão na obra Fedro, faz alusão a uma dimensão não só alcançada por algum tipo de transe ou estado alterado da consciência (as manikes e mantikes aobrdadas no texto), mas também a uma realidade sem malevolência onde os "deuses" viveriam.
"10. ─ Os Espíritos conservam as afeições sérias que tinham na Terra. Eles sentem prazer em voltar para junto das pessoas que eles amaram, sobretudo quando são para elas atraídos pelo pensamento e pelos sentimentos afetuosos que lhes são dedicados, ao passo que são indiferentes em relação àqueles que lhes votam apenas indiferença."
O amor sincero e sem interesses particulares é um exemplo de afeição que se propaga através do espírito para além da mera vida material. Este argumento aborda a importância de bons sentimentos como esperança, amor e serenidade e está de acordo com os ensinamentos de Jesus e até mesmo de outras religiões. Uma visão mais universal como esta tem maior abertura ao diálogo inter religioso pois trata-se de uma espiritualidade aberta e ética. Aqui também nota-se que o espiritismo não trata só da perspectiva racional da consciência, pois aborda os sentimentos de modo transcendente, para além da vida corpórea;
"11. ─ Os Espíritos podem manifestar-se de muitas maneiras diferentes: pela visão, pela audição, pelo tato, pelos ruídos, movimento de corpos, escrita, desenho, música, etc. Eles se manifestam por meio de pessoas dotadas de uma aptidão especial para cada gênero de manifestação, e que são designados pelo nome de médiuns. É assim que se distinguem os médiuns videntes, falantes, audientes, sensitivos, de efeitos físicos, desenhistas, tiptologistas, escreventes, etc. Entre os médiuns escreventes há numerosas variedades, conforme a natureza das comunicações que são aptos a receber."
Em outros pontos de sua obra, Kardec admite que todo ser humano é médium - o que difere cada um é a frequência e intensidade com que ocorrem as percepções/ contatos mediúnicos; Muitas pessoas podem passar toda uma vida sem perceber fenômeno algum, outros podem confundir; alguns podem ter por um determinado período, enquanto outros têm pela vida todo; Os motivos são os mais variados possíveis, pois envolvem necessidades particulares e coletivas, estágio psíquico e moral que se encontram as pessoas, disponibilidade, cultura etc. Ao longo de sua obra Kardec mostra um certo esforço em classificar os médiuns, mas isto tem as limitações de sua cultura e época.
Entender o espírito humano como incorpóreo não completamente a parte do corpo, mas em relação com este, possibilita uma postura de respeito verdadeiro às áreas da ciência e às religiões - pois o espiritismo trazido por Kardec não é uma religião com hierarquias ou ritos e tem poucos pressupostos ou dogmas: A imortalidade do espírito, a reencarnação e Deus onipresente e não-pessoal, baseado nos ensinamentos de Jesus os quais não detalharei aqui;
Embora seja possível afirmar que não existam "provas" suficientes de um agente intermediário entre corpo e mente, o conceito de perispírito não é menos provável que o materialismo que reduz a vida ao corpo e aos efeitos eletroquímicos neste. Não foram encontrados marcadores biológicos para todos problemas mentais do ser humano e reduzir sentimentos e sentido existencial a meros efeitos neurológicos é negar cosmovisões, portanto é uma postura antiética. O materialismo, seja um empirismo ou qualquer outro que nega o psiquismo e o espírito, pode afirmar que busca construir um conhecimento com "rigor científico" baseado em "evidências", mas em última instância se apoia em negação e impõe uma visão da realidade que apesar de contrária às religiões em geral, é tão dogmática como muitas visões religiosas da realidade.
Embora Kardec não se empenhe em discutir a construção de conhecimento comparando pressupostos, que de certo modo, são pré suposições, Platão o faz ao longo de sua obra, e mais profundamente em seus textos "Teeteto" e "Sofista". O filósofo grego indica que reduzir tudo à matéria ou ao espírito, são teorias incompletas e assim propõe uma construção de conhecimento aberta, pautada por valores universais, unindo epistemologia, ontologia e ética.
Por sua vez, ao invés de negar visões de mundo, o espiritismo possibilita um enfoque na ética, não muito diferente da filosofia iniciada por Platão: O ser humano deve trabalhar sua moral individualmente de um modo pedagógico e também filosófico, e isto não o isola da realidade material, portanto, ele deve se desenvolver eticamente nas relações em geral; Quando colocado em prática, este trabalho com uma postura universal do ser humano resulta em uma sociedade/ civilização mais justa, equitativa e enfim, ética. Assim o espiritismo não se reduz a um campo da ciência nem a uma religião, ele serve de base epistemológica respeitando normalmente outras áreas do conhecimento, simplesmente reconhecendo uma realidade para além da material. Trata-se de um "pressuposto" ou base teórica mais aberto(a) e portanto mais amplo do que os exclusivamente materialistas ou idealistas, possibilitando diálogo com diversas culturas e com a espiritualidade em geral, seja religiosa ou não.
Ainda que Kardec pudesse discordar de pontos de uma ou outra religião, em seus textos, ele indica que o tempo mostrará quais estão mais ou menos certas - isso é evitar impor sua visão de realidade sobre os outros - elemento ausente em muitas religiões e na corrente principal da ciência que é materialista, relegando todo relato/ argumento espiritual à condição de alucinação (estado patológico etc) ou à mentira.
Em um próximo texto devo completar a análise deste artigo de Kardec e trazer reflexões filosóficas sobre o que deve haver entre a psiquê humana e o corpo; Há quem diga que isto é questão de pressuposto, mas a importância de tal tema não deve se reduzir a uma mera "neutralidade" racional/ científica, pois não há epistemologia (construção de conhecimento) sem ética e consequentemente não há conhecimento, verdade ou justiça sem universalidade e sem filosofia.