Breves observações sobre "Político" (Da Realeza)

Platão mostra o diálogo entre o estrangeiro (xenos, em grego) e um jovem “xará” de Sócrates. O diálogo em seu início trata de uma breve tentativa de classificar o político; 

258d - 268c Após separar o conhecimento teórico do prático, eles começam a definir o político como alguém que tem um conhecimento teórico. Depois definem que ele dá certos tipos de ordem, executa leis e faz demandas. O político também governaria um estado independentemente de seu tamanho e serviria seres com psiquê (alma) e não meros objetos. Entre os seres “almados” (enpsiquen), ele governaria humanos e não os animais; Porém se governasse somente os mansos e manipuláveis, ele seria um mero sofista e, por um outro lado, se governasse pessoas questionadoras e/ ou rebeldes, seria destronado, não sendo um político/ governante de fato. 

268d - 272c Após isto o estrangeiro começa sua argumentação baseada nos mitos gregos, focando em contar uma versão “modificada” do mito da era de ouro governada por Cronos; O tradutor Edson Bini compara este mito com a história do Éden da gênese bíblica, quando os “seres humanos” viviam em uma plena condição de ócio constante, sem necessidade do trabalho para sobreviverem. 

Entende-se que, de acordo com o texto de Platão, o universo (cosmos) corpóreo é imperfeito desde sua origem, e que, seu período mais perfeito foi sob a condução (governo) de Deus (theos/ theon) e/ ou do megisto daimoni (uma mega-divindade ou mega-espírito, possivelmente Cronos ou o artesão/ demiurgo) e os daemons (semi-divindades, espíritos bons). Apesar de herdar algumas qualidades abençoadas daquele que o gerou, o universo, devido sua corporalidade, tem sua imperfeição, e por isso, sofreria sucessivas inversões de seu movimento circular, quando deixa de ser conduzido pelo timoneiro (Cronos? demiurgo?) Destes períodos de movimento invertido, somente alguns indivíduos escolhidos por (seu?) theos (Deus) teriam outro destino (não seriam atingidos pela inversão). O estrangeiro diz que este timoneiro do universo larga seu timão e retira-se para o posto de vigia, quando todas as almas completam todos os nascimentos tantas vezes quanto foram prescritas. Poderia este trecho do texto de Platão, ter relação com o conceito de “apocatástase”, a salvação de todos os seres, ensinado pelo cristão neo platônico, Orígenes de Alexandria (185-253 dC)? 

Continuando o diálogo, o estrangeiro diz que descreveu este mito para destacar um grosseiro erro cometido anteriormente: A ideia de que um político ou rei governa uma multidão de seres humanos como um pastor guia sua manada não serve para explicar os humanos de seu ciclo, pois é a descrição do governo feito pelo divino (pelo timoneiro…) 

277c - 278c Ele diz então que sente-se como se soubesse do assunto em sonho, mas quando desperto, esquecia o que sabia. A partir disto, o estrangeiro diz que primeiro deve-se aprender o mais fácil, para depois aprender o mais complexo, citando um exemplo de crianças que aprendem a ler as sílabas curtas e fáceis que conseguem pronunciar primariamente, para depois aprender aquelas mais difíceis que elas começam a falar falsamente/ erroneamente. O estrangeiro conclui que alguém que começa com a falsa opinião (e aceita ela como se fosse verdade) não poderia atingir nem uma diminuta parcela da verdade nem adquirir sabedoria. 

O estrangeiro segue o diálogo buscando exemplos comparativos com a tecelagem; após separar elementos e processos do trabalho com o tecido, o estrangeiro diz que a tecelagem, sendo um tipo de arte de combinação, forma um todo, ou seja, forma um item apropriado para um determinado fim, graças a conclusão do processo de entrelaçamento da trama e da urdidura (posicionamento dos fios ao longo do tear). Este item, chamado de roupa de lã, é o objetivo da arte chamada de tecelagem; Após isso, o estrangeiro propõe examinar o caráter do excesso e da deficiência, com o objetivo de ter uma base racional para atribuir louvor ou censura adequadamente à prolixidade ou brevidade nas conversações deste tipo (com o objetivo de construir conhecimento): 

284a-d Estrangeiro: "Se as naturezas não se dirigem senão para a maior ou para a menor, nunca o são para a média*: não é isso? 

Sócrates mais jovem: Isso."

[* “o que está na devida medida”, de acordo com a tradução de Edson Bini.] 

"Estrangeiro: Não são por essa avaliação destruídos os universos das artes e dos seus ofícios, e não destruímos também a política desejada e o referido tecido cuja definição já contamos? Pois todas elas, sem dúvidas, mantêm a medida da moderação cuidadosamente, vigilantes no que tange ao excesso e à deficiência, não como se fossem negligentes em suas ações, e dessa forma preservam a moderação e sempre fazem o bem e trabalham bem. 

Sócrates mais jovem: Decerto que sim. 

Estrangeiro Se aniquilarmos a política, nossa busca pelo conhecimento da ciência real (da realeza, do governo) será em vão, não é mesmo? 

Sócrates mais jovem: Certamente. 

Estrangeiro: Bem, tal como fomos compelidos no caso do sofista* a ser o não-ser, porque naquela altura a razão (logos**) nos escapou, agora, portanto, o mais alto e o mais baixo são medidos não apenas em relação uns aos outros, mas também para a geração média (do que está na medida). Não é o que devemos fazer? Pois sem isso ser admitido, a existência do político, ou de qualquer outra pessoa que tenha conhecimento dos assuntos práticos, não pode ser formulada de maneira incontestável."

*Alusão ao diálogo Sofista, sobretudo 235a em diante; 

**Neste ponto, “logos” é traduzido como argumento por Edson Bini; 

O estrangeiro então diz que deve-se medir o maior e o menor não só em sua relação recíproca, mas também na relação com o estabelecimento do que está na medida, pois se este existe, também eles existem; (...) Uma existência jamais é possível na ausência de outra existência; 

Isto parece estar em acordo com uma construção de conhecimento que vai além do reducionismo, ou seja, que não é reducionista. Alguns exemplos seriam: o estudo dos campos eletromagnéticos além do mero estudo das partículas e o estudo dos campos eletromagnéticos dos órgãos dos seres vivos, ao invés de estudar apenas os conjuntos de órgãos do corpo separadamente; 

[284e] "Sócrates mais jovem: Isso está correto, mas e depois disso? 

Estrangeiro: É evidente que dividiremos a arte da medição em duas, como foi dito. Cortando-a, damos a uma delas, a função de medir o número e os comprimentos e as profundidades e as larguras e a velocidade em relação aos seus opostos; e a outra, se ocupa da medição em relação ao moderado e ao apropriado e ao oportuno (kairon) e ao devido (deon) e a todos padrões situados na média dos extremos."

Neste trecho, Platão parece querer dizer que além de medir as coisas em relação umas com as outras (medir em comparações, ou em relatividade), é preciso medir as coisas em relação a uma média. Esta média nem sempre parece meramente matemática, como é mostrada no último parágrafo: Deve-se medir as coisas em relação ao que é apropriado ou devido. Isto é um indício que Platão dava importância em buscar estudar as coisas para se alcançar o melhor resultado possível e este melhor resultado não é meramente corpóreo/ sensorial: é ideal e ético, certamente relacionando-se com o conceito de bom e belo (kalos) de Platão; 

285d "(...) me parece que a maioria dos indivíduos não consegue notar que algumas coisas “que são” (tôn ónton) apresentam semelhanças sensíveis de fácil percepção; Não é difícil indicá-las quando alguém está desejoso de proceder a uma fácil demonstração - que não implica problema algum e sem recorrer ao meio verbal - a alguém que solicita uma explicação destas coisas. Por outro lado, as maiores e mais valiosas concepções não apresentam imagem alguma claramente elaborada para o uso humano, imagem que aquele que quer satisfazer a mente do investigador possa aplicar a algum de seus sentidos e, por meio de uma mera demonstração, atingir esta meta. É necessário então, nos empenharmos por meio da prática para adquirir capacidade de apresentar e compreender uma definição racional de cada uma delas. De fato, as coisas incorpóreas, que são as mais excelentes e as mais importantes, só podem ser exibidas pelo discurso racional, e é no seu interesse que tudo que estamos dizendo é dito. Entretanto é sempre mais fácil praticar com coisas de pouca importância do que com coisas de maior importância."

Interessante notar que, ao defender a importância de discutir “coisas incorpóreas” pelo discurso racional, Platão acaba demonstrando a importância de se buscar a ética e os valores universais - pois são temas de extrema importância de serem colocados em prática não só nas leis que regem as sociedades, mas também na construção de conhecimentos, como por exemplo, na ciência, na filosofia etc… 

 

Um comentário:

  1. Numa possível interpretação, Cronos conduzindo o movimento do universo como um timoneiro deve representar a divindade que "separou" o ciclo (talvez representado pelo zero ou pelo infinito) dos números 1 a 9. Isto seria gerar o tempo como percebemos na vida sensorial/ encarnada - gerar o enumerável, a realidade mensurável/ passível de medição. Assim, ele pouco ou nada diferiria de Chronos (o tempo): "largaria o timão", numa espécie de renovação de um ciclo temporal e psíquico, onde todas almas completariam uma totalidade de encarnações. no cosmos... Neste caso Cronos não pode ser o Theon Hegemon/ Nous. Ele complementaria um conceito "trínito" de Deus: representando os números de 1 a 9, estaria ao lado de Ouranos/ Urano, o ciclo, que por sua vez representaria o "0" e/ou infinito. Cronos e Urano estariam sob Nous, a mente cósmica/ Theon/ Deus que criou ambos, resultando em toda a matemática/ lei divina e natural. Uma viagem misturando o místico (transcendente), o mítico (linguagem mitológica) e o racional (matemática/ filosofia)...

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