Breves Observações sobre Filebo (do Prazer e da Ética)

Continuação do diálogo Filebo:

Na parte anterior do texto, Platão mostra que Sócrates ensinou aos seus interlocutores, que há 4 gêneros de coisas ou de fenômenos: O finito (uno), o infinito, o misto de finito com infinito (de certo modo, o enumerável) e a causa (nous, a inteligência divina, o conhecimento divino). O prazer se situa no gênero de fenômenos infinitos. A inteligência por sua vez, é aparentada à causa, embora a inteligência humana possa estar no gênero misto, ou enumerável. 

Sócrates segue dizendo que o prazer e a dor nascem do gênero misto: Quando há uma quebra da harmonia nos seres vivos, surge a dor, e, quando há a recuperação desta harmonia, ou seja, a restauração da natureza, ocorre o prazer.

(...) 32a Sócrates – A sede, por sua vez, é destruição e dor. O inverso é prazer a atuação do úmido no ato de encher o que secou (reabastecimento). Do mesmo modo, a desagregação e a dissolução contra a natureza, causadas em nós pelo calor, é sofrimento, como é prazer a volta ao estado natural e ao frescor. 

Protarco – Perfeitamente.

Sócrates – Da mesma forma, a congelação contra a natureza que o frio opera nos humores do animal é sofrimento; mas, quando eles retornam ao seu estado natural e voltam a dissolver-se, esse processo conforme a natureza é prazer. Em uma palavra, vê se te parece razoável dizer que na classe dos seres vivos, formados, como declarei, da união do infinito com o finito, sempre que essa união vem a destruir-se, tal destruição é dor, e o contrário disso: em todos eles é prazer o caminho para sua própria natureza e conservação.

32c-34a (…) Sócrates conclui que as necessidades dos seres vivos, particularmente dos seres humanos, como a sede e a fome são um tipo de dor, enquanto a satisfação de tais necessidades é um tipo de prazer. A esperança de um prazer ou de um saciar vindouro, bem como o medo de uma dor ou de uma escassez (necessidade) vindoura, são antecipações feitas pela psique (mente, alma). Portanto estes exemplos de Sócrates não afetam só o corpo, mas também a psique e, além disto, podem causar expectativas. Embora estes exemplos de prazer e dor sejam mais puros, Sócrates diz que existem casos misturados, como por exemplo, os de sentir calor e frio, que podem ser tanto aliviantes como desconfortáveis, ou mesmo, nocivos. 

Sócrates explica que de todas as pathemáton (afecções ou emoções) a que nosso corpo está sujeito, algumas se extinguem no próprio corpo antes de alcançar a alma, deixando-a impassível, enquanto outras atravessam o corpo e a alma, causando-lhe abalo (seismón) a um tempo comum ambos e peculiar a cada um. As que não passam pelos dois escapam a nossa alma, como não lhe escapam as que passam. Ao dizer que uma afecção não passa pelo corpo, ou que escapa da alma, não deve-se interpretar a expressão como falasse do esquecimento. O esquecimento é perda da memória e, no presente caso, a memória ainda não nasceu. É absurdo falar de perda do que não existe e ainda não nasceu. Então, Sócrates recomenda que em vez de dizer, quando algo escapa à alma, que esta esquece (léthen) os abalos do corpo, será preferível dar o nome de insensibilidade (aenesthesin) ao que denominamos esquecimento. Mas quando o corpo e a alma são afetados pelo mesmo agente e se movem a um só tempo (comovem), o nome de aesthesin (sensação ou percepção) a esse movimento, é o mais apropriado. Isto seria a conexão da alma e do corpo em um único estado emocional comum e em um único movimento. A memória seria a preservação desta percepção ou sensação, enquanto a recordação (reminiscência) seria quando a psique, sozinha e independente do corpo, lembra de qualquer coisa que experimentou junto ao corpo.

34a-35d Então Sócrates explica que as reminiscências e a memória desempenham papel central no processo de lembrar das boas e das más sensações… Mesmo daquelas atribuídas normalmente ao corpo como fome, sede etc. 

A seguir Sócrates afirma que quando vemos algo de longe, naturalmente nos perguntamos o que é. Daí podemos formular uma opinião certa ou errada.

O fato de perceber algo de maneira incompleta ou mal, ou o fato de não perceber algo, não nos dá uma visão completa de uma verdade. Então as coisas podem parecer maiores ou menores do que realmente são.

Isto é nítido na visão que as pessoas têm da dor e do prazer: O prazer chama mais atenção, é mais desejado, parece maior, mais intenso etc. A dor e a dificuldade sendo diminuídas, muitas vezes são ignoradas pelas pessoas que não as sentem diretamente. 

A memória gravaria as sensações na alma a partir das percepções e experiências. Portanto entende-se que o corpo mantém-se separado da alma e suas respectivas afeições. 

Após criticar aqueles que se entregam aos prazeres materiais a ponto de entrar em estados de torpor, histeria, vício etc, Sócrates dá exemplos dos males da alma: 

 Sentimento de inveja e prazer na desgraça alheia; Ignorância; Orgulho, vaidade, valentia; Rir da situação ridícula de um amigo… 

“Sócrates – Há duas espécies de coisas: a que existe por si mesma e a que sempre deseja outra. 

Protarco – De que jeito e que coisas são essas? 

Sócrates – Uma é de natureza nobre; a outra lhe é inferior. 

Protarco – Seja mais claro. 

Sócrates – Já vimos belos e excelentes jovens e também seus valorosos apaixonados. 

Protarco – Sem dúvida.” 

Sócrates – O que afirmo é que os remédios, todos os instrumentos e todos os materiais são sempre aplicados em vista da geração, e que cada geração se faz em vista desta ou daquela essência, e a geração em geral, em vista da essência universal. 

Protarco – Ficou bastante claro. 

Sócrates – Nesse caso, se o prazer for, de algum modo, geração, necessariamente terá de sê-lo em vista de alguma essência. 

Protarco – Como não? 

Sócrates – Assim, a coisa em vista da qual se faz em vista de qualquer coisa pertence a classe do bem; mas o que é feito em vista de qualquer coisa, meu caro, devemos colocar numa classe diferente. 

Protarco – Forçosamente. 

Sócrates – Estando, pois, o prazer sujeito à geração, andaríamos certo se incluíssemos numa classe diferente da do bem? 

Protarco – Certíssimo, sem dúvida. 

Os prazeres, ou a maioria deles, ficariam em uma categoria abaixo das propriedades mentais como a inteligência, a bondade, a moderação. 

Ao avaliar os prazeres, Sócrates classifica como mais baixos os que se misturam com a dor e os de grande intensidade física. 

Os prazeres dos cheiros e sabores viriam em seguida… 

Então os auditivos e os visuais (No diálogo Hípias Maior isto é reforçado) 

Os maiores e mais nobres seriam os mentais: Relacionados à inteligência, o conhecimento, à humildade, à solidariedade, ao amor, à bondade etc 

Então ele cita a necessidade do movimento, da mudança e da mistura... 

Sócrates – Resolves, então, que eu ceda e abra de par em par a porta, à maneira de um porteiro comprimido e forçado pela multidão, e deixe entrar todos os conhecimentos, para que os impuros se misturem com os puros? 

Protarco – Não percebo, Sócrates, que mal adviria do fato de aceitarmos todos os conhecimentos, uma vez que ficássemos com os de primeira qualidade. 

Sócrates – Tal como dissemos há pouco: Não é possível, nem disso adviria nenhuma vantagem, que qualquer gênero puro permaneça à parte e solitário. Se compararmos os gêneros entre si, de todos o melhor para nosso companheiro de casa é o que conhecer a todos e a nós outros por maneira tão perfeita quanto possível. 

Sócrates – Mas ainda há um ingrediente indispensável, sem o qual nada se poderá fazer. 

Protarco – Qual é? 

Sócrates – Se não incluirmos verdade na mistura, nada poderá nascer nem verdadeiramente subsistir. 

Protarco – Como fora possível? 

XL – Sócrates – Não há jeito. E agora, se ainda faltar alguma coisa para nossa mistura, tu e Filebo que se manifestem a meu parecer, o argumento já está completo, podendo ser comparado a uma espécie de ordem incorpórea que dirige admiravelmente bem um corpo animado. 

 Protarco – Ficas autorizado, Sócrates, a dizer que essa, também, é minha maneira de pensar. 

 Sócrates – E se declarássemos que nos encontramos agora no vestíbulo da casa do bem, teríamos falado com muita propriedade. 

(...) Sócrates – É que, se em qualquer mistura faltar medida e proporção na natureza de seus componentes, fatalmente se arruinarão seus elementos e ela própria. Deixará de ser uma mistura regular, para transformar-se num amontoado heterogêneo, que será sempre um verdadeiro mal para seus possuidores. 

Protarco – É muito certo. 

Sócrates – Agora, tornou a escapar-nos a essência do bem, para asilar-se na natureza do belo. Pois é na medida e na proporção que sempre se encontra a beleza e a virtude. 

Protarco – Perfeitamente. 

Sócrates – Como também declaramos que a verdade entrava nessa mistura. 

Protarco – Certo. 

Sócrates – Assim, no caso não podermos apanhar o bem por meio de uma única idéia, recorramos a três: a da beleza, a da proporção e a da verdade, para declarar que todas elas reunidas, podem ser consideradas verdadeiramente como a causa única do que há na mistura, a qual passará a ser boa pelo fato de todas o serem. 

Sócrates classifica os bens na seguinte ordem, no final do diálogo: 

O moderado, a medida e o apropriado; 

O belo, bom (kalos), perfeito, suficiente (simétrico); 

A sabedoria, inteligência, mente (nous) que busca a verdade; 

Os conhecimentos (epistemes), artes (tekhnes) e opinião correta (doxos orthos); 

Os prazeres sem dor e prazeres puros da alma relacionados ao conhecimento (episteme) e às vezes aos sentidos; 

Interessante notar as conclusões possíveis a partir do diálogo entre Sócrates e Protarco, ou, mais precisamente do texto "Filebo" de Platão: 

Este e outros textos de Platão, já indicam que a matemática estava na filosofia desde o século 4 a.C. (possivelmente antes, com Pitágoras) e na verdade, ela nunca deixou a filosofia. Vide o filósofo e matemático fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, que na virada do séc 19 ao 20, já discutia se a matemática era uma invenção humana ou uma lei natural descoberta pelo ser humano. O próprio Husserl mudou de ideia sobre esta questão ao longo de sua carreira! 

A ideia de "uno" e "infinito" discutida em Filebo de Platão são conceitos surgidos na filosofia que inevitavelmente tocam a matemática: O autor explica que o que é passível de medição, ou seja, o enumerável, seria o meio termo do uno com o múltiplo, ou do finito com o infinito, e seria gerado pela causa - Nous. Nous, por sua vez, foi traduzido ao português ora como conhecimento, ora como inteligência. Mas se trata de uma inteligência divina, criadora (superior ao ser humano, pois certamente "está lá" desde o "início" do universo) como o próprio autor explica; o arquiteto ou demiurgo. Inclusive a matemática obviamente trata de duas coisas imateriais ou, ao menos, "não-materializáveis" / incorpóreas: o zero e o infinito. O primeiro parece mensurável, mas é ausência de algo, ou inexistência, enquanto o segundo obviamente nem é mensurável ou passível de medição, porque não tem fim. Sendo assim, isso não é (ciências) exatas - ainda é uma questão filosófica, passível de ser discutida racionalmente, mas que não pode ser plenamente coberta por um método empírico de investigação, afinal quem poderia medir o infinito? Quem poderia fazer uma demonstração material do zero?

Sendo a matemática algo mais amplo do que um estudo empírico, ou mais vasto do que um saber de pressuposto materialista pode cobrir, ela pode ser discutida juntamente com as questões da finalidade das coisas, as melhores maneiras das coisas serem (ontologia de Platão) e com a ética de acordo com Platão, a ideia (eidos) do bem (kalos). 

 Enfim, a matemática faz parte da filosofia e é analisável por este saber. Embora ela trate principalmente do enumerável e passível de medição, ela tem ao menos alguns fundamentos em conceitos mais abstratos/ filosóficos como o zero e o infinito. E mesmo a parte especificamente enumerável / passível de medição mencionada por Platão também é alvo de investigação filosófica, pois o filósofo identificou que todo estudo humano trata desta "parte" da lei natural ou matemática e que a beleza, relacionada com o bem (kalos) está nesta lei desde a sua causa, ou seja, há a beleza e o bem, desde o "ínicio do universo", a "criação de tudo" pela causa - Nous.

 

Um comentário:

  1. Dividir coisas em múltiplas partes é um método comum nos estudos, particularmente na ciência. Talvez tal método de estudar as partículas seja estudar o infinito e se for isso mesmo, faz-se necessário também estudar o uno, ou o que é ou está relacionado ao finito: os campos. O que integra ou une os átomos e suas partículas é o campo eletromagnético. Campos eletromagnéticos estão presentes nos átomos, no planeta/ nos astros e até nos órgãos do corpo humano...

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