Observações sobre "Político (ou, Da Realeza)"

Esta é a 2ª parte das observações sobre a obra "Político (ou, Da Realeza)" a partir do trecho "288a". 

Através do personagem "estrangeiro" ("xenos"), Platão indica várias classes da sociedade separando-as dos governantes (trabalhadores diversos, comerciantes, sacerdotes etc) pois suas funções objetivas não se refere a governar uma cidade ou estado e todas as suas classes de pessoas. 

O diálogo segue com o estrangeiro refletindo e explicando sobre a arte régia, do governante, ao "jovem Sócrates". 

O estrangeiro entende que é preciso um conhecimento ("episteme", traduzido como ciência por Edson Bini) para se governar. Esse conhecimento não é especificamente prático, pois está mais para uma ciência ou arte de observar, gerir e administrar várias outras artes e ocupações da sociedade. Conforme sua explicação, governar não é uma questão a ser resolvida por muitas ou poucas pessoas, por pobres ou ricos nem por voluntários ou escolhidos involuntariamente. 

Sendo uma episteme, a arte de governar, não poderia ser adquirida pela maioria de uma cidade ou estado e sim, seria algo aprendido ou desenvolvido por poucos indivíduos. O verdadeiro sistema de governo descrito pelo "estrangeiro" então, é aquele o qual o governante é detentor da episteme e não alguém que somente parece ter tal conhecimento. 

Neste ponto do diálogo, o jovem Sócrates diz ao estrangeiro, que dificilmente um governo seria realizado sem leis e este o responde que, em certo sentido (ou conforme dizem alguns), a legislação pertence à arte do rei/ do governante. 

Porém, o protagonista (o estrangeiro), segue explicando que as leis nunca abarcam o que é mais justo, ou mais excelente, para todos simultaneamente. As diferenças entre seres humanos e suas ações e as instabilidade de seus negócios fazem com que nenhuma arte consiga estabelecer uma regra de aplicação universal o tempo todo. 

Citando o exemplo de um médico ou professor de ginástica que se ausenta e decide deixar instruções para seus pacientes/ alunos, o estrangeiro explica que, ao retornar de sua ausência esse médico/ professor constataria que seus pacientes/ alunos mudaram de comportamento (por uma razão qualquer) em desacordo com suas recomendações deixadas anteriormente. Neste caso, seria necessário uma mudança das regras/ "leis" instituídas que se tornaram insuficientes ou inadequadas. Se o governante não mudasse as leis em um caso como este exemplo, certamente seu conhecimento (episteme) seria exposto ao ridículo. 

O estrangeiro então prossegue dizendo que em casos como este, a pessoa que tem uma melhoria a oferecer em relação à lei obsoleta, geralmente é aconselhada a persuadir o estado. Porém se alguém decide usar a força (a violência) ao invés da persuasão, para impor uma nova lei no lugar da antiga, estaria cometendo um erro pernicioso por falta de arte. As pessoas forçadas por tal atitude são consideradas vítimas de injustiça, opressão e maldade. Em seguida o estrangeiro diz que o homem sábio e justo que governa um estado, deve realizar o que é benéfico aos cidadãos, fazendo de sua arte a lei. É válido notar que arte (tekhnes) é intercambiável com conhecimento (episteme) neste texto.

Os argumentos seguintes do estrangeiro comparam o(s sistemas de) governo com profissões, especificamente com o médico e o timoneiro: Se os mais ricos assumem todos os cargos destas duas profissões, muitos que não conhecem a arte da medicina ou da navegação iriam exercer tais profissões com base nos seus ganhos e interesses particulares, eventualmente vindo a serem subornados e causando grande dano aos pacientes e/ ou aos navegadores, pessoas na embarcação. Este exemplo compara ambas profissões ao governo da oligarquia. 

Em seguida, o personagem diz que se os cargos de médico e de timoneiro fossem ocupados pelo povo sem o conhecimento necessário para praticar tais profissões, os resultados danosos também ocorreriam devido às escolhas feitas. Estas escolhas seriam feitas por votação da maioria que ignoraria a necessidade do conhecimento para se exercer tais funções. Esta é a comparação com a democracia. 

O texto neste trecho mostra que alguém com o conhecimento da arte régia/ política que questionasse uma incompetência ou injustiça cometida pelos governantes destes sistemas de governo falhos, seria acusado de estar falando das "coisas do céu ou do além" e "incitando a corrupção da juventude". Uma clara referência às acusações feitas contra Sócrates e que o levaram a ser condenado à morte.

No decorrer da obra, são apresentadas 3 formas de governo imitativas do governo real e ideal*, sendo elas: a democracia, a aristocracia e a monarquia. Estas 3 categorias de governo são meras imitações do governo verdadeiro porque seus governantes não têm (ou raramente teriam) o conhecimento/ a episteme para governar. 

*(o governo dos filósofos, ou seja, daqueles que desenvolveram a compreensão da episteme e que propagam esta, ou a "tekhnes" desta, entre aqueles que não sucumbem à natureza bestial, como será mostrado mais adiante).

As 3 formas de governo ainda podem ser divididas em um total de 6 tipos: A monarquia sem leis efetivas seria a "tirania" (a pior de todas as formas de governo), a aristocracia desregulada seria a "oligarquia" e a democracia sem leis seria o "populacho"* (superior à tirania, à democracia, à oligarquia, à aristocracia, perdendo somente para a monarquia e o governo dos filósofos). O governo dos filósofos então seria superior pelo fato de seu(s) governante(s) aplicar(em) um conhecimento voltado à justiça e à serventia da população de sua cidade / estado. 

*Platão separa a democracia em duas: na "lícita" e na "ilícita", mas não dá 2 nomes a esta categoria de governo. 

Esta esquematização parece indicar que em todos os 6 tipos de governo faltam o conhecimento da justiça, da moderação e do servir aos habitantes da cidade/ estado. Certamente porque esse conhecimento refere-se ao que Platão mostra em sua obra a República: a episteme não pode ser desvinculada da ética: a ideia/ forma (eidos) do bem / belo (kalos). Assim, para servir a população com o déficit de conhecimento, a melhor alternativa seria empossar um monarca apoiado em leis voltadas para o governo e serventia da cidade/ estado. A 2ª melhor alternativa, seria deixar o povo cuidar de si mesmo. Porém como o povo é constituído de um grande número de pessoas com interesses diversos, fazer leis para que a maioria governe, seria pouco eficaz e muito confuso ou conflitivo. Então o populacho teria o mínimo possível de leis, ou nenhuma lei escrita. 

A partir destas observações, torna-se perceptível que a monarquia indicada por Platão é diferente das monarquias hereditárias que existiram na Europa medieval e renascentista, pois estas se alicerçaram na ideia de "poder de sangue" e no apoio de uma religião institucionalizada como ferramenta de poder. A democracia para Platão também não é o que está em vigência no início do século 21 e nem é exatamente o que houve nas polis helênicas de seu tempo (século 4 a.C.). Para o autor democracia seria o governo onde a maioria realmente exerceria poder apoiado em leis que tentassem atender os interesses da maior quantidade possível de habitantes da cidade/ estado. Uma "utopia" quase contraditória, já que certamente ocorreriam (muitos) conflitos de interesse e as leis desta "democracia" teriam que ser modificadas ou ignoradas frequentemente. Não se trata de uma democracia representativa, pois Platão parece falar de um enorme número de pessoas tentando governar a cidade/ estado simultaneamente. A democracia dos países liberais/ neoliberais da idade moderna/ pós moderna se parecem mais com um governo de poucos "representantes" eleitos pela população das nações, severamente influenciados pelos interesses de grupos minoritários de multimilionários, os quais fazem lobby adulterando as leis e sobrepondo seus interesses lucrativos sobre o bem-estar da sociedade e sobre as infraestruturas nacionais. Este governo de poucos é o que Platão classifica como aristocracia ou oligarquia. 

O texto continua com o estrangeiro separando os governantes verdadeiros dos juízes, dos militares e dos oradores (nesta última classe, parecem estar os mestres na arte da retórica, da persuasão e das mitologias, divididos em 2 grupos: os sofistas e os poetas/ rapsodos). 

O estrangeiro então diz que a arte verdadeiramente régia (política) deveria decidir o momento oportuno da instauração das medidas importantes a serem tomadas no estado, cabendo as demais artes cumprirem suas determinações. 

Porém a dificuldade sobre o conhecimento da arte régia está ligada à virtude e como partes desta parecem distintas entre si. Esta aparente distinção entre partes da virtude, permite argumentos contrários entre pessoas que defendem só um aspecto desta em detrimento de outro aspecto. 

O estrangeiro cita o exemplo de um grupo de pessoas que defende o auto controle e outro que defende a coragem. Ambos podem apresentar pontos fracos ao exagerarem na priorização de um só destes aspectos da virtude. A grosso modo, as pessoas exageradamente "autocontroladas" podem se tornar teimosas, desinteressadas por tudo fora de suas rotinas ou totalmente estagnadas, enquanto as demasiadamente "corajosas", tendem a ser belicosas, ambiciosas e invejosas. Estes 2 agrupamentos de atitudes são nocivos para as sociedades.

A arte política então como qualquer arte, é composta de elementos e dos melhores possíveis, continua explicando o estrangeiro. Assim ela (a política) deve testar seus elementos (cidadãos) de modo a confiar àqueles que podem propiciar ensinamento, para que alcancem a meta em vista. A arte régia deve supervisionar mestres designados e tutores que atuam sob a lei para propiciar educação ajustada à composição que esta criando. Aqueles que fracassam absolutamente em temperança ou em coragem (ou que não desenvolvam virtude alguma, ou seja, aqueles que se chafurdam na ignorância ou na maldade) tendem a serem arrastados para um estado de "atheóteta"* e por isso devem ser sentenciados à indignidade (destituição de direitos e/ ou de bens), ao exílio ou à morte. 

*Esse termo que aparece entre o fim "trecho 308e" e início do "309a", significa um ateísmo, mais no sentido de irreligiosidade e descrença nos deuses dos estados helênicos/ gregos da época de Platão. Seria a impiedade, um crime naquela cultura/ "nação". Obviamente não faz sentido esperar que Platão apresente ideias totalmente condizentes com o atual início do século 21, tanto que nas polis gregas do séc. 4 a.C., tratamentos desumanos, como a escravidão e a pena de morte, eram aceitos pelo governo e pela sociedade.

Nota-se que apesar dos costumes impiedosos da "Grécia clássica", o autor se esforçou em projetar um governo centrado na educação e na filosofia, que trata da ética e seus valores universais (a virtude e seus aspectos) como tema central. 

O estrangeiro segue explicando que aqueles que não sucumbem a uma natureza animalesca, ao serem educados, tornam-se nobres e unidos como a arte régia exige. Estes teriam maior propensão à coragem ("andreas", também inclui certa virilidade) com um caráter (ethos) mais forte, como a base da trama (urdidura), que dá firmeza ou estabilidade à uma peça têxtil. Ou teriam menos disposição a se desviarem, sendo organizados, como os espessos fios macios de uma peça têxtil. A arte régia tenta combinar estas características da virtude, "atando a parte eterna de suas almas com um laço divino e a parte animal com laços humanos". 

O jovem Sócrates pergunta o que o estrangeiro quer dizer com essa última frase, ao que ele responde (conforme tradução de Edson Bini): 

"Quero dizer que a opinião efetivamente verdadeira e assegurada acerca do nobre (ágathon), do justo (dikaion), do bom (kalos) e de seus contrários é divina, e que quando é gerada nas almas, o é em uma raça de origem divina. " 

Esta frase, principalmente seu último trecho (309c), parece difícil de traduzir e pode significar: "Acerca do nobre, do justo, do bom e de seus contrários, quando a opinião verdadeira e assegurada toca visivelmente nas almas, nasce uma reputação divina no espírito" (theían fimí en daimonío gígnesthai génei). 

O estrangeiro então segue perguntando: "Reconhecemos então que o político e bom legislador é o único a quem pertence propriamente o poder - pela inspiração da (musa) arte régia - de inculcar essa opinião verdadeira naqueles que receberam educação de maneira correta, ou seja, aqueles que aludíamos há pouco? 

Jovem Sócrates: é provável que sim." 

O estrangeiro conclui que não se deve unir os maus com os maus nem os bons com os maus. Os bons devem se unir entre si, assim como se une os diferentes aspectos da virtude mostrados em seu exemplo anterior. Talvez isto dê margem a alguma interpretação segregacionista, elitista ou punitivista do conteúdo, mas tal interpretação seria certamente um equívoco, por ser um anacronismo (ignorar as limitações típicas das pessoas da época e do local quando/onde o texto foi escrito - a "Grécia" do séc. 4 a.C.). 

A seguir ele critica os casamentos feitos em busca de dinheiro e poder. O ideal para o estrangeiro é casar pessoas que mostrem diferentes aspectos da virtude entre si, como no exemplo anterior. Assim, pensando na geração / criação dos filhos, por exemplo, seria bom casar uma pessoa corajosa/ valente com uma pessoa auto-controlada/ organizada, para que se evite exageros que descambem em comportamentos nocivos. Estes seriam os "laços comuns" (certamente os humanos) entre diferentes "classes de pessoas" úteis à trama da arte régia, contanto que estas classes tenham uma opinião comum a cerca do nobre e do bom. Tal união geraria os membros ideais para ocuparem os cargos do estado, para que não faltasse ação e agilidade nem cautela e justiça na política. Então o estrangeiro conclui: Assim, a arte régia uniu o ethos do povo corajoso (andreíon) e sóbrio (sofrónon), mediante a amizade e o sentimento solidário em uma vida comum; e tendo completado o magnífico e melhor dos tecidos, com ele traja todos os habitantes da cidade/ estado - tanto escravos como homens livres; continue com esta rede, e no que diz respeito a todos estes habitantes, nada faltando, você se tornará uma cidade de bem-aventurados, comece e acredite. 

(este último trecho Edson Bini traduz como: "conserva-os juntos graças a esse tecido, e nada omitindo que deva estar em uma cidade feliz, governa-os e por eles zela.") 

Fontes:

PLATÃO Diálogos IV, tradução de Edson Bini, (2020) edipro;

https://www.perseus.tufts.edu/hopper/collection?collection=Perseus%3Acorpus%3Aperseus%2Cwork%2CPlato%2C%20Statesman acessado em 07/06/2024

 

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