Observações sobre Fedro (sobre O Belo)

 

 Este diálogo aborda uma ampla variedade de assuntos, entre eles: O desejo erótico, o desejo pelo bem universal, os estados alterados da mente (ou “loucuras”), a experiência transcendente ou mística, o conceito de daemons (semi-deuses, espíritos etc), o auto-controle, a força de vontade (parábola da biga ou parelha) e o conceito de hyper-ouranos (o além céus, reino dos deuses, do bem, da virtude). 

No início da história, o jovem Fedro (Phaedrus) e Sócrates estão caminhando pelo ermo, afastados da área urbana de Atenas. Ao pararem em um determinado ponto, Fedro lê um texto de Lísis sobre Eros (a paixão, o amor sensual) para Sócrates. 

Sócrates então faz um tipo de breve oração, pedindo para que as musas do local (espíritos, no caso, ninfas) o inspirem a trazer a sabedoria sobre o assunto em pauta. Após realizar o discurso sobre o tema, Sócrates muda de ideia e começa um novo discurso (desta vez, alegando que foi inspirado por seu espírito guia): 

…"Eu disse uma mentira ao afirmar que o amado deveria aceitar o não-amante quando poderia ter o amante, porque o primeiro é são e o segundo é louco. Poderia ser assim se a loucura (mania) fosse simplesmente um mal; mas há também uma loucura que é um dom divino e a fonte das maiores bênçãos concedidas aos homens. Pois a profecia é uma loucura, e a profetisa em Delfos e as sacerdotisas em Dodona, quando fora de seus sentidos, conferiram grandes benefícios à Hélade ("Grécia"), tanto na vida pública quanto privada, mas quando em seus sentidos (juízo) pouco ou nada conferiram. E também posso contar como a Sibila e outras pessoas inspiradas (em transes proféticos) deram a muitos uma insinuação (noção ou orientação) do futuro que os salvaram/ os levaram à felicidade, mas seria tedioso discursar o que todos sabem."

Neste trecho Sócrates explica que as profetizas (ou profetas) da cultura helênica de seu tempo (século 4 a.C.), ajudaram pessoas, ou a sociedade de modo geral, regularmente ou frequentemente. Entende-se que as profetizas da Grécia antiga e/ ou clássica, davam orientações ou insinuavam sobre um futuro próximo, dando aos seus "ouvintes", uma noção do que se fazer ou insinuavam o que estava prestes a acontecer em determinado momento. O filósofo destaca que as profetas faziam isto "fora de seus sentidos", tomadas por um tipo de "loucura" (mania), ou seja, em um estado alterado da mente. Sócrates continua:

"Haverá mais razão em apelar para os antigos inventores de nomes, que nunca teriam relacionado a profecia (mantike), que prediz o futuro e é a mais nobre das artes, com a loucura (manike)*, ou chamado ambas pelo mesmo nome, se tivessem considerado a loucura uma desgraça ou desonra;- eles devem ter pensado que havia uma loucura inspirada que era uma coisa nobre; pois as duas palavras, mantike e manike, são realmente as mesmas, e a letra t é apenas uma inserção atual e de mau gosto."

*As palavras mania, maníaco e manicômio têm a mesma origem das palavras mancia, ou mântica - Platão (e Sócrates) deixam claro que estas palavras referiam-se aos "estados alterados da mente", seja inspiração, êxtase, transe ou outro estado, podendo ou não, fazer contato com os "deuses" ou daemons/ espíritos de uma outra realidade. 

Sócrates considerou de mau gosto, a invenção da palavra mantike, separando-a de manike, porque não via isto como uma tentativa justa de explicar ou detalhar os estados alterados da mente, e sim, como uma tentativa de acusar certas práticas de "loucura" (inspiração, profecia, êxtase etc) no sentido pejorativo, tornando aceitável somente uma ou outra prática de adivinhação, de magia ou de profecia. Como exemplo disto, ele diz que algumas pessoas tentaram propagar a ideia de que só a adivinhação através do sacrifício animal (e "leitura" de suas entranhas) era válida. 

Hoje, neste início de século 21, entende-se que mania refere-se a um comportamento estranho, seja de repetição ou de obsessão, enfim, uma dificuldade psicológica. Já a palavra mancia, cada vez menos conhecida com o passar do tempo, refere-se à adivinhação e à magia. Na verdade tal entendimento destas duas palavras deve ser assim, no mínimo, desde a renascença (século 15) ou desde o iluminismo (séculos 17-18).

Ao invés de separar as práticas divinatórias, Sócrates indica que existe uma loucura erótica - a paixão pelos corpos, e portanto de teor mais sexual, e outra loucura inspirada pelos deuses (pelo divino, pelos bons espíritos etc). Esta última seria a mais bela, pois faria com que o indivíduo inspirado identificasse nas pessoas (como nos jovens, por exemplo) a beleza como um atributo divino, mas esta identificação poderia ser controlada com temperança, suprimindo os desejos sexuais em prol de uma relação mais mental, de amizade, de troca de ideias e geração de sabedoria/ conhecimento. Sócrates explica que isto pode ocorrer devido ao fato de, nós, seres humanos, termos uma força mais bruta e uma força mais pura em nossa psique (mente, alma), as quais ele compara com dois cavalos puxando uma biga. O cavalo mais bruto é típico da Terra, sendo voltado à selvageria, aos excessos e ao mau. Enquanto o cavalo mais puro é mais próximo da raça dos deuses, podendo alcançar os céus (o céu “além”, Hyper Ouranos, possivelmente o Aether da mitologia/ dos mitos) através da justiça e da temperança (do bem), ou seja, é a força capaz de fazer o ser humano acessar a morada dos deuses. Cabe ao ser humano, sendo o “condutor da biga” (de sua alma), escolher o bem ao invés do mal. 

 


 Durante a explicação, Sócrates mostra uma cosmogonia diferente da apresentada na mitologia popular da Grécia dominante até a época dos filósofos pré-socráticos. Possivelmente isto explica o “mundo das ideias” (de eidos) que não é exclusivamente da mente individual abstrata - é também uma realidade espiritual acessada não só pela psique (alma/ mente), mas pelos espíritos/ gênios, semi-deuses etc (originalmente daemons na língua grega). 

Possivelmente a palavra ídolo vem eidolon, que por sua vez é oriunda de eidos. Isto explicaria o porque afirmar que xamãs de determinadas culturas tinham esculturas de um "ídolo". O "ídolo" do xamã (ou de outro "praticante de magia") se refere a um ser espiritual invocado ou contatado pelo mesmo através de um estado alterado da mente. Este estado alterado da mente seria chamado de manike (mania) na "Grécia" antes da época de Sócrates, porém já durante sua vida, tal estado passou a ser separado entre manike (mania) e mantike (mancia), como explicado anteriormente.

Sócrates afirma que a alma é imortal devido ao fato de estar sempre em movimento (até mesmo no sono há atividade, sendo os sonhos um sinal disto), não tendo um repouso como o corpo tem. E continua a explicação cosmogônica para falar da alma: 

“Passaremos agora a examinar a causa da alma perder suas asas. É algo aproximadamente como segue: A função natural das asas é se erguerem para o alto carregando o que é pesado ao lugar onde a raça dos deuses habita. Mais do que qualquer outra coisa que pertence ao corpo, elas participam da natureza do divino. O divino encerra beleza, sabedoria, bondade e todas as demais qualidades a essas semelhantes. São essas qualidades que nutrem e fazem crescer as asas da alma, enquanto as opostas, como a vileza e o vício, fazem-nas encolher e desaparecer. Bem, o grande condutor (de biga, guia) no céu, Zeus que conduz uma biga alada, se move na dianteira, organizando todas as coisas cuidando de tudo. É seguido por um exército de deuses e daemons (espíritos) dispostos em onze seções. Somente Héstia (deusa olímpica do lar e do fogo doméstico) permanece na morada dos deuses.Todo o resto dos grandes 12 deuses ficam em formação na posição de comandantes tendo um posto destinado no “exército”. Há muitas vistas abençoadas e muitos caminhos aqui e ali no céu pelos quais a raça afortunada dos deuses transita cumprindo suas próprias obrigações, enquanto quem o quer e tem capacidade para isso o segue, pois não há lugar para malevolência no coro dos deuses.” Sócrates segue explicando que os deuses seguem para além do topo dos céus, na parte externa, pois seus cavalos são todos mais puros e suas asas os elevam para o alto muito distante de onde a maioria dos seres humanos conseguem alcançar. Assim, os vários seres humanos (as almas destes) que conseguem acompanhar melhor um deus e que se assemelha maximamente a ele, ergue a cabeça de seu auriga para a região exterior e é arrebatada pelo movimento circular (dos deuses, “além do céu”), mas perturbada pelos cavalos, contempla precariamente a realidade (em grego: “onta”, que significa O ser, o que realmente é, não o que é captado pelos sentidos). 

Porém os que sucumbiram aos seus respectivos cavalos mais brutos/ impuros, se amontoam tentando subir aos céus sem sucesso, pisoteando uns aos outros e caindo na Terra."

Em outros trechos, Platão mostra como Sócrates explica a ligação dos deuses, da justiça e as outras virtudes com a visão: 

(…) "A justiça e o autocontrole não irradiam luz por meio de suas imagens aqui (na Terra), nem o fazem os demais objetos pelos quais tem apreço a alma. Somente uns poucos indivíduos, se aproximando das imagens por meio dos imprecisos órgãos dos sentidos, com dificuldade nelas entreveem a natureza daquilo que imitam. Naquela ocasião anterior, contudo, eles viram a beleza fulgurante, quando junto aos abençoados, seguindo nós (possivelmente os filósofos) no coro de Zeus”.

(…) "A Beleza, como eu disse antes, resplandecia entre aquelas aparições, e desde que descemos aqui (encarnamos na Terra) vemo-la irradiando através do mais claro de nossos sentidos; de fato, a visão é o mais agudo dos sentidos corpóreos, ainda que a sabedoria (phrónesis) não seja vista através dela”... A pessoa que foi “iniciada” (o amante da sabedoria / o filósofo que utiliza sua memória corretamente), ao ver a verdadeira beleza, a reverência, não querendo mais se separar dela. Este seria o amor, cujo os deuses chamam de “o alado”. 

Mais do que mera figura de linguagem, nota-se que pelos temas abordados neste diálogo, a luz, ou fulgor das virtudes como a justiça, percebida entre "os abençoados" e/ ou no "hiper-ouranos" relaciona-se com as visões extáticas e com casos de "experiência de quase morte", onde os indivíduos tipicamente alegam ver seres envoltos por luz, seres de luz ou simplesmente alegam ver uma luz (além da escuridão, ou após a escuridão etc).

Depois de discursar sobre a alma, Sócrates diz que é necessário analisar as palavras proferidas pelos sábios (ou, talvez, por aqueles tidos como sábios). De certo modo, foi o que ele fez após ser inspirado pelas ninfas no início do diálogo: reconsiderou o discurso feito sob a suposta inspiração de tais daemons ou espíritos e passou a emitir uma opinião orientada ou inspirada por seu "daemon guardião" (algum tipo de espírito guia ou anjo da guarda de Sócrates).

Sobre a amizade, tema já abordado no diálogo com Lisis (por quem Fedro tinha admiração) Sócrates diz: "Os amigos têm tudo em comum."

Após isso, Sócrates mostra que é possível causar estrago/ propagar o mal através da ignorância, mas que é ainda mais perigoso fazer tais coisas com conhecimento. 

A partir deste diálogo é possível entender que o que é realmente belo, é o bem, os deuses, que são virtuosos e seu “mundo” ou “reino”: o "além céus". Assim, praticar o bem e ser psiquicamente virtuoso (mentalmente e espiritualmente), é ser belo.

No final do diálogo, antes de deixar os campos e voltar à cidade de Atenas, Sócrates faz uma oração que mostra sua espiritualidade indissociável da filosofia registrada por Platão: "Oh querido Pan e todos os outros deuses deste lugar, que me concedas ser bonito por dentro. Que todos os meus bens externos estejam em amistosa harmonia com o que tenho dentro. Posso considerar o homem sábio, rico. Quanto ao ouro, deixe-me ter tanto quanto um homem moderado possa suportar e carregar com ele."

 

 

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