Observações sobre O Banquete (ou, O Simpósio)

O Banquete retrata o mestre de Platão, Sócrates, em uma reunião com pessoas de alguma influência, ou de algum poder em Atenas durante o século 4 a.C. (supostamente ocorrida por volta do ano 416 a.C.). Apesar do nome da obra, só há menção à refeição no início do texto, antes do diálogo de fato, o que faz dela uma reunião mais próxima de um "Simpósio". Devido ao tema central, o texto ou "diálogo", poderia muito bem se chamar "Do Amor".

Sócrates está em uma reunião, onde os participantes discursam sobre o amor (até então, predominantemente sobre Eros, a paixão e/ou o amor sensual). Quando chega sua vez de discursar, Sócrates alerta os demais participantes que não louvará nem elogiará Eros

O filósofo pergunta à Agathon, um dos participantes da reunião, se Eros é desejo de algum objeto ou de nenhum, ao que o indagado responde que deve ser o desejo de algum objeto. A seguir Sócrates questiona se é possível desejar algo que já se tem, ao que Agathon responde que não. Ambos então concluem que se "Eros deseja o belo e o bom", ele não é belo nem bom. A partir deste ponto, Sócrates conta sobre o que aprendeu com uma mulher da cidade de Mantineia (Arcádia), chamada Diotima: 

[202] Sócrates teria perguntado à estrangeira se o "Amor" (Eros, a paixão) era feio e mau, ao que a mulher responde que não, pois há coisas entre o belo e o feio, que não são nem uma coisa nem outra. Diotima dá o exemplo da opinião, que, por poder ser certa sobre um assunto, é superior à ignorância e inferior ao conhecimento (froneseos). 

Alguns textos em português (como o utilizado de base aqui), traduzem "eros" como "amor", seja com a inicial maiúscula ou minúscula. A tradução de "eros" como "amor" não está errada, mas é menos precisa nas partes iniciais do texto. Isto porque, é notável no texto que às vezes os personagens referem-se a Eros de modo personificado e outras vezes como uma força ou impulso que afeta os seres humanos. São maneiras diferentes de se falar sobre o mesmo tema, afinal Sócrates e Platão, de certo modo, fizeram uma transição entre os mitos da Grécia clássica e a filosofia/ ciência, ou ao menos, fizeram um diálogo entre os dois temas. Porém, no decorrer deste diálogo, o protagonista, Sócrates, não se limita de falar sobre Eros/ a paixão sensual e passa a abordar a filia (amizade) e, de certo modo, a ágape (amor a todas as almas, ao bem), como será mostrado mais adiante.

(...) "Que seria então a paixão (Eros)? - perguntei-lhe. - Um mortal? 

- Absolutamente (não). 

- Mas o quê, ao certo, ó Diotima? 

- Como nos casos anteriores; algo entre mortal e imortal - disse-me ela. 

- O quê, então, ó Diotima? 

- Um grande gênio (mega daimon), ó Sócrates; e com efeito, tudo o que é "gênio" (daimon) está entre um deus e um mortal. 

- E com que poder? Perguntei-lhe. 

- O de interpretar e transmitir aos deuses (theoís) o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses (theón), de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória (mantiki, que em português é "mancia", por exemplo: necromancia ou cartomancia), como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa, arte ou ofício, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Eros. 

Embora se refira a um ser espiritual ou espírito da cultura árabe, "gênio" (de jin, ou djin), é uma das traduções aceitas para a palavra grega daímon/ daemon. Outra tradução aceitável seria espírito, embora esta possa ser considerada ambígua ou relativa. Apesar da semelhança com a palavra "demônio", daemon não é sinônimo desta, devido ao significado empregado pela igreja à palavra demônio (de "ser eternamente mau"). O termo "anjo", significando mensageiro, poderia ser uma tradução razoável da palavra daemon utilizada no texto O Banquete, tanto é que a palavra evangelho, que significa boa nova/ boa mensagem, é oriunda da união dos termos eva e angelos. Porém anjo também tornou-se inadequado para expressar daemon, já que as igrejas cristãs, propagaram a palavra anjo para definir seres eternamente bons.

Sócrates diz: - Mas é por isso mesmo, Diotima - como há pouco eu te dizia - que vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize-me então não só a causa disso, como de tudo o mais que concerne ao amor (eros). 

Diotima continuou: Se de fato crês que "o amor" é por natureza amor daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques admirado. Pois aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições, temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas uns nascem, outros morrem. 

[208] Porém ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os mesmos nas ciências (episteme, ou conhecimento), mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. 

O que, com efeito, se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. 

É por esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal porém é de outro modo. Não te admires portanto de que o seu próprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham."

Assim, na Terra, Platão indica que eros se renova com a geração de filhos. O desejo de sobrevivência de uma espécie na Terra teria um teor erótico neste sentido. A única maneira de um corpo alcançar a "imortalidade terrestre", é gerando crias/ filhos. Interessante notar que no caso dos animais, o desejo de garantir a sobrevivência das espécies após a geração de filhotes se manifesta pela proteção e providência da mãe (ou de ambos progenitores/ pais em alguns casos). Isto também naturalmente ocorre no ser humano, embora o desejo materno de garantir a vida dos filhos neste caso, possa evoluir para as outras formas mais sublimes de amor que Platão abordará em seu texto, isto porque a mãe tendo sentimentos, pode (por exemplo) continuar gostando de seus filhos mesmo após estes crescerem e seguirem sua própria vida mais afastados da maternidade.

Diotima continua dizendo que os humanos buscam a imortalidade através de seus feitos (pela glória, fama, memória etc) e muitos procuram sendo amorosos na procriação. Estes últimos poderão ser lembrados pelos seus filhos e talvez por outros sucessores como netos etc. 

O diálogo com Sócrates continua: 

- E por que assim da geração? 

Porque é algo de perpétuo e mortal para um mortal, a geração. E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É de fato forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor. Tudo isso ela me ensinava, quando sobre as questões de amor discorria, e uma vez ela me perguntou: - Que pensas, ó Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não percebes como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa, primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no que diz respeito à criação do que nasceu? E como em vista disso estão prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, E mesmo morrer, não só se torturando pela fome a fim de alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela, poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu comportamento amoroso? Podes dizer-me? 

“O que corretamente se encaminha a esse fim, deve com efeito começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se o seu dirigente (Eros) corretamente o dirige, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; 

Neste ponto já é possível entender o amor violento como sendo Eros, a paixão intensa que geralmente tem curta duração e certamente é semelhante ou igual ao amor erótico / sensual. Deve-se abandoná-lo após entender que há beleza em outros corpos também, além do qual nos apaixonamos. 

Depois disso ele deve considerar a beleza que está nas almas mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca importância o belo no corpo; 

Após tornar-se “amante” (apaixonado) por todos os corpos, o autor indica que deve-se abandonar esta postura, pois pelo fato de envolver o interesse no prazer sexual, este “amor” violento tende a ser mesquinho. A partir daí, é importante passar a amar as almas (psiquê, certamente engloba o conceito de mente) e então, os trabalhos e leis. Importante notar que, ao priorizar a beleza das almas, nos ofícios e nas leis, possivelmente já não se trata mais de Eros e sim de Filia, ou seja, amizade. 

Depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte.” 

É possível entender que a personagem indica o caminho para Ágape, o amor expansivo e piedoso, sem interesses particulares. É o amor pelo coletivo de almas e pelos estudos, leis e trabalhos úteis e bons para este coletivo. Aí está a verdadeira beleza acessada pela sabedoria e pela filosofia. Certamente Sócrates e Platão explicaram assim porque amar a lei sem amar as almas seria criar uma sociedade/ um estado frio, possivelmente governado por interesseiros ou por repressores. Enquanto amar só as almas pode permitir com que as pessoas não se importem com leis formando uma sociedade desigual e conturbada. O objetivo de Platão fica claro ao longo de suas obras: ao fundar a filosofia em diálogo com outros autores de seu tempo e anteriores a si, o filósofo trouxe a ética para o centro da construção de conhecimento. Por esta razão, ele regularmente aborda a virtude, a ideia do bem/ do belo, a episteme (conhecimento) etc.

[210e] Diotma continua: Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo (kaloy*), já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza (terá a si revelado uma visão extraordinária, bela em sua natureza); Aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. 

*Kaloy, a beleza mais do que física, pois é moral também; Relaciona-se com a ideia central dos textos de Platão: kalos - o bem/ belo.

Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? 

Após Sócrates contar aos seus ouvintes sobre seu aprendizado, Alcibíades entra bêbado no salão e incita os participantes do simpósio a beberem. Erixímaco explica que eles estavam discursando sobre Eros, então Alcibíades responde que não está em condições de realizar tal feito, mas que pode falar sobre Sócrates. O filósofo então pergunta qual a intenção de tal discurso, ao que Alcibíades responde que falará somente a verdade.

Alcibíades então conta, com certa decepção, sobre os diálogos e a sabedoria de Sócrates, comparando-o com seres míticos (Silenos, sirenes e sátiros) capazes de enfeitiçar seus ouvintes. O jovem alega que Sócrates cerca-se de jovens belos, mas que não mostra interesse por coisa alguma - não é atraído por dinheiro nem honra. Alcibíades, a seguir, conta sobre seu histórico de fracassadas tentativas de conquistar Sócrates, cuja última tentativa termina no seguinte diálogo:

"E este homem, depois de ouvir-me, com a perfeita ironia que é bem sua e do seu hábito, retrucou-me: 

- Caro Alcibíades, é bem provável que realmente não sejas um vulgar, se chega a ser verdade a que dizes a meu respeito, e se há em mim algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti. Se então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar "beleza por beleza", não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao contrário, em lugar da aparência é a realidade do que é belo que tentas adquirir, e realmente é “ouro por cobre” que pensas trocar. No entanto, ditoso amigo, examina melhor; não te passe despercebido que nada sou. Em verdade, a visão do pensamento começa a enxergar com agudeza quando a dos olhos tende a perder sua força; tu porém estás ainda longe disso.” 

A partir do texto "O Banquete", é possível entender que o amor é o que desperta para o verdadeiro saber, isto é complementado/ reforçado no diálogo "Fedro".

 

 

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