Breves Observações sobre Menon (da Virtude)

Nesta obra, Platão "nos conta a seguinte história": 

O jovem sofista, Mênon, inicia um diálogo com Sócrates, supostamente para sanar sua dúvida sobre as virtudes: se elas são ensináveis ou não. 

Sócrates diz que nunca encontrou alguém que soubesse a resposta de tal pergunta, ao que Menon questiona se o filósofo não debateu com Górgias. Sócrates então diz que não se lembra e pede para Menon definir a virtude conforme o sofista (Górgias) costuma fazer. 

Menon faz uma descrição citando variadas supostas virtudes e Sócrates responde com possível sarcasmo que encontrou um enxame de virtudes na definição feita pelo jovem sofista. 

Uma característica talvez peculiar neste diálogo é que Sócrates mostra alguma irritação com Mênon, criticando-o diretamente duas ou três vezes, o que não ocorre na maioria dos outros textos de Platão (A República, Górgias, Filebo, O Banquete, Fédon…). Seria uma mudança na narrativa de Platão em relação às outras obras suas? Talvez pelo fato de ser uma obra de seu “período intermediário”, onde considera-se que ele começou a desenvolver seu próprio pensamento além de seu mestre Sócrates. 

Em seguida, o filósofo pergunta se não há um caráter comum (único, universal) que torna-as virtudes, para que se possa chegar a definição do que é a virtude. 

Menon mostra dificuldade em entender a argumentação de Sócrates, que continua citando exemplos. 

73) Sócrates: Mas a virtude, quanto ao ser virtude, diferirá em alguma coisa, quer esteja numa criança ou num velho, quer numa mulher ou num homem? 

Menon: A mim pelo menos parece, de alguma forma, Sócrates,que esse caso já não é parecido com aqueles outros. 

Sócrates: Por quê? Não disseste que a virtude do homem é bem administrar a cidade, e que a da mulher <é bem administrar> a casa? 

Menon: Sim, disse. 

Sócrates: Será então que é possível administrar bem, seja a cidade, seja a casa, seja qualquer outra coisa, não administrando de maneira prudente e justa? 

Menon: Não, certamente. 

Sócrates: Então, não é verdade? Se realmente administram de maneira justa e prudente, é por meio de justiça e prudência que administrarão. 

 Menon: Necessariamente. 

Sócrates: Logo, das mesmas coisas ambos precisam, tanto a mulher quanto o homem, se realmente devem ser bons: da justiça e da prudência. 

Menon: E evidente que precisam. 

Sócrates: Mas, a criança e o ancião? Será que sendo intemperantes e injustos poderão jamais ser bons? 

Menon: Não, certamente. 

Sócrates: Mas sim sendo prudentes e justos? 

Menon: Sim. 

Sócrates: Logo, todos os seres humanos, é pela mesma maneira que são bons; pois é vindo a ter as mesmas coisas que se tomam bons, 

Menon: Parece. 

Menon, buscando dar uma definição única e geral então, diz que a virtude deve ser (a capacidade de) comandar todos os homens. 

Sócrates segue o diálogo: Mas então, Mênon, é a mesma virtude, a da criança e a do escravo: serem, ambos, capazes de comandar seu senhor? E te parece que ainda seria escravo aquele que comanda? … 

Menon: Não me parece absolutamente, Sócrates. 

Sócrates: Não é provável, com efeito, caríssimo. Pois examina ainda o seguinte: afirmas que a virtude é ser capaz de comandar. Não deveremos acrescentar aí "com justiça, e não injustamente"? 

Menon: Creio, de minha parte, que sim. Pois a justiça é virtude, Sócrates. 

Menon segue dizendo que há outras virtudes e cita a coragem como um exemplo, ao que Sócrates responde que com tais argumentos, eles voltaram ao início do diálogo e passa a tentar usar a definição de forma para comparar com a virtude: o filósofo indica que existem diferentes formas e cores, ao que Menon concorda. 

Sócrates diz que a forma (skhema) é o que está presente em todas coisas que são (ton onton) e precede a cor. Menon, insatisfeito com a resposta, a considera tola, pois diz que há seres que podem não saber o que é cor. 

Sócrates então pergunta a Menon se há algo chamado de fim (teleyten), referindo-se a um limite, um extremo, uma coisa terminada ou consumada e o indagado responde que sim. 

Em seguida, Sócrates pergunta à Menon, se na geometria há superfície (epipedon) e sólido (sthereon), ao que Menos também concorda. 

O filósofo então diz que a skhema é o que limita o "sólido" (no sentido da geometria) embora esta palavra seja traduzida como "forma" por alguns autores como Edson Bini, ela também é traduzida como "figura" por tradutores como Maura Iglesias. 

É possível haver confusão, uma vez que os significados destas duas palavras tenham poucas diferenças entre si: o 1º termo, forma, refere-se mais às formas geométricas, ou, à silhuetas classificáveis por algum padrão geralmente (mas não necessariamente) perceptível pela visão. O 2º, figura, refere-se a qualquer imagem, objeto ou fenômeno perceptível pela visão. De um ponto de vista platônico, possivelmente essa "forma" (skhema) se assemelha à eidos (idéia/ forma), pois ambas estão presentes nas coisas que o filósofo explica que são (ton onton) em seus textos. O ser de Platão não é meramente o que é perceptível sensorialmente (o "material"), é sobretudo, o acessível pela cognição, o que pode ser conhecido (gnose), como por exemplo a eidos de kalos (o bem/ belo). 

Sócrates segue explicando que cor é uma espécie de emanação das formas, que se harmoniza com a visão e é perceptível. Esta última definição pode parecer imprecisa atualmente, mas não está errada: Vemos cores em todas formas/ objetos, quando estes emanam (mais precisamente, refletem) uma porção da luz que incide sobre eles. 

Sócrates pede que Mênon diga o que é a virtude de modo uno, cessando de classificar e/ ou mostrar múltiplos aspectos ou versões dela. 

Esta insistência de Sócrates, deve se referir à universalidade da virtude: O que é virtuoso é um valor universal, ou seja, a pessoa não é virtuosa só em relação a algumas pessoas ou só em determinadas situações: isto não é ser virtuoso. Ser virtuoso, por exemplo, é ser justo com todos, paciente com todos, humilde diante todos etc. A virtude assim, parece um tema relacionado à ideia de utopia. Independentemente se é alcançável ou não, desistir de buscá-la é uma estagnação, uma ignorância que trava ou retarda o progresso humano a nível moral/ individual e social/ coletivo. É um assunto difícil que envolve a ética, a ideia do bem e a perfectibilidade - um assunto que segue debatido através das eras da história humana. 

Menon então responde de maneira insatisfatória à Sócrates, que em seguida diz que não conhece o que é a virtude, mas que é possível investigar o que é ela, pois se investiga o que não se conhece. Esta é a postura da presunção da ignorância de Sócrates: assumir o que não se conhece e buscar este conhecimento. Também é importante notar que é um assunto sobre a ética - tema que pauta as buscas e investigações de Platão e seu mestre (a filosofia ocidental, que é basicamente socrática e platônica, apresenta uma construção do conhecimento alicerçada na ética, como pode ser vista em várias de suas obras).

Através de um experimento de geometria com o jovem escravo de Mênon, Sócrates então mostra que o conhecimento existe incipiente nas pessoas, não advindo de uma fonte puramente externa (como um mestre, por exemplo). Assim a pessoa que emite uma opinião correta sobre um assunto, teria uma reminiscência, que naturalmente fica tumultuada na alma (mente) da pessoa como um sonho. Sendo a alma imortal, estas reminiscências teriam origem em outra existência, seja encarnada ou desencarnada. A reminiscência então pode ser trazida à tona com perguntas (por exemplo), que no fim, dá um entendimento sobre o assunto, que certamente, em prática se tornaria um conhecimento. Sócrates então relaciona a virtude com a sabedoria, mas alega não ter encontrado alguém que ensinasse esta virtude. 

Ele conclui que pessoas podem dar boas opiniões e que a virtude geralmente não pode ser ensinada, mas aquele que tem boas opiniões (possivelmente baseada em suas reminiscências) pode indicar o caminho da virtude para que outro indivíduo o siga. Ao seguir o caminho da virtude, esta pessoa passa a conhecer a virtude. 


 

Observações sobre Górgias (da Retórica) Pt. 2

Aqui, continuo o texto onde Platão apresenta sua análise crítica da retórica através do diálogo entre Sócrates, Górgias, Pólo e Cálicles. Na parte "XXXI" Sócrates segue dizendo: "Examinemos, então, em primeiro lugar, se é mais molesto praticar injustiça do que ser vítima dela, e se mais sofrem os que a praticam do que suas vítimas.

Polo — Quanto a isso, não, Sócrates. 

Sócrates — Não é, portanto, pelo sofrimento que eles as ultrapassam. 

Polo — Não, evidentemente. 

Sócrates — Se não é pelo sofrimento, também não será por ambos. 

Polo — E claro. 

Sócrates — Então será pelas outras qualidades. 

Polo — Sim. 

Sócrates — Pelo mal. 

 Polo — É possível. 

Sócrates — Ora, se eles as ultrapassam em maldade, cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça. 

Polo — É mais do que claro. 

Sócrates — E quem castiga com razão, castiga justamente? 

Polo — Sim. 

Sócrates — E pratica uma ação justa, ou não? 

Polo — Justa. 

 Sócrates — Então, quem é castigado em punição de alguma falta, sofre justamente? 

Polo — Parece que sim. 

Sócrates — E não concordamos que o justo é também belo? 

Polo — Perfeitamente. 

Sócrates — Nesse caso, quem castiga (justamente) comete uma ação bela, e a pessoa punida sofre essa mesma ação? 

Polo — Sim."

XXXIII — Sócrates — Mas, se é bela, é também boa, por ser agradável e útil? 

Polo — Necessariamente. 

Sócrates — Então, quem é punido (justamente) sofre o que é bom? 

Polo — Parece. 

Sócrates — E tira vantagem disso? 

Polo —Sim 

Sócrates — Será a vantagem que imagino, por tornar-se melhor sua alma, no caso de ser ele punido justamente? 

 Polo — Com toda a probabilidade. 

Sócrates — Então, fica livre da maldade da alma quem é punido? 

Polo — Sim. 

Sócrates continua explicando aos seus “discordantes” que para a riqueza, para o corpo e para alma existem 3 respectivos males: a pobreza, a fraqueza (doença) e a maldade (injustiça, intemperança/ ignorância e covardia). Destes 3 males, os mais feios seriam os da alma, pois estes podem ser mais molestos e dolorosos em grau e em amplitude (ao causar dano, estrago para os outros). Considerando que a economia trataria a pobreza, a medicina trataria a doença e a justiça trataria a injustiça, a justiça seria a mais bela das 3 “artes” (ou ciências) por punir e corrigir o mais feio. O tratamento em si não é nem prazeroso, nem exatamente belo, mas os resultados do tratamento são. Então a pessoa que foi corrigida de sua injustiça, se torna mais justa e prudente diante o próximo, também encontrando a verdadeira felicidade. 

A seguir ele conclui, sobre como é o estado da alma do injusto: 

Sócrates — O procedimento dessas pessoas, meu caro, pode ser comparado ao de quem sofresse das mais graves doenças e se arranjasse de modo que não pagasse a penalidade ao médico pelos vícios do corpo e se furtasse ao tratamento, por ter medo, como as crianças, dos cautérios e das incisões, visto serem dolorosos. Não te parece que seja assim? 

Polo — Perfeitamente. 

Sócrates — Por desconhecerem o valor da saúde e do vigor corpóreo. Coisa semelhante, Polo, de acordo com o que assentamos até agora, é o que talvez aconteça com os que se furtam ao castigo. Só vêem o que nele é doloroso, mas são cegos para o que tem de saudável, por ignorarem que é muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente do que com um corpo nas mesmas condições, uma alma, digo, corrompida, injusta e ímpia. Por isso, esforçam-se por todos os meios para não virem a sofrer castigo nem ficarem livres do maior dos males, cuidando apenas de acumular riquezas, angariar amigos e falar com o maior grau possível de persuasão. Se estamos certos, Polo, no que argumentamos até aqui, percebes o que se infere de nossa conversa, ou queres tu mesmo tirar a conclusão? 

Polo — Se não fores de parecer diferente 

Após Sócrates mostrar que seus adversários estão errados, Cálicles irrompe acusando-o de misturar a lei da natureza com a lei dos homens, e também acusando-o de ser tolo ao dedicar-se muito tempo à Filosofia. 

(Sócrates) Voltemos a considerar o assunto do começo: que é o que tu e Píndaro entendeis por justiça natural? O direito do mais poderoso de tomar à viva força os bens do mais fraco, ou o de dominar o melhor sobre o pior, ou de ter mais o nobre do que o que vale menos? É outro o teu conceito de justiça, ou fui fiel em minha definição? 

XLIII — Cálicles — Foi isso mesmo que eu disse há momentos e ainda sustento. 

Sócrates — No teu modo de ver, o homem que consideras melhor é o mesmo que o mais forte? Há pouco não apreendi bem o teu pensamento. Será que denominas melhores os mais fortes, sendo preciso, portanto, que os mais fracos se submetam aos mais fortes, como quer parecer-me que o demonstraste, ao afirmares que as grandes cidades atacam as pequenas por direito natural, por serem mais poderosas e mais fortes, no pressuposto de que mais poderoso, mais forte e melhor são conceitos que se eqüivalem, ou dar -se-á o caso de poder ser melhor o inferior e mais fraco, ou ser mais poderoso o pior? Ou será uma única definição a do melhor e a do mais poderoso? Explica -me com clareza se há diferença ou identidade entre o mais poderoso, o melhor e o mais forte? 

Cálicles — Então, digo-te francamente que tudo isso é uma só coisa. 

Sócrates — E a maioria, não é por natureza mais forte do que um só homem, já que ela institui leis contra este, conforme há pouco te expressaste? 

Cálicles — Como não? 

Sócrates — Logo, as leis da maioria são também leis dos mais fortes? 

Cálicles — Perfeitamente. 

Sócrates — E também dos melhores, pois, de acordo com o que disseste, os mais fortes também são melhores. 

Cálicles — Sim. 

 Sócrates — Então, por natureza são belas essas leis, por serem leis dos mais fortes. 

Cálicles — Exato. 

Sócrates — E a maioria não é também de parecer, conforme não faz muito o declaraste, que a justiça consiste na igualdade e que é mais feio praticar injustiça do que ser vítima de injustiça? É assim mesmo, ou não? Acautela -te, agora, para também não ficares acanhado. A maioria pensa ou não pensa desse modo, a saber, que é justo ter tanto quanto os outros, não mais, e que é mais feio cometer injustiça do que vir a sofrê -la? Não me prives de tua resposta, Cálicles, neste passo, pois, no caso de estares de acordo comigo, sentir -me-ei reforçado por teu intermédio, por haver alcançado o assentimento de pessoa tão judiciosa. 

Cálicles — Sim, a maioria pensa desse modo. 

Sócrates — Não é, portanto, apenas em virtude da lei que é mais feio praticar algum ato injusto do que ser vítima de injustiça, e que a justiça consiste na igualdade, mas também por natureza. Por conseguinte, é possível que não tivesses dito antes a verdade e me acusasses sem razão, quando afirmaste que a natureza e a lei se contrapõem e que eu disso tinha pleno conhecimento no desenrolar da discussão, porém procedia de má fé, apelando para a lei, quando alguém falava segundo a natureza, ou para a natureza, quando se referia à lei. 

 Furioso, Cálicles tenta definir o que é o melhor, o mais forte e o mais digno diante de Sócrates. Ao fracassar, ele recorre ao pressuposto que a vida incontinente é a vida ideal. Que uns devem ter mais (bens e direitos) que os outros. 

XLVII — Sócrates — Não denota baixa estirpe, Cálicles, a franqueza com que desenvolves teu argumento, pois dizes com toda a clareza o que os outros pensam, porém não se atrevem a manifestar. Só te peço que não cedas em nenhum ponto, para que realmente se torne manifesto como é preciso viver. Dize -me uma coisa: afirmas que não deve refrear as paixões quem quiser ser o que deseja ser, porém deixar que cresçam elas ao máximo, procurando satisfazê-las de todo o jeito, e que nisso consiste a virtude? 

Cálicles — É o que sustento. 

Sócrates — Erram, portanto, os que apregoam que felizes são os que de nada necessitam. 

Cálicles — Nesse caso, as pedras e os cadáveres seriam felicíssimos. 

Sócrates — Ainda assim, tal como a defines, terrível coisa é a vida. Não me admirarei se falou certo Eurípides, quando disse: “Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?” 

É possível, até, que estejamos mortos; eu próprio já ouvi certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo, e que a porção da alma em que residem os desejos é facilmente sugestionável e conduzida de um lado para o outro, de onde veio a um sujeito espirituoso e criador de mitos — provavelmente siciliano ou itálico — jogando com as palavras, a idéia de dar o nome de pipa à alma, por deixar-se facilmente encher de sugestões; __ os infensos ao estudo chamou de não iniciados, e a porção da alma dos não iniciados em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado, por isso mesmo que nunca revela saciedade. Ao contrário de tuas conclusões, Cálicles, essa pessoa nos mostra que no mundo das sombras — o mundo invisível, conforme ele se exprime — os mais infelizes são os não iniciados, pois carregam água para o tonel furado num crivo também cheio de furos. Por esse crivo ele entendia a alma, como me explicou quem me contou a história. Comparou a alma dos insensatos a um crivo que é cheio de furos, pois nada consegue reter, visto carecer de fé e memória. Tudo isto, sem dúvida, é bastante caprichoso, mas é quanto chega para ilustrar o que eu desejara demonstrar-te, se me fosse possível, que deverias resolver -te a mudar de opinião, e em vez de uma vida intemperante e insaciável preferires a bem ordenada e que se satisfaz com o que o dia presente lhe oferece. Mas, em que ficamos? Cheguei a convencer -te, a ponto de aceitares a opinião de que os indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes? Ou nada consegui, e ainda mesmo que te apresentasse mil histórias desse tipo, em nada alterarias a tua maneira de pensar? 

Cálicles — É mais certo, Sócrates, o que disseste por último. 

Sócrates separa o prazer (mais referente ao alívio) do bem e do mal: é possível sentir prazer ao beber enquanto se mata a sede, por exemplo. O mesmo deve valer para a dor, se esta estiver corrigindo algo, como sentir uma dor por uma perda de uma pessoa querida, ou arrependimento por ter feito algum mal etc. A confusão deve ser comum porque confunde-se prazer com alegria por exemplo. Em seguida Sócrates diz que os bons são os que se sentem bem, e são mais verdadeiramente alegres, enquanto os maus, possuem mais males e são considerados tristes. O termo triste aqui pode ser entendido como infeliz, que Kardec utiliza para definir os espíritos mais atrasados, de certo modo, mais perdidos em suas próprias maldades? 

Sócrates — Decerto, referes-te aos prazeres como os de que falamos há pouco com relação ao corpo, no ato de beber e de comer: bons são os que promovem a saúde do corpo, ou a robustez, ou qualquer outra qualidade física, e maus os que produzem o contrário disso? 

 Cálicles — Perfeitamente. 

Sócrates — E com as dores não se dará a mesma coisa? Umas são benéficas e outras nocivas? 

Cálicles — Como não? 

Sócrates — Sendo assim, o que devemos escolher e fomentar são os prazeres e as dores úteis? 

Cálicles — Perfeitamente. __ Sócrates — Não os prejudiciais? 

Cálicles. — É claro. 

Sócrates — Pois todos os nossos atos devem ser pautados só em vista do bem, como eu e Polo reconhecemos, se é que ainda te recordas. E tu, concordarás conosco que o bem deve ser a meta exclusiva de nossos atos e que tudo deve ser feito por amor dele, não o bem por amor de tudo o mais? Darás teu voto — o terceiro — para nossa causa? 

Cálicles — Sim 

 LXVII — Sócrates — E que me dizes, caro amigo: a arte de nadar não te parece também uma excelente arte? 

Cálicles — Não, por Zeus. 

Sócrates — No entanto, ela salva os homens da morte, quando se vêem na contingência de precisar conhecê-la. Se a consideras sem valor, vou indicar -te outra mais importante, a arte do piloto, que não somente salva dos maiores perigos a alma dos homens, como também os corpos e os haveres, tal como o faz a retórica. No entanto, é uma arte humilde e retraída, sem nenhuma pretensão ou jactância em seu comportamento, como quem fizesse algo notável. E muito embora realize o mesmo que a eloquência dos tribunais, quando transporta são e salvo alguém de Egina até aqui, só recebe, segundo penso, dois óbolos; se é do Egito ou do Ponto, por um serviço tão grande de salvar, como disse, o passageiro, a mulher, os filhos e seus bens, ao deixá -los no porto cobrará, quando muito, duas dracmas, e o indivíduo que possui essa arte e que realizou tudo isso desembarca e passeia na praia perto do navio, com aparência modesta. Saberá refletir, segundo penso, que não é possível conhecer a quais passageiros ele prestou, realmente, serviço, por não deixar que se afogassem, e a quais talvez prejudicou; sabe perfeitamente que nenhum deles desembarcou melhor do que era quando tomou o navio, tanto no corpo como na alma. Refletirá do seguinte modo: Se não pereceu afogado quem sofria de doença grave e incurável do corpo, é apenas de lastimar não ter morrido, e não lhe fiz nenhum bem com isso; o indivíduo que tem na alma, que é muito mais preciosa do que o corpo, um sem -número de doenças incuráveis, esse não precisa continuar vivendo, nem lhe prestei nenhum benefício com salvá -lo do mar, ou dos tribunais, ou do que quer que fosse, pois sabe perfeitamente que para um homem flagicioso não é vantagem viver, pois só terá de viver mal. 

(Sócrates) Como quer que seja, lembra -te que dissemos haver duas maneiras de cultivar o corpo e a alma: uma só tem em vista o prazer; a outra, o bem, sem procurar agradar, mas lutando para alcançar o seu objetivo. Não fizemos acima essa distinção? 

Cálicles — Fizemos. 

Sócrates — Uma delas, a que só visa ao prazer, é vil e baixa, não passando de simples adulação, não é verdade? 

Cálicles — Que seja, se assim o queres. 

Sócrates — A outra, porém, só se esforça para deixar o melhor possível o objeto de seus cuidados, ou seja o corpo, ou seja a alma. 

Cálicles — Perfeitamente. 

Sócrates — E não será dessa maneira que devemos esforçar-nos em tratar a cidade e os cidadãos, para que estes se tornem tão perfeitos quanto possível? Pois, sem isso, como descobrimos antes, é absolutamente inútil qualquer outro benefício que lhes prestemos, se não forem belos e nobres os sentimentos dos que devem adquirir riquezas, ou domínio sobre outras pessoas, ou poder de qualquer natureza. 

LXXIX — Sócrates — Então ouve, como se diz, uma bela história, que decerto tomarás como fábula, segundo penso, mas que eu digo ser verdadeira, pois insisto em que é a pura verdade tudo o que nela se contém. Conforme Homero nos relata, Zeus, Poseidon e Plutão dividiram entre si o poder que tinham recebido do pai. Ora, no tempo de Crono havia uma lei relativa aos homens, que sempre vigorou e que ainda se conserva entre os deuses, a saber: Que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade, depois de morto iria para a Ilha dos Bem-aventurados, onde permaneceria livre do mal, em completa felicidade, e que, pelo contrário, quem tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere da punição e da pena, a que dão o nome de Tártaro. No tempo de Crono, e mesmo depois, no começo do reinado de Zeus, os juizes eram vivos e julgavam aos vivos no próprio dia em que deveriam morrer. Esse o motivo de ser o julgamento cheio de falhas; por isso, Plutão e os zeladores da Ilha dos Bem - aventurados foram a Zeus e lhe comunicaram que para ambos os lugares chegavam homens de todo em todo indignos. Então Zeus lhes falou: Vou remediar tal inconveniente. As sentenças, realmente, têm sido mal dadas, porque as pessoas são julgadas com vestes, uma vez que ainda estão vivas. Desse modo, continuou, muitos homens de alma ruim são adornados de belos corpos, posição e riqueza, aparecendo por ocasião do julgamento infinitas testemunhas que afirmam terem eles vivido com justiça. Nessas circunstâncias os juízes ficam perturbados, tanto mais que eles também julgam vestidos, servindo-lhes de véu para a alma os olhos, os ouvidos e todo o corpo. Tudo isso atua como empecilho, tanto as suas próprias vestimentas como as dos que vão ser julgados. Em primeiro lugar, disse ele, será preciso tirar dos homens o conhecimento da morte, pois presentemente eles têm notícia dela com antecedência; nesse sentido, já foram dadas instruções a Prometeu. 

Em segundo lugar, passarão a ser julgados desprovidos de tudo, a saber, só depois de mortos. O juiz, também terá de estar morto e nu, para examinar apenas com sua alma as demais almas, logo após a morte de cada um, que estará desassistido de toda a parentela e depois de haver deixado na terra todos aqueles adornos, para que o julgamento possa ser justo. Percebi esses inconvenientes antes de vós, e como juízes nomeei três de meus filhos, sendo dois da Ásia: Minos e Radamanto, e um da Europa: Éaco. Depois de morrerem, julgarão no prado que se acha na altura da encruzilhada dos dois caminhos: o que vai dar na Ilha dos Bem-aventurados e o que vai para o Tártaro. Radamanto julgará os que vierem da Ásia; Éaco, os da Europa. A Minos darei o privilégio de pronunciar -se por último, nos casos de indecisão dos outros dois, para que seja o mais justo possível o julgamento que decide da viagem dos homens. 

(Sócrates): tudo por que em vida o corpo passou continua por algum tempo visível, em sua quase totalidade, depois da morte. A mesma coisa, Cálicles, penso que se passa com relação à alma; tudo nela se torna visível, depois de despida do corpo, tanto suas características, naturais como as modificações supervenientes, no empenho do homem de alcançar isto ou aquilo. Ao se apresentarem diante do juiz — os da Ásia vão para Radamanto — coloca-os em sua frente Radamanto e examina alma por alma, sem saber a quem pertenceram, a não ser, por vezes, quando acontece tomar a do Grande Rei ou a de qualquer outro soberano ou potentado, e verificar não haver nela nada são, por estar cheia de lanhos e de marcas de perjuros e de injustiças, que as diferentes ações foram deixando na alma, e de encontrar tudo retorcido pela mentira e pela vaidade, sem estar nada direito, visto ter sido criada sem a verdade; e como conseqüência da licença, da luxúria, da insolência e da incontinência de conduta, mostra -se a alma cheia de deformidades e de feiúra. __ Contemplando-a desse jeito, envia -a Radamanto ignominiosamente para a prisão, onde terá de sofrer o castigo merecido. 

Aceita, portanto, meu conselho, e acompanha -me para onde, uma vez chegado, serás feliz, assim na vida como na morte, conforme nosso argumento o certifica. Deixa que te desprezem como insensato, que te insulte quem quiser insultar, sim, por Zeus, recebe sem perturbar -te até mesmo aquele tapa ignominioso; não virás a sofrer mal nenhum, se fores um homem verdadeiramente bom e se praticares a virtude. E depois de a termos praticado em comum, se julgarmos conveniente, dedicar -nos -emos à política ou ao que melhor nos parecer, o que decidiremos oportunamente, quando para isso ficarmos mais aptos do que estamos agora. 

Pois é vergonhoso, sendo nós o que mostramos ser neste momento, blasonar como se valêssemos alguma coisa, quando nem sequer pensamos do mesmo modo sobre qualquer assunto, principalmente os de mais importância, tão grande é nossa ignorância! Tomemos como guia a verdade que acaba de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor maneira de viver a que consiste na prática da justiça e das demais virtudes, na vida como na morte. 

Aceitemos essa norma de vida e exortemos os outros a fazer o mesmo. 

 

 

Observações sobre "Górgias (da Retórica)" Pt. 1

Nesta obra Platão mostra que Sócrates quer saber o que Górgias e seus pupilos são. Após algumas respostas pouco precisas, eles respondem que são retóricos. Então Sócrates os define como oradores e pergunta sobre suas funções. Sócrates então vai recebendo respostas que pouco a pouco revelam que seus “entrevistados” são apenas especialistas em persuasão para gerar crendice, não conhecimento. 

(...) Sócrates — E a ginástica, não se ocupará também com discursos relativos à boa ou má disposição do corpo? 

Górgias — Sem dúvida. 

Sócrates — O mesmo se dá com as demais artes, Górgias, ocupando-se cada uma com discursos relativos ao objeto de que seja propriamente arte. 

Górgias — É evidente. 

Sócrates — Então, por que não dás o nome de retórica às outras artes, se todas elas se ocupam com discursos, e chamas à retórica arte dos discursos? 

Górgias — É porque nas outras artes, Sócrates, todo o conhecimento, por assim dizer, diz respeito a trabalhos manuais ou a práticas do mesmo tipo, ao passo que a retórica nada tem que ver com a atividade das mãos, sendo alcançados por meio de discursos todos os seus atos e realizações. E por isso que eu considero a retórica arte do discurso, e com razão, segundo penso. 

Sócrates — É tua, agora, a vez, Górgias. A retórica está incluída entre as artes que se exercem e atingem sua finalidade por meio de discursos, não é verdade? 

Górgias — É isso mesmo. 

Sócrates — Então, dize a respeito de quê. A que classe de coisas se referem os discursos de que se vale a retórica? 

Górgias — Aos negócios humanos, Sócrates, e os mais importantes. 

VII — Sócrates — Mas isso, Górgias, também é ambíguo e nada preciso. … responde-nos em que consiste o que dizes ser para os homens o maior bem de que sejas o autor. 

Górgias — Que é, de fato, o maior bem, Sócrates, e a causa não apenas de deixar livres os homens em suas próprias pessoas, como também de torná-los aptos para dominar os outros em suas respectivas cidades. 

Sócrates — Que queres dizer com isso? 

Górgias — O fato de por meio da palavra poderem convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política. 

Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba teu escravo, tornando-se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si próprio, mas para ti, que sabes falar e convencer as multidões. 

VIII — Sócrates — Quer parecer -me, Górgias, que explicaste suficientemente o em que consiste para ti a arte da retórica. Se bem te compreendi, afirmaste ser a retórica a mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva finalidade visa apenas a esse objetivo. 

(...) Sócrates — … Se alguém te perguntasse: Górgias, há crença falsa e crença verdadeira? responderias afirmativamente, segundo penso. 

Górgias — Sim. 

Sócrates — E conhecimento, há também falso e verdadeiro? 

Górgias — De forma alguma. 

Sócrates — O que prova que saber e crer são diferentes. 

Górgias — É certo. 

Sócrates — Apesar disso, tanto os que aprendem como os que crêem ficam igualmente persuadidos. 

Górgias — Exato. 

Sócrates - Podemos, então, admitir duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte da crença, sem conhecimento, e a outra só do conhecimento? 

Górgias — Perfeitamente. 

Sócrates — De qual dessas persuasões se vale a retórica nos tribunais e nas demais assembléias, relativamente ao justo e ao injusto? Da que é fonte de crença sem conhecimento, ou da que é fonte só de conhecimento? 

Górgias — Evidentemente, Sócrates, da que dá origem à crença. 

Sócrates — Então, ao que parece, a retórica é obreira da persuasão que promove a crença, não o conhecimento, relativo ao justo e ao injusto? 

Górgias — Exato. 

Sócrates — Sendo assim, o orador não instrui os tribunais e as demais assembléias a respeito do justo e do injusto, mas apenas lhes desperta a crença nisso. Em tão curto prazo não lhe fora possível instruir tamanha multidão sobre assunto dessa magnitude. 

Górgias — Não, de fato. 

Sócrates — Então escuta, Górgias, o que me causa admiração no que nos declaraste. É possível que estejas com a razão e que eu não tenha apreendido bem o teu pensamento. És capaz, disseste, de fazer orador de quem se dispuser a seguir tuas lições? 

Górgias — Sou. 

Sócrates — E de deixá -lo apto, sobre qualquer assunto, a conquistar as multidões, não por meio da instrução, mas por força da persuasão? 

Górgias — Perfeitamente. 

Sócrates — Chegaste mesmo a afirmar que, em matéria de saúde, o orador tem maior força convincente do que o médico. 

Górgias—Sim, disse; porém diante das multidões. 

Sócrates — Diante das multidões, quer dizer: diante de ignorantes? Pois é de presumir que diante de entendidos não sejas mais persuasivo do que o médico. 

Górgias — Exato 

Sócrates — E com relação às demais artes, o orador e a retórica não se encontram nas mesmas condições? Ele não terá necessidade de saber como as coisas são em si mesmas e bastará recorrer a algum artifício para parecer aos ignorantes que em tudo é mais entendido do que os sábios. 

XIV — Górgias — E não é grande vantagem, Sócrates, não precisar uma pessoa aprender nenhuma arte, a não ser aquela, e não vir a ficar por baixo dos conhecedores das outras artes? 

Sócrates — Se o orador, pelo fato de conhecer a sua arte, é superior ou inferior aos demais profissionais, é o que examinaremos dentro de pouco, caso haja nisso algum proveito para a discussão. Por enquanto, consideremos apenas se em relação ao justo e o injusto, ao feio e o belo, ao bem e o mal, o orador se encontra nas mesmas relações em que se acha com referência à saúde e aos objetos das demais artes? Em outros termos: se sem conhecer as coisas em si mesmas e sem saber o que é o ‘bem e o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto, dispõe de um método especial de persuasão que aos olhos dos ignorantes o faça parecer mais sábio do que os entendidos? Ou será necessário conhecer essas coisas, por havê-las aprendido antes de procurar -te para estudar retórica? Se não for o caso, na qualidade de professor de retórica, nada terás de ensinar a quem te procurar, a respeito desse assunto, pois não faz isso parte de tua profissão, cumprindo -te apenas deixá-lo em condições de parecer às multidões que conhece tudo isso, embora o desconheça, e passe por homem de bem, ainda que o não seja? Ou te será absolutamente impossível ensinar -lhe retórica, se antes ele não ficou conhecendo a verdade sobre todos esses assuntos? Como se passam, realmente, as coisas neste domínio, Górgias? Por Zeus! Desejaria que me revelasses, conforme me prometeste há pouco, em que consiste a força da retórica. 

Górgias — Sim, Sócrates, suponho que se o aluno ignora essas matérias, ele as aprenderá também comigo. 

Sócrates — Basta! Falaste muito bem. Se tiveres de fazer de alguém um orador, forçosamente essa pessoa terá de conhecer o que é justo e o que é injusto, quer o tenha aprendido antes, quer aprenda depois contigo. 

(...) Sócrates — Será que vais apanhar bem minha resposta? Segundo o meu modo de pensar, a retórica é o simulacro de uma parte da política. 

Polo — Como assim? E afirmas que é bela ou que é feia? 

 Sócrates — Feia, é o que digo. Ao ruim dou o nome de feio, para responder-te como se já soubesses o que quero dizer. 

Górgias — Por Zeus, Sócrates! Eu também não compreendo o que queres dizer. 

Sócrates — É natural, Górgias, pois ainda não me exprimi claramente; porém Polo é novo e fogoso. 

Górgias — Bem, deixa isso e declara -me por que disseste que a retórica é um simulacro de uma parte da política. 

Sócrates — Vou tentar explicar o que a meu ver é a retórica. Se não for o que penso, o nosso Polo me refutará. Denominas alguma coisa corpo e alma? 

Górgias — Como não? 

 Sócrates — E não admites, também, que haja em ambos uma condição de bem-estar? 

Górgias — Sem dúvida. 

Sócrates — É uma condição de aparente bem-estar, mas que o não seja? O que digo é o seguinte: Há muita gente que aparenta saúde, visto não ser fácil a todo o mundo perceber que se encontra em condições precárias, com exceção do médico ou do professor de ginástica. 

Górgias — É certo o que dizes. 

Sócrates — No corpo e na alma digo que a mesma coisa se passa, o que faz que o corpo e a alma pareçam estar em boas condições, embora na realidade não o estejam. 

Górgias — É isso mesmo. 

Sócrates — Nesse caso, responde-me como se só agora eu te interrogasse: Polo, que te parece pior, cometer alguma injustiça ou sofrer injustiça? 

Polo — Na minha opinião, sofrer injustiça. 

Sócrates — E agora, que é mais feio: cometer injustiça ou sofrê-la? Responde. 

Polo — Cometer injustiça. 

XXX — Sócrates — Então, por ser mais feio, é também um mal maior. 

Polo — De jeito nenhum. 

Sócrates — Compreendo; não aceitas como equivalentes o belo e o bom, o mau e o feio. 

Polo — Não, de fato. 

Sócrates — É o seguinte: a todas as belas coisas: corpos, cores, figuras, sons, ocupações, dás o nome de belas sem nenhuma referência a qualquer outra coisa? Para começarmos pelos corpos belos, não os qualificas de belos com vista à utilidade em suas respectivas aplicações, ou com relação ao prazer particular que possam proporcionar às pessoas que os contemplam? Afora isso, saberás dizer mais alguma coisa a respeito dos corpos belos? 

Polo — Não posso. 

Sócrates — E com relação a tudo o mais, as figuras e as cores, não é por causa do prazer, ou da utilidade, ou por ambas as coisas que lhes dás o nome de belas? 

Polo — Perfeitamente. 

 Sócrates — E o mesmo não se passa com os sons e tudo o que se relaciona com a música? 

Polo — Sim. 

Sócrates — E também no que respeita às leis e às ocupações, nenhuma é bela, por outro motivo, mas apenas por ser útil, ou agradável, ou por ambas as coisas. 

Polo — É também como penso. 

Sócrates — E o mesmo não se dá com a beleza das ciências? 

Polo — Sem dúvida; tua explicação, Sócrates agora é muito mais bonita, com definires o belo por meio do prazer e do bem. 

Sócrates — Logo, o feio será definido por meio de seus contrários, a dor e o mal? 

Polo — Necessariamente. 

Sócrates — Então, sempre que entre duas coisas belas uma é superior à outra, é que a ultrapassa por uma dessas qualidades, ou por ambas, vindo a ser mais bela ou pelo prazer, ou pela utilidade, ou por esses dois fatores ao mesmo tempo. 

Polo — Sem dúvida. 

Sócrates — E entre duas coisas feias, quando uma é mais feia do que a outra, é porque a ultrapassa em sofrimento ou em maldade, para ser mais feia. Não é a conclusão que se nos impõe? 

Polo — Sim. 

Sócrates - E agora, que estávamos a dizer a respeito de cometer injustiça ou sofrer injustiça? Não disseste que sofrer injustiça é pior, mas que é mais feio cometer injustiça? 

Polo — Disse. 

Sócrates — Ora, se cometer injustiça é mais feio do que sofrer injustiça, será também mais doloroso, vindo a ser mais feio, justamente, por ultrapassar o outro em sofrimento, ou em maldade, ou em ambas as coisas. Não somos forçados a aceitar também essa conclusão? 

Polo — Como não? 

Embora a pessoa no momento que cometa a injustiça possa se achar esperta ou bem-sucedida, ela pode vir a sentir remorso posteriormente. Este remorso certamente surgirá na psique da pessoa, quando esta, por qualquer que seja o motivo, desenvolver a noção do bem, do justo e do que é correto. Levando em consideração a espiritualidade, se a pessoa injusta não desenvolver a noção do bem e/ ou virtude em vida, ela perceberá isto da pior forma: após a psique (alma) deixar o corpo, ou seja, após a morte do corpo. Embora isto possa parecer ficção para indivíduos com uma visão de mundo materialista e/ou niilista, não o é para espiritualistas - certamente o caso de Sócrates e Platão. Outro ponto notável é o elo entre o justo, o bom e o belo: Admitindo a imortalidade da alma (explicada filosoficamente em variadas obras de Platão), esta não pode esconder seus crimes ao deixar o corpo. Sendo os verdadeiros deuses, todos bons, pois são intermediários entre o Uno/ Nous/ Zeus e os “mortais”, a filosofia socrática/ platônica dá um indício que O Theos (Deus, possível sinônimo dos nomes citados) deve ser não um mero Criador “neutro”/ distante de sua criação, mas bom e justo. A lei natural inclui o bem e o belo (kalos), afinal o ser humano tem a noção do bem, colocando-o em prática ou não. Isto faz parte de sua natureza e, caso priorize a boa mentalidade e a boa ação, pode se juntar aos bons deuses após deixar o seu corpo/ o mundo sensível (sensorial).

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...