Livro II (357a - 376e)
Aqui continuo as observações sobre a obra "A República" de Platão, onde são discutidas a justiça, a cidade e os mitos. (357-358): Glauco pergunta se
Sócrates quer convencê-los de que mais vale a pena ser justo do que
injusto, então o filósofo responde afirmativamente, pois entende que a
justiça leva à felicidade. Glauco continua explicando que cansou-se de
ouvir pessoas com discursos similares ao de Trasímaco, mas não achou o
discurso à favor da justiça feito por Sócrates, suficientemente
convincente. Glauco diz que a injustiça é defendida por muitos devido a
uma série de fatores como ambição, desejo de impunidade e de se vingar
da injustiça de outrem. Para isso ele conta o mito de Gyges (359-360)
que utilizava um anel capaz de conferir-lhe invisibilidade. Com tal item
o personagem ficava livre para cometer injustiças sem sofrer punições e
assim o fez buscando realizar seus desejos. Glauco então diz que se tal
anel existisse, ninguém resistiria seu poder para preferir uma vida
justa: todos que tivessem o "poder de se tornar invisíveis" acabariam
escolhendo uma vida de injustiças. Ele completa seu argumento explicando
que o supra-sumo da injustiça é ser injusto parecendo justo. Tal tipo
de indivíduo faz de tudo para esconder seus crimes, e, quando falha,
consegue "reparar" tal falha, persuadindo os outros ou eliminando seus
denunciantes e opositores, quando necessário, com andreas (coragem/
virilidade, um termo patriarcal explicado em textos anteriores) e força
(violência). Glauco conclui que, o contrário deste tipo de indivíduo
seria o justo que não quer parecer justo - quer apenas ser justo. Se
este tiver a aparência de justo, receberá honrarias e recompensas, mas
se não tiver a aparência de justo, acabará perseguido, punido,
castigado, torturado e, por fim, morto empalado. Adimanto então
interfere no diálogo dizendo que os argumentos de Glauco não abordam o
que mais importa discutir (362-367). Adimanto explica que muitos
indivíduos na sociedade pregam a importância da justiça sem elogiar a
coisa em si. Isto porque eles valorizam muito as honrarias e
recompensas. Tal "ideologia", de acordo com Adimanto, aparece até mesmo
nos mitos e poesias helênicas: promete-se recompensas prazerosas e/ou
materiais no "além vida" para os justos e punições para os injustos. As
pessoas então temeriam parecer injustos, mas continuariam perseguindo
recompensas chegando a barganhar não só com outros indivíduos, mas com
os próprios "deuses" dos mitos (oferecendo-lhes sacrifícios etc).
Conforme algumas obras de poetas famosos da "Grécia" clássica (Homero,
Hesíodo etc...) os deuses seriam passíveis de serem persuadidos e alguns
até impuseram penas aos justos, para estes viverem como infelizes ou
miseráveis. De acordo com Adimanto, a partir daí surgiriam os adivinhos e
feiticeiros batendo na porta dos ricos, prometendo purificação dos
crimes, libertação e outras recompensas. Com isso tudo, as pessoas que
acreditavam nos deuses, poderiam cometer crimes e se livrarem da culpa
oferecendo sacrifícios e outros rituais, enquanto os que "não soubessem"
(não acreditassem) sobre os deuses, poderiam praticar seus crimes
formando conluios para escondê-los das pessoas de modo geral (da
sociedade), como mencionado por Glauco.
Para encontrarem as origens da justiça e da injustiça então, os personagens começam a dialogar sobre a cidade (pólis):
Sócrates — A justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?
Adimanto — Sim.
Sócrates — E a cidade não é maior que o indivíduo?
Adimanto — Claro.
Sócrates — Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena.
Adimanto — Estou de acordo.
Sócrates — Porém, se estudarmos o nascimento de uma cidade, não observaremos a justiça aparecer nela, tanto quanto a injustiça?
Adimanto — E possível. (...)
Sócrates — Construamos em pensamento uma cidade cujos alicerces serão as nossas necessidades.
Adimanto — Certo.
Sócrates — O primeiro deles, que é também o mais importante de todos, consiste na alimentação, de que depende a conservação do nosso ser e da nossa vida.
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — O segundo consiste na moradia; o terceiro, no vestuário e em tudo o que lhe diz respeito.
Adimanto — Isso mesmo.
Sócrates — Mas como poderá uma cidade prover à tantas necessidades? Não será preciso que um seja agricultor, outro pedreiro, outro tecelão? Poderemos acrescentar um sapateiro ou qualquer outro artesão para as necessidades do corpo?
Adimanto — Certamente.
Sócrates — Então, cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade. O lavrador, por exemplo, garantirá sozinho a alimentação de quatro, gastando quatro vezes mais tempo e trabalho em fazer a provisão de trigo que terá de repartir com os outros. Mas não seria preferível que, trabalhando apenas para si, só produzisse a quarta parte dessa alimentação na quarta parte do tempo, destinando as outras três quartas partes a procurar moradia, vestimentas e calçados, tratando ele mesmo das suas coisas, sem se importar com a comunidade?
Adimanto — Talvez seja mais fácil trabalhar de acordo com a primeira maneira.
Sócrates — As tuas palavras me sugerem o seguinte raciocínio: em primeiro lugar, a natureza não fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para esta ou aquela função. Em que circunstância, então, se trabalha melhor, quando se exerce um só ofício ou vários ofícios de uma só vez?
Adimanto — Quando se exerce só um.
Sócrates — Parece-me também que, quando se deixa passar a oportunidade de fazer uma coisa, essa coisa perde-se. Porque o trabalho a ser realizado não se acomoda às conveniências do operário, mas este à natureza do trabalho, sem perda de tempo. De onde se deduz que se produzem todas as coisas em maior número, melhor e mais facilmente, quando cada um, segundo as suas aptidões e no tempo adequado, se entrega a um único trabalho, sendo dispensado de todos os outros.
Adimanto — É como dizes.
Sócrates — Neste caso, são necessários mais de quatro cidadãos para satisfazer as necessidades a que nos referimos. Com efeito, o lavrador não deve fazer o próprio arado, se quiser que seja de boa qualidade, tampouco a enxada, nem as outras ferramentas agrícolas; também o pedreiro não fará a sua ferramenta; o mesmo se dará com o tecelão e o sapateiro, não concordas?
Adimanto — Concordo.
Sócrates — Desta forma, temos carpinteiros, ferreiros e muitos outros operários aumentando a população de nossa pequena cidade. Mas seria ainda maior se lhe juntássemos boiadeiros, pastores e outras espécies de criadores de gado, para que o lavrador tenha bois para a lavra da terra; o pedreiro, animais de carga para transportar materiais; o tecelão e o sapateiro, peles e lãs.
Adimanto — Mas uma cidade que reunisse todas essas pessoas já não seria tão pequena.
Sócrates — E tem mais: seria impossível fundar uma cidade num local onde não houvesse necessidade de importar nada.
Adimanto — Sim, seria impossível.
Sócrates — Haveria, pois, necessidade de outras pessoas que, de outras cidades, trouxessem o que lhe falta. Porém, se essas pessoas fossem de mãos vazias, não levando nada daquilo de que os fornecedores demandam, também partiriam de mãos vazias, não é?
Adimanto — Penso que sim.
Sócrates — Será necessário, então, que a nossa cidade produza não apenas aquilo de que precisa, mas também aquilo que lhe é exigido pelos fornecedores. Por conseguinte, será necessário um maior número de agricultores e de outros artesãos.
Adimanto — Logicamente.
Sócrates — E inclusive de pessoas que se encarreguem da importação e da exportação das diversas mercadorias. Ora, estas pessoas são os comerciantes, certo?
Adimanto — São.
Sócrates — Logo, também precisaremos de comerciantes. E, se o comércio se fizer por mar, ainda precisaremos de gente versada na arte da navegação. Mas, no interior da própria cidade, como os homens irão permutar os produtos do seu trabalho? Já que foi com esse propósito que os associamos ao findarmos uma cidade.
Adimanto — Evidentemente que será através da venda e da compra.
Sócrates — Neste caso, necessitaríamos de um mercado e de moeda, símbolo do valor das mercadorias permutadas.
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — Mas, se o lavrador ou qualquer outro operário que leva ao mercado um de seus produtos não conseguir se encontrar com aqueles que querem fazer permutas com ele, interromperá o seu trabalho para ficar sentado no mercado esperando-os?
Adimanto — De jeito nenhum. Existem pessoas que se encarregam desse serviço; nas cidades bem organizadas, são geralmente as pessoas mais fracas de saúde, incapazes de qualquer outro trabalho. O seu papel é ficar no mercado, comprar a dinheiro aos que vendem, e depois vender, também a dinheiro, aos que desejam comprar.
Sócrates — Logo, esta necessidade dá origem à classe dos mercadores na nossa cidade; damos este nome — não é mesmo? — àqueles que se dedicam à compra e à venda, com estabelecimento aberto no mercado, e o de negociantes aos que viajam de cidade em cidade.
Adimanto — Perfeitamente.
Sócrates — Existem também outras pessoas que prestam serviços: aquelas que, sem talento para outro tipo de serviço, são, pelo seu vigor corporal, aptos para os trabalhos pesados; vendem o emprego da sua força física e, como denominam salário o preço do seu trabalho, damos-lhes o nome de assalariados, não é assim?
Adimanto — Exatamente.
Sócrates — Esses assalariados, no meu entender, representam o complemento da cidade. Então, a nossa cidade já não cresceu suficientemente para ser considerada perfeita?
Adimanto — Talvez.
Sócrates — E onde encontraremos a justiça e a injustiça? De qual dos elementos que mencionamos julgas que elas se originam?
Adimanto — Eu não o sei, Sócrates, salvo se for das relações mútuas dos cidadãos.
Sócrates — Talvez tenhas razão. Mas convém que analisemos o caso sem desanimar. Comecemos considerando como viverão as pessoas assim organizadas. Não produzirão trigo, vinho, vestuário, calçados? Não edificarão moradias? Durante o verão, trabalharão quase nuas e descalças, e, no inverno, vestidas e calçadas. Para se alimentar, prepararão farinha de cevada e de frumento, cozinhando esta e apenas amassando aquela; colocarão seus estupendos bolos e os seus pães em ramos ou folhas frescas e, deitadas em camas de folhagem, feitas de teixo e de murta, regalar-seão com seus filhos, bebendo vinho, com a cabeça coroada de flores, e cantando louvores aos deuses; passarão assim agradavelmente a vida juntos e regularão o número de filhos pelos seus recursos, para evitar os incômodos da pobreza e os temores da guerra.
373a - 383c Glauco interfere dizendo que é preciso de mais conforto, insinuando que os habitantes desta cidade ideal de Sócrates podem ser comparados com animais… Sócrates responde que sua cidade é sã, e entende que Glauco refere-se a uma “necessidade” (busca, ambição) por luxo e diz que uma cidade com luxo deve ser cheia de excitação podendo ser ideal para encontrar as origens da justiça e da injustiça.
Os interlocutores então chegam à conclusão que a cidade seria cheia de coisas pouco ou nada necessárias: caçadores, imitadores, artistas ambulantes, empresários de teatro, cabeleireiros e fabricantes de adornos femininos e de vários outros artigos. Com elevado número de cidadãos se ocupando de tais negócios, tal cidade também exigiria servidores como pedagogos, governantas, amas (cuidadoras), criadores de porcos, cozinheiros e mestres de cozinha, permitindo os hábitos dos estilos de vida mais luxuosos. Sócrates e os demais entendem que tal cidade precisaria crescer tomando territórios vizinhos principalmente para criar animais (para o abate e consumo) e por isso entraria em guerra com outros povos:
Sócrates
— Então seremos obrigados a tomar as pastagens e lavouras dos nossos
vizinhos? E eles não farão a mesma coisa em relação a nós, se,
ultrapassando os limites do necessário, se entregarem, como nós, a uma
insaciável cupidez (cobiça)?
Glauco — E bem provável, Sócrates.
Sócrates — Iremos então à guerra, ou faremos outra coisa?
Glauco — Iremos à guerra.
Sócrates
— Ainda não chegou o momento de dizer se a guerra acarreta bons ou maus
resultados; Notemos apenas que descobrimos a origem da guerra nessa
paixão que é, no mais alto grau, geradora desse flagelo tão funesto para
o indivíduo e a sociedade.
Glauco — Exatamente.
Sócrates —
Então, meu amigo, a cidade precisa aumentar ainda mais, e não em pouca
coisa, pois redamará todo um exército que possa entrar em campanha para
defender todos os bens a que nos referimos e fazer frente aos invasores.
Glauco — Mas como? Os cidadãos não podem fazer isso?
Sócrates —
Não, se tu e todos nós concordamos com o princípio, quando fundamos a
cidade, de que é impossível a um único homem exercer satisfatoriamente
vários ofícios.
Como a maioria das pessoas domina só uma profissão, a cidade crescente (em luxo etc) proposta por Glauco e desenvolvida em diálogo com Sócrates, precisaria de toda uma classe de guardas/ soldados treinados no combate e na defesa da cidade/ estado. A partir daí Sócrates e os demais conjecturam uma educação ideal para os guardas da cidade/ estado:
375b-376e:
Sócrates: Já percebeste que a cólera é algo indomável e invencível e
que o espírito que a possui não pode temer nem ceder?
Glauco — Percebi.
Sócrates — São estas, pois, as qualidades que deve ter o guardião no que concerne ao corpo?
Glauco — Sim.
Sócnates — E no que concerne à psiquê (alma), deve ser de temperamento irascível?
Glauco — Sim, também.
Sócrates
— Mas então, Glauco, não serão ferozes uns com os outros e com o
restante dos cidadãos que tiverem os mesmos temperamentos?
Glauco — Por Zeus! Só poderá ser dessa maneira!
Sócrates
— Entretanto, é preciso sejam mansos com os seus e rudes com os
inimigos; caso contrário, não esperarão que outros destruam a cidade:
eles mesmos a destruirão.
Glauco — Receio que sim.
Sócrates —
Que fazer, então? Onde encontraremos um temperamento ao mesmo tempo
manso e irascível? Pois um temperamento manso é o oposto de um
temperamento irascível.
Glauco — É o que parece.
Sócrates —
Contudo, se faltar uma destas qualidades, não teremos um bom guardião.
Tê-las a ambas é impossível de onde se conclui que um bom guerreiro não
se encontra em parte alguma.
Glauco — Receio que estás com a razão.
Hesitei
por alguns instantes, refletindo no que acabávamos de dizer, e depois
continuei: (Sócrates) — Bem que merecemos estar em embaraço, meu amigo,
por termos abandonado a comparação que havíamos proposto.
Sócrates então conclui que, para contrapor a natureza bélica (guerreira e/ou violenta), seria necessário a educação de um filósofo para o exército/ guardas da cidade. Tal educação além da ginástica para o corpo, incluiria música e literatura para psiquê (alma). Certamente a arte dos discursos e/ou da literatura era agrupada com a poesia e a música por serem consideradas atividades relacionadas à inspiração, ou seja, às musas - espíritos que inspiravam os "mortais"/ os seres humanos na cultura (e mitologia) grega. Porém Sócrates identifica 2 tipos de literatura (também traduzido como 2 tipos de discursos): as falsas e as verdadeiras.
377a-377e: Sócrates — Ambos (discursos/ literaturas) entrarão na nossa educação ou começaremos pelos falsos?
Adimanto — Não estou entendendo.
Sócrates
— Nós não começamos contando fábulas às crianças? Geralmente são
falsas, embora encerrem algumas verdades. Utilizamos essas fábulas para a
educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.
Adimanto — É verdade.
Sócrates — Este é o motivo por que eu dizia que a música deve preceder a ginástica.
Adimanto — E tens razão.
Sócrates
— E não sabes que o começo, em todas as coisas, é sempre o mais
importante, principalmente para os jovens? Com efeito, é sobretudo nessa
época que os modelamos e que eles recebem a marca (matriz) que
pretendemos imprimir-lhes.
Adimanto — Com certeza.
Sócrates —
Sendo assim, vamos permitir, por negligência, que as crianças ouçam as
primeiras fábulas que lhes apareçam, criadas por indivíduos quaisquer, e
recebam em seus espíritos entender, quando forem adultos?
Adimanto — De nenhuma forma permitiremos.
Sócrates
— Portanto, parece-me que precisamos começar por vigiar os criadores de
fábulas, separar as suas composições boas das más. Em seguida,
convenceremos as amas e as mães a contarem aos filhos as que tivermos
escolhido e a modelarem-lhes a alma com as suas fábulas muito mais do
que o corpo com as suas mãos! Mas a maior parte das que elas contam
atualmente devem ser condenadas. Sócrates conclui que as fábulas grandes e as pequenas devem ter o mesmo molde e poder (efeito).
Adimanto — (...) não sei quais são essas grandes fábulas de que falas.
Sócrates
— São as de Hesíodo, Homero e de outros poetas. Eles compuseram fábulas
mentirosas que foram e continuam sendo contadas aos homens.
Adimanto — E com razão que se condenem tais coisas. Mas como dizemos isso e a que estamos nos referindo?
Sócrates — Em primeiro lugar, aquele que criou a maior das mentiras a respeito dos maiores dos seres criou-a sem beleza, quando disse que Urano fez o que relata Hesíodo e como Cronos se vingou. Mesmo que o comportamento de Cronos e a maneira como foi tratado pelo filho fossem verdadeiros, penso que não deviam ser narrados com tanta leviandade a seres desprovidos de razão e às crianças, mas que seria preferível enterrá-los no silêncio.
Adimanto — De fato, essas histórias são abomináveis.
Sócrates— E não devem ser contadas na nossa cidade. Não se deve dizer diante de um jovem ouvinte que, cometendo os piores crimes e castigando um pai injusto da forma mais cruel, não faz nada de extraordinário e age como os primeiro se os maiores dos deuses.
Adimanto — Não, por Zeus! A mim também parece que tais coisas não se devam dizer!
Sócrates — Deve-se também evitar contar que os deuses fazem guerra entre si e que armam ciladas recíprocas, porque não é verdade, se quisermos que os futuros guardiães da nossa cidade considerem o cúmulo da vergonha discutir levianamente. E ainda menos se lhes deve contar ou representar em tapeçarias as lutas dos gigantes e esses ódios de toda a espécie que armaram os deuses e os heróis contra os seus parentes e amigos.”
(...)
Que jamais se lhes conte a história de Hera acorrentada pelo filho, de
Hefesto precipitado do céu pelo pai, por ter defendido a mãe, que aquele
maltratava, e os combates de deuses que Homero imaginou, quer essas
ficções sejam alegóricas, quer não. Pois uma criança não pode
diferenciar uma alegoria do que não é, e as opiniões que recebe nessa
idade tornam-se indeléveis e inabaláveis. E devido a isso que se deve
fazer todo o possível para que as primeiras fábulas que ela ouve sejam
as mais belas e as mais adequadas a ensinar-lhe a virtude.
Adimanto —
Tudo que dizes é profundamente sensato. Porém, se alguém nos indagasse o
que entendemos por isso e que fábulas são essas, que responderíamos?
379:
Sócrates — Mas, Adimanto, nem tu nem eu somos poetas, mas fundadores de
cidade. Compete aos fundadores conhecer os modelos que devem seguir os
poetas nas suas histórias e proibir que se afastem deles; mas não lhes
compete criar fábulas.
Adimanto — Está bem. Mas, ainda assim,
gostaria de saber quais são os modelos que se devem seguir nas histórias
(também traduzido como teologias) que se referem aos deuses.
Sócrates
— Vou dizer-te. Deve-se representar Deus (Theos) sempre tal como é,
quer seja representado na epopéia, na poesia lírica ou na tragédia.
Adimanto — Perfeitamente de acordo.
Sócrates — Não é certo que Deus é essencialmente bom e não é assim que se deve falar dele?
Adimanto — Sem dúvida.
(...) Sócrates — Então, o bem não é a causa de todas as coisas; é a causa do que é bom e não do que é mau.
380-383: Sócrates então separa o bem do mal, explicando que o que é bom não pode gerar o mal. Assim o filósofo combate os mitos que atribuem a causa dos males aos deuses, bem como também faz uma crítica aos argumentos mitológicos (da religião grega) que os deuses determinaram destinos aleatórios aos seres humanos. Sócrates indica desta maneira que o Deus criou o bem, as coisas boas, e que os males têm origem e causa no próprio ser humano e em suas relações. Platão indica aqui o livre arbítrio do ser humano, ou seja, sua intenção e responsabilidade por seus atos - Sua capacidade de fazer o bem e de buscar o saber/ o conhecimento e também sua ignorância, suas falhas, incompetências ou erros. Assim se combate também a falácia de por a culpa nos deuses, quando uma pessoa ou uma sociedade sofre as consequências de seus atos mesquinhos, ignorantes etc.
Sócrates
— Pois bem, as coisas melhor constituídas não são as menos sujeitas a
ser alteradas e movidas por uma influência alheia? Pensa, por exemplo,
nas alterações causadas no corpo pelo alimento, pela bebida, pela
fadiga, ou na planta pelo calor do Sol, pelo vento e por outros
acidentes que tais; o indivíduo mais são e vigoroso não é o menos
atingido?
Adimanto — Sim.
Sócrates— E, da mesma maneira, não é a
alma mais corajosa e sábia a que menos é perturbada e alterada pelos
acidentes exteriores?
Adimanto — Por certo.
(...) Sócrates
— Em geral, todo o ser perfeito, que tira a sua perfeição da natureza,
da arte ou das duas, está menos sujeito às transformações vindas de
fora.
Adimanto — Assim é.
Sócrates — Mas se Deus é perfeito, tudo que se refere à sua natureza é em todos os aspectos perfeito?
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — Assim, pois, Deus é o menos sujeito a receber formas diferentes.
Aqui Sócrates explica que Deus não mudaria de forma se apresentando sob variadas aparências como conta alguns mitos.
Em seguida o filósofo pergunta a Adimanto se ele acha que Deus mentiria e este não sabe o que responder. Sócrates explica que ninguém aceita de bom grado ser enganado, nem almeja uma ignorância total, deixando sua psiquê (alma) alheia à verdade. Sócrates diz que os humanos mentem basicamente devido a 2 tipos de motivos: Por desconhecimento sobre o passado (que gera fábulas e mitos errôneos/ nocivos) ou para lidar com inimigos ou amigos que estão em algum estado de desatino. Nestas situações o mentiroso é levado por mainon, (certamente referindo-se à loucura, ódio ou paixão sensorial) ou por alienação (tolice, insensatez), objetivando alguma ação má. Adimanto diz que o divino não tem amigos desatinados nem malignos e nem desconhece o passado. Sócrates conclui assim, que o divino (théion) e o espiritual (daimónon) são alheios à mentira. "Assim, Deus fala clara e verdadeiramente em atos e palavras, e não se embriaga (altera) nem engana os outros, nem por imaginação, nem por palavras, nem por sinais de procissão (envios de sinais, sonhos), nem em vão nem em nome."
A
poesia (seja ela literatura, discurso. música etc) sobre o divino, para autor,
deve ser centrada na ética e assim deve ser útil para todos indivíduos
nos estados/ nações alcançado resultados bons aos coletivos/ para
sociedade.