Observações sobre Politéia (A República); Livro 2

Livro II (357a - 376e)

Aqui continuo as observações sobre a obra "A República" de Platão, onde são discutidas a justiça, a cidade e os mitos. (357-358): Glauco pergunta se Sócrates quer convencê-los de que mais vale a pena ser justo do que injusto, então o filósofo responde afirmativamente, pois entende que a justiça leva à felicidade. Glauco continua explicando que cansou-se de ouvir pessoas com discursos similares ao de Trasímaco, mas não achou o discurso à favor da justiça feito por Sócrates, suficientemente convincente. Glauco diz que a injustiça é defendida por muitos devido a uma série de fatores como ambição, desejo de impunidade e de se vingar da injustiça de outrem. Para isso ele conta o mito de Gyges (359-360) que utilizava um anel capaz de conferir-lhe invisibilidade. Com tal item o personagem ficava livre para cometer injustiças sem sofrer punições e assim o fez buscando realizar seus desejos. Glauco então diz que se tal anel existisse, ninguém resistiria seu poder para preferir uma vida justa: todos que tivessem o "poder de se tornar invisíveis" acabariam escolhendo uma vida de injustiças. Ele completa seu argumento explicando que o supra-sumo da injustiça é ser injusto parecendo justo. Tal tipo de indivíduo faz de tudo para esconder seus crimes, e, quando falha, consegue "reparar" tal falha, persuadindo os outros ou eliminando seus denunciantes e opositores, quando necessário, com andreas (coragem/ virilidade, um termo patriarcal explicado em textos anteriores) e força (violência). Glauco conclui que, o contrário deste tipo de indivíduo seria o justo que não quer parecer justo - quer apenas ser justo. Se este tiver a aparência de justo, receberá honrarias e recompensas, mas se não tiver a aparência de justo, acabará perseguido, punido, castigado, torturado e, por fim, morto empalado. Adimanto então interfere no diálogo dizendo que os argumentos de Glauco não abordam o que mais importa discutir (362-367). Adimanto explica que muitos indivíduos na sociedade pregam a importância da justiça sem elogiar a coisa em si. Isto porque eles valorizam muito as honrarias e recompensas. Tal "ideologia", de acordo com Adimanto, aparece até mesmo nos mitos e poesias helênicas: promete-se recompensas prazerosas e/ou materiais no "além vida" para os justos e punições para os injustos. As pessoas então temeriam parecer injustos, mas continuariam perseguindo recompensas chegando a barganhar não só com outros indivíduos, mas com os próprios "deuses" dos mitos (oferecendo-lhes sacrifícios etc). Conforme algumas obras de poetas famosos da "Grécia" clássica (Homero, Hesíodo etc...) os deuses seriam passíveis de serem persuadidos e alguns até impuseram penas aos justos, para estes viverem como infelizes ou miseráveis. De acordo com Adimanto, a partir daí surgiriam os adivinhos e feiticeiros batendo na porta dos ricos, prometendo purificação dos crimes, libertação e outras recompensas. Com isso tudo, as pessoas que acreditavam nos deuses, poderiam cometer crimes e se livrarem da culpa oferecendo sacrifícios e outros rituais, enquanto os que "não soubessem" (não acreditassem) sobre os deuses, poderiam praticar seus crimes formando conluios para escondê-los das pessoas de modo geral (da sociedade), como mencionado por Glauco.

Para encontrarem as origens da justiça e da injustiça então, os personagens começam a dialogar sobre a cidade (pólis)

Sócrates — A justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade? 

Adimanto — Sim. 

Sócrates — E a cidade não é maior que o indivíduo? 

Adimanto — Claro. 

Sócrates — Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena. 

Adimanto — Estou de acordo. 

Sócrates — Porém, se estudarmos o nascimento de uma cidade, não observaremos a justiça aparecer nela, tanto quanto a injustiça? 

Adimanto — E possível. (...) 

Sócrates — Construamos em pensamento uma cidade cujos alicerces serão as nossas necessidades. 

Adimanto — Certo. 

Sócrates — O primeiro deles, que é também o mais importante de todos, consiste na alimentação, de que depende a conservação do nosso ser e da nossa vida. 

Adimanto — Sem dúvida. 

Sócrates — O segundo consiste na moradia; o terceiro, no vestuário e em tudo o que lhe diz respeito. 

Adimanto — Isso mesmo. 

Sócrates — Mas como poderá uma cidade prover à tantas necessidades? Não será preciso que um seja agricultor, outro pedreiro, outro tecelão? Poderemos acrescentar um sapateiro ou qualquer outro artesão para as necessidades do corpo? 

Adimanto — Certamente. 

Sócrates — Então, cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade. O lavrador, por exemplo, garantirá sozinho a alimentação de quatro, gastando quatro vezes mais tempo e trabalho em fazer a provisão de trigo que terá de repartir com os outros. Mas não seria preferível que, trabalhando apenas para si, só produzisse a quarta parte dessa alimentação na quarta parte do tempo, destinando as outras três quartas partes a procurar moradia, vestimentas e calçados, tratando ele mesmo das suas coisas, sem se importar com a comunidade? 

Adimanto — Talvez seja mais fácil trabalhar de acordo com a primeira maneira. 

Sócrates — As tuas palavras me sugerem o seguinte raciocínio: em primeiro lugar, a natureza não fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para esta ou aquela função. Em que circunstância, então, se trabalha melhor, quando se exerce um só ofício ou vários ofícios de uma só vez? 

Adimanto — Quando se exerce só um. 

Sócrates — Parece-me também que, quando se deixa passar a oportunidade de fazer uma coisa, essa coisa perde-se. Porque o trabalho a ser realizado não se acomoda às conveniências do operário, mas este à natureza do trabalho, sem perda de tempo. De onde se deduz que se produzem todas as coisas em maior número, melhor e mais facilmente, quando cada um, segundo as suas aptidões e no tempo adequado, se entrega a um único trabalho, sendo dispensado de todos os outros. 

Adimanto — É como dizes. 

Sócrates — Neste caso, são necessários mais de quatro cidadãos para satisfazer as necessidades a que nos referimos. Com efeito, o lavrador não deve fazer o próprio arado, se quiser que seja de boa qualidade, tampouco a enxada, nem as outras ferramentas agrícolas; também o pedreiro não fará a sua ferramenta; o mesmo se dará com o tecelão e o sapateiro, não concordas? 

Adimanto — Concordo. 

Sócrates — Desta forma, temos carpinteiros, ferreiros e muitos outros operários aumentando a população de nossa pequena cidade. Mas seria ainda maior se lhe juntássemos boiadeiros, pastores e outras espécies de criadores de gado, para que o lavrador tenha bois para a lavra da terra; o pedreiro, animais de carga para transportar materiais; o tecelão e o sapateiro, peles e lãs. 

Adimanto — Mas uma cidade que reunisse todas essas pessoas já não seria tão pequena. 

Sócrates — E tem mais: seria impossível fundar uma cidade num local onde não houvesse necessidade de importar nada. 

Adimanto — Sim, seria impossível. 

Sócrates — Haveria, pois, necessidade de outras pessoas que, de outras cidades, trouxessem o que lhe falta. Porém, se essas pessoas fossem de mãos vazias, não levando nada daquilo de que os fornecedores demandam, também partiriam de mãos vazias, não é? 

Adimanto — Penso que sim. 

Sócrates — Será necessário, então, que a nossa cidade produza não apenas aquilo de que precisa, mas também aquilo que lhe é exigido pelos fornecedores. Por conseguinte, será necessário um maior número de agricultores e de outros artesãos. 

Adimanto — Logicamente. 

Sócrates — E inclusive de pessoas que se encarreguem da importação e da exportação das diversas mercadorias. Ora, estas pessoas são os comerciantes, certo? 

Adimanto — São. 

Sócrates — Logo, também precisaremos de comerciantes. E, se o comércio se fizer por mar, ainda precisaremos de gente versada na arte da navegação. Mas, no interior da própria cidade, como os homens irão permutar os produtos do seu trabalho? Já que foi com esse propósito que os associamos ao findarmos uma cidade. 

Adimanto — Evidentemente que será através da venda e da compra. 

Sócrates — Neste caso, necessitaríamos de um mercado e de moeda, símbolo do valor das mercadorias permutadas. 

Adimanto — Sem dúvida. 

Sócrates — Mas, se o lavrador ou qualquer outro operário que leva ao mercado um de seus produtos não conseguir se encontrar com aqueles que querem fazer permutas com ele, interromperá o seu trabalho para ficar sentado no mercado esperando-os? 

Adimanto — De jeito nenhum. Existem pessoas que se encarregam desse serviço; nas cidades bem organizadas, são geralmente as pessoas mais fracas de saúde, incapazes de qualquer outro trabalho. O seu papel é ficar no mercado, comprar a dinheiro aos que vendem, e depois vender, também a dinheiro, aos que desejam comprar. 

Sócrates — Logo, esta necessidade dá origem à classe dos mercadores na nossa cidade; damos este nome — não é mesmo? — àqueles que se dedicam à compra e à venda, com estabelecimento aberto no mercado, e o de negociantes aos que viajam de cidade em cidade. 

Adimanto — Perfeitamente. 

Sócrates — Existem também outras pessoas que prestam serviços: aquelas que, sem talento para outro tipo de serviço, são, pelo seu vigor corporal, aptos para os trabalhos pesados; vendem o emprego da sua força física e, como denominam salário o preço do seu trabalho, damos-lhes o nome de assalariados, não é assim? 

Adimanto — Exatamente. 

Sócrates — Esses assalariados, no meu entender, representam o complemento da cidade. Então, a nossa cidade já não cresceu suficientemente para ser considerada perfeita? 

Adimanto — Talvez. 

Sócrates — E onde encontraremos a justiça e a injustiça? De qual dos elementos que mencionamos julgas que elas se originam? 

Adimanto — Eu não o sei, Sócrates, salvo se for das relações mútuas dos cidadãos. 

Sócrates — Talvez tenhas razão. Mas convém que analisemos o caso sem desanimar. Comecemos considerando como viverão as pessoas assim organizadas. Não produzirão trigo, vinho, vestuário, calçados? Não edificarão moradias? Durante o verão, trabalharão quase nuas e descalças, e, no inverno, vestidas e calçadas. Para se alimentar, prepararão farinha de cevada e de frumento, cozinhando esta e apenas amassando aquela; colocarão seus estupendos bolos e os seus pães em ramos ou folhas frescas e, deitadas em camas de folhagem, feitas de teixo e de murta, regalar-seão com seus filhos, bebendo vinho, com a cabeça coroada de flores, e cantando louvores aos deuses; passarão assim agradavelmente a vida juntos e regularão o número de filhos pelos seus recursos, para evitar os incômodos da pobreza e os temores da guerra. 

373a - 383c Glauco interfere dizendo que é preciso de mais conforto, insinuando que os habitantes desta cidade ideal de Sócrates podem ser comparados com animais… Sócrates responde que sua cidade é sã, e entende que Glauco refere-se a uma “necessidade” (busca, ambição) por luxo e diz que uma cidade com luxo deve ser cheia de excitação podendo ser ideal para encontrar as origens da justiça e da injustiça. 

Os interlocutores então chegam à conclusão que a cidade seria cheia de coisas pouco ou nada necessárias: caçadores, imitadores, artistas ambulantes, empresários de teatro, cabeleireiros e fabricantes de adornos femininos e de vários outros artigos. Com elevado número de cidadãos se ocupando de tais negócios, tal cidade também exigiria servidores como pedagogos, governantas, amas (cuidadoras), criadores de porcos, cozinheiros e mestres de cozinha, permitindo os hábitos dos estilos de vida mais luxuosos. Sócrates e os demais entendem que tal cidade precisaria crescer tomando territórios vizinhos principalmente para criar animais (para o abate e consumo) e por isso  entraria em guerra com outros povos:

 Sócrates — Então seremos obrigados a tomar as pastagens e lavouras dos nossos vizinhos? E eles não farão a mesma coisa em relação a nós, se, ultrapassando os limites do necessário, se entregarem, como nós, a uma insaciável cupidez (cobiça)?
Glauco — E bem provável, Sócrates.
Sócrates — Iremos então à guerra, ou faremos outra coisa?
Glauco — Iremos à guerra.
Sócrates — Ainda não chegou o momento de dizer se a guerra acarreta bons ou maus resultados; Notemos apenas que descobrimos a origem da guerra nessa paixão que é, no mais alto grau, geradora desse flagelo tão funesto para o indivíduo e a sociedade.
Glauco — Exatamente.
Sócrates — Então, meu amigo, a cidade precisa aumentar ainda mais, e não em pouca coisa, pois redamará todo um exército que possa entrar em campanha para defender todos os bens a que nos referimos e fazer frente aos invasores.
Glauco — Mas como? Os cidadãos não podem fazer isso?
Sócrates — Não, se tu e todos nós concordamos com o princípio, quando fundamos a cidade, de que é impossível a um único homem exercer satisfatoriamente vários ofícios.

Como a maioria das pessoas domina só uma profissão, a cidade crescente (em luxo etc) proposta por Glauco e desenvolvida em diálogo com Sócrates, precisaria de toda uma classe de guardas/ soldados treinados no combate e na defesa da cidade/ estado. A partir daí Sócrates e os demais conjecturam uma educação ideal para os guardas da cidade/ estado

375b-376e: Sócrates: Já percebeste que a cólera é algo indomável e invencível e que o espírito que a possui não pode temer nem ceder?
Glauco — Percebi.
Sócrates — São estas, pois, as qualidades que deve ter o guardião no que concerne ao corpo?
Glauco — Sim.
Sócnates — E no que concerne à psiquê (alma), deve ser de temperamento irascível?
Glauco — Sim, também.
Sócrates — Mas então, Glauco, não serão ferozes uns com os outros e com o restante dos cidadãos que tiverem os mesmos temperamentos?
Glauco — Por Zeus! Só poderá ser dessa maneira!
Sócrates — Entretanto, é preciso sejam mansos com os seus e rudes com os inimigos; caso contrário, não esperarão que outros destruam a cidade: eles mesmos a destruirão.
Glauco — Receio que sim.
Sócrates — Que fazer, então? Onde encontraremos um temperamento ao mesmo tempo manso e irascível? Pois um temperamento manso é o oposto de um temperamento irascível.
Glauco — É o que parece.
Sócrates — Contudo, se faltar uma destas qualidades, não teremos um bom guardião. Tê-las a ambas é impossível de onde se conclui que um bom guerreiro não se encontra em parte alguma.
Glauco — Receio que estás com a razão.
Hesitei por alguns instantes, refletindo no que acabávamos de dizer, e depois continuei: (Sócrates) — Bem que merecemos estar em embaraço, meu amigo, por termos abandonado a comparação que havíamos proposto.
 

Sócrates então conclui que, para contrapor a natureza bélica (guerreira e/ou violenta), seria necessário a educação de um filósofo para o exército/ guardas da cidade. Tal educação além da ginástica para o corpo, incluiria música e literatura para psiquê (alma). Certamente a arte dos discursos e/ou da literatura era agrupada com a poesia e a música por serem consideradas atividades relacionadas à inspiração, ou seja, às musas - espíritos que inspiravam os "mortais"/ os seres humanos na cultura (e mitologia) grega. Porém Sócrates identifica 2 tipos de literatura (também traduzido como 2 tipos de discursos): as falsas e as verdadeiras.

377a-377e: Sócrates — Ambos (discursos/ literaturas) entrarão na nossa educação ou começaremos pelos falsos?
Adimanto — Não estou entendendo.
Sócrates — Nós não começamos contando fábulas às crianças? Geralmente são falsas, embora encerrem algumas verdades. Utilizamos essas fábulas para a educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.
Adimanto — É verdade.
Sócrates — Este é o motivo por que eu dizia que a música deve preceder a ginástica.
Adimanto — E tens razão.
Sócrates — E não sabes que o começo, em todas as coisas, é sempre o mais importante, principalmente para os jovens? Com efeito, é sobretudo nessa época que os modelamos e que eles recebem a marca (matriz) que pretendemos imprimir-lhes.
Adimanto — Com certeza.
Sócrates — Sendo assim, vamos permitir, por negligência, que as crianças ouçam as primeiras fábulas que lhes apareçam, criadas por indivíduos quaisquer, e recebam em seus espíritos entender, quando forem adultos?
Adimanto — De nenhuma forma permitiremos.
Sócrates — Portanto, parece-me que precisamos começar por vigiar os criadores de fábulas, separar as suas composições boas das más. Em seguida, convenceremos as amas e as mães a contarem aos filhos as que tivermos escolhido e a modelarem-lhes a alma com as suas fábulas muito mais do que o corpo com as suas mãos! Mas a maior parte das que elas contam atualmente devem ser condenadas. Sócrates conclui que as fábulas grandes e as pequenas devem ter o mesmo molde e poder (efeito).

Adimanto — (...) não sei quais são essas grandes fábulas de que falas. 

Sócrates — São as de Hesíodo, Homero e de outros poetas. Eles compuseram fábulas mentirosas que foram e continuam sendo contadas aos homens.

Adimanto — E com razão que se condenem tais coisas. Mas como dizemos isso e a que estamos nos referindo? 

Sócrates — Em primeiro lugar, aquele que criou a maior das mentiras a respeito dos maiores dos seres criou-a sem beleza, quando disse que Urano fez o que relata Hesíodo e como Cronos se vingou. Mesmo que o comportamento de Cronos e a maneira como foi tratado pelo filho fossem verdadeiros, penso que não deviam ser narrados com tanta leviandade a seres desprovidos de razão e às crianças, mas que seria preferível enterrá-los no silêncio. 

Adimanto — De fato, essas histórias são abomináveis. 

Sócrates— E não devem ser contadas na nossa cidade. Não se deve dizer diante de um jovem ouvinte que, cometendo os piores crimes e castigando um pai injusto da forma mais cruel, não faz nada de extraordinário e age como os primeiro se os maiores dos deuses. 

Adimanto — Não, por Zeus! A mim também parece que tais coisas não se devam dizer! 

Sócrates — Deve-se também evitar contar que os deuses fazem guerra entre si e que armam ciladas recíprocas, porque não é verdade, se quisermos que os futuros guardiães da nossa cidade considerem o cúmulo da vergonha discutir levianamente. E ainda menos se lhes deve contar ou representar em tapeçarias as lutas dos gigantes e esses ódios de toda a espécie que armaram os deuses e os heróis contra os seus parentes e amigos.” 

(...) Que jamais se lhes conte a história de Hera acorrentada pelo filho, de Hefesto precipitado do céu pelo pai, por ter defendido a mãe, que aquele maltratava, e os combates de deuses que Homero imaginou, quer essas ficções sejam alegóricas, quer não. Pois uma criança não pode diferenciar uma alegoria do que não é, e as opiniões que recebe nessa idade tornam-se indeléveis e inabaláveis. E devido a isso que se deve fazer todo o possível para que as primeiras fábulas que ela ouve sejam as mais belas e as mais adequadas a ensinar-lhe a virtude.
Adimanto — Tudo que dizes é profundamente sensato. Porém, se alguém nos indagasse o que entendemos por isso e que fábulas são essas, que responderíamos?
379: Sócrates — Mas, Adimanto, nem tu nem eu somos poetas, mas fundadores de cidade. Compete aos fundadores conhecer os modelos que devem seguir os poetas nas suas histórias e proibir que se afastem deles; mas não lhes compete criar fábulas.
Adimanto — Está bem. Mas, ainda assim, gostaria de saber quais são os modelos que se devem seguir nas histórias (também traduzido como teologias) que se referem aos deuses.
Sócrates — Vou dizer-te. Deve-se representar Deus (Theos) sempre tal como é, quer seja representado na epopéia, na poesia lírica ou na tragédia.
Adimanto — Perfeitamente de acordo.
Sócrates — Não é certo que Deus é essencialmente bom e não é assim que se deve falar dele?
Adimanto — Sem dúvida. 

(...) Sócrates — Então, o bem não é a causa de todas as coisas; é a causa do que é bom e não do que é mau.

380-383: Sócrates então separa o bem do mal, explicando que o que é bom não pode gerar o mal. Assim o filósofo combate os mitos que atribuem a causa dos males aos deuses, bem como também faz uma crítica aos argumentos mitológicos (da religião grega) que os deuses determinaram destinos aleatórios aos seres humanos. Sócrates indica desta maneira que o Deus criou o bem, as coisas boas, e que os males têm origem e causa no próprio ser humano e em suas relações. Platão indica aqui o livre arbítrio do ser humano, ou seja, sua intenção e responsabilidade por seus atos - Sua capacidade de fazer o bem e de buscar o saber/ o conhecimento e também sua ignorância, suas falhas, incompetências ou erros. Assim se combate também a falácia de por a culpa nos deuses, quando uma pessoa ou uma sociedade sofre as consequências de seus atos mesquinhos, ignorantes etc. 

 Sócrates — Pois bem, as coisas melhor constituídas não são as menos sujeitas a ser alteradas e movidas por uma influência alheia? Pensa, por exemplo, nas alterações causadas no corpo pelo alimento, pela bebida, pela fadiga, ou na planta pelo calor do Sol, pelo vento e por outros acidentes que tais; o indivíduo mais são e vigoroso não é o menos atingido?
 Adimanto — Sim.
Sócrates— E, da mesma maneira, não é a alma mais corajosa e sábia a que menos é perturbada e alterada pelos acidentes exteriores?
Adimanto — Por certo.
(...) Sócrates — Em geral, todo o ser perfeito, que tira a sua perfeição da natureza, da arte ou das duas, está menos sujeito às transformações vindas de fora.
Adimanto — Assim é.
Sócrates — Mas se Deus é perfeito, tudo que se refere à sua natureza é em todos os aspectos perfeito?
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — Assim, pois, Deus é o menos sujeito a receber formas diferentes.

Aqui Sócrates explica que Deus não mudaria de forma se apresentando sob variadas aparências como conta alguns mitos. 

Em seguida o filósofo pergunta a Adimanto se ele acha que Deus mentiria e este não sabe o que responder. Sócrates explica que ninguém aceita de bom grado ser enganado, nem almeja uma ignorância total, deixando sua psiquê (alma) alheia à verdade. Sócrates diz que os humanos mentem basicamente devido a 2 tipos de motivos: Por desconhecimento sobre o passado (que gera fábulas e mitos errôneos/ nocivos) ou para lidar com inimigos ou amigos que estão em algum estado de desatino. Nestas situações o mentiroso é levado por mainon, (certamente referindo-se à loucura, ódio ou paixão sensorial) ou por alienação (tolice, insensatez), objetivando alguma ação má. Adimanto diz que o divino não tem amigos desatinados nem malignos e nem desconhece o passado. Sócrates conclui assim, que o divino (théion) e o espiritual (daimónon) são alheios à mentira. "Assim, Deus fala clara e verdadeiramente em atos e palavras, e não se embriaga (altera) nem engana os outros, nem por imaginação, nem por palavras, nem por sinais de procissão (envios de sinais, sonhos), nem em vão nem em nome."

A poesia (seja ela literatura, discurso. música etc) sobre o divino, para autor, deve ser centrada na ética e assim deve ser útil para todos indivíduos nos estados/ nações alcançado resultados bons aos coletivos/ para sociedade.

A Anti ética, a Ética e a Psiquê Humana

Neste texto trago alguns assuntos que já abordei em outras "publicações" (posts), mas dando maior ênfase na importância da ética para além da filosofia.

A utilização das religiões como ferramenta de poder: 

A religião de um modo geral tem suas origens antes da história escrita, há milênios atrás, se levarmos em conta o xamanismo.

Desde a invenção da escrita por volta de 3.500 a.C., uma parte significativa da classe religiosa assumiu uma posição de prestígio ou de poder em variadas civilizações (Egito, Acádia, Babilônia etc). Estas religiões politeístas influenciavam grandemente os governantes, fossem eles faraós do Egito ou patesis dos estados da Mesopotâmia. 

O período de surgimento da primeira religião monoteísta é controverso: ela, conhecida como judaísmo, pode ter surgido das tribos hebraicas entre os séculos 15 e 18 antes de Cristo, mas alguns judeus atribuem sua origem tradicional entre o final do 4º milênio a.C. e início do 3º milênio. O judaísmo manteve-se muito próximo/ vinculado à nação/ etnia judaica sucessora das tribos hebraicas e dificilmente deve ter se tornado uma significativa ferramenta de poder "mundano ou estatal" (talvez só entre os séculos 10 e 9 antes de Cristo, sob o reinado de Davi e/ou de Salomão), mas não me aprofundarei sobre a antiguidade neste texto.

Considerando que a palavra espiritualidade só passa a ser propagada a partir do século 20, pode-se dizer que antes disso, existiam religiosos com poder sobre grupos e até sobre uma sociedade, e outros religiosos sem poder mundano - estes últimos simplesmente se dedicam às práticas espirituais.

Muito tempo depois das religiões mencionadas acima, o cristianismo surge entre as baixas classes sociais (Jesus e seus apóstolos) durante o século 1 na Judéia sob domínio do Império Romano. O governo romano então se aproxima do cristianismo e este começou a ser institucionalizado no ano de 325, passando a se chamar igreja católica e atingindo um auge de poder por volta do ano 1054 quando esta religião monoteísta se divide em duas: A católica romana (do ocidente) e a ortodoxa (do oriente). Em 1517 surge o protestantismo propondo uma reforma da igreja católica do ocidente e isto gera mais uma separação na história das religiões cristãs. Com um olhar histórico resumido, é possível perceber que argumentos de promessas de riqueza dentro das religiões monoteístas começaram depois do surgimento do calvinismo, um movimento protestante do século 16 que defendia um "valor sagrado" do trabalho e, ao menos de certa forma, do acúmulo dos bens. 

Porém, talvez as teologias da prosperidade como a mencionada acima (entre outras) podem estar ficando desgastadas por uma série de motivos, mas isso não quer dizer que as religiões estão necessariamente se tornando mais espiritualizadas ou solidárias: Mais atualmente, neste inicio de século 21, propaga-se a teologia da dominação baseada na promessa de "proteção espiritual". Essas promessas surgem como a idéia de "unção" nas igrejas evangélicas: Pastores convocam "fiéis" para receberem a unção como valor principal da religião. Recebida a suposta proteção divina chamada unção, os ensinamentos de Jesus baseado no amor à todos, passam a ser ignorados. Este conceito de unção foi adaptado ou distorcido de textos do velho testamento e isso faz sentido, pois nas igrejas cristãs, os religiosos conservadores ou reacionários pregam mais o velho testamento e algumas cartas de Paulo, do que os evangelhos com as passagens de Jesus. Desta forma os líderes religiosos conseguem priorizar passagens da bíblia voltadas à respectiva época a qual os textos foram escritos. Com esta priorização, os líderes escolhem argumentos nitidamente arcaicos e desatualizados próprios da antiguidade e os trazem como se fossem verdades absolutas para nossa época, sobrepondo até mesmo muitos dos ensinamentos de Jesus mencionados anteriormente. Chamam a Deus de "Senhor dos Exércitos", como era chamado séculos antes de Cristo, para defender a violência e se afastar do Deus piedoso explicado por Jesus. Chamam os membros de suas respectivas igrejas ou comunidades de "filhos de Abraão" para incitar a ideia de escolhidos, considerando-se melhores ou mais puros do que pessoas ateias ou de outras religiões, e assim se apoiam em vários outros termos e passagens dos textos da bíblia retirados de seus contextos originais da antiguidade*. Se escondendo atrás destas falácias, os líderes religiosos e suas respectivas igrejas podem propagar racismo, submissão das mulheres e transfobia facilmente. Podem criar inimigos fora de suas igrejas ou de suas religiões, fomentando rivalidade, conservadorismo, ignorância e obscurantismo. 

No espiritismo, o conservadorismo e o reacionarismo (ignorância do presente e veneração do passado), cresceram no Brasil ao longo do século 20 com a propagação exagerada de obras mediúnicas nada comprováveis. São romances sobre o além, descrições de realidades particulares como se fossem regras absolutas e contos que inspiram incerteza e medo! Além disto, os centros espíritas conservadores freqüentemente inventam explicações sobre qualquer sofrimento alheio culpando as vítimas, alegando que elas estão sofrendo por erros cometidos em outras encarnações (em vidas anteriores). Através deste afastamento dos ensinamentos de Jesus, eles incitam a veneração dos médiuns mais sensacionalistas e manipuladores**. Assim, o espiritismo conservador/ reacionário também se afasta das obras originais de Kardec, pois o fundador do movimento espírita da França do século 19 analisava criticamente as mensagens recebidas, fossem elas de médiuns ou de espíritos. 

Ambos movimentos (das igrejas cristãs e do espiritismo brasileiro) se apoiam na oratória e na retórica, ou seja, no sofismo que foi tão combatido pelos fundadores da filosofia ocidental, Sócrates e Platão. Esses movimentos religiosos conservadores/ reacionários então se mostram altamente anti éticos. Pois a filosofia ocidental em sua origem foi centrada na ética, na ideia do bem e na finalidade da melhoria (vide a função da ontologia na obra Fêdon). 

Os discursos religiosos que parecem "hipnotizar" grupos de pessoas possivelmente têm relação com o fato das pessoas não possuírem muito tempo para estudar as áreas "de humanas" (história, filosofia etc), ou, em alguns casos, os discursos manipuladores simplesmente servem bem aos que não querem pensar muito. Sentimentos não são opostos da racionalidade, mas são diferentes entre si. É difícil desenvolver os dois (a racionalidade e os sentimentos) voltados ao humanismo, à empatia, enfim, à ética. E o sentimento é uma necessidade humana que muitos líderes manipulam, não só nos meios espirituais, mas nos meios políticos e econômicos também. 

Analisando tais fatos, poderíamos concluir de maneira simplista, para não dizer errônea, que para combater tanto charlatanismo (logro, enganação) e obscurantismo, a humanidade deveria abandonar toda a religião, priorizando a ciência. Esta conclusão é errônea não só por que muitas pessoas querem ter uma religião ou uma espiritualidade, mas porque a ciência surge na era moderna praticamente se separando da filosofia no século 19, "buscando maior objetividade" (certamente houve outros motivos também). Objetividade é útil para entendermos os fenômenos sensorialmente perceptíveis, entre eles, algumas das ações humanas. Porém a ciência surge desta separação da filosofia com 2 problemas: Seu pressuposto é predominantemente materialista niilista - Ou seja,  a ciência tradicional se apoia numa visão de mundo reducionista e extremista de que só existe o que se percebe no ambiente/ no espaço e por isso o método de investigação utilizado pela maior parte dos cientistas é praticamente todo externalizado - não se avalia sentimentos, pensamentos, autocontrole, intenção, valores éticos etc. A ética, tema central da filosofia em sua origem, permaneceu na filosofia que foi significantemente encoberta pela ciência. Desta forma, afastada da ética, a ciência gerou o racismo científico (ou seria pseudocientífico?) que de certa forma serviu para inventar que indígenas e negros eram inferiores ou mais primitivos do que os brancos, "justificando" movimentos como a Partilha (invasão e tomada) da África pelas elites da Europa. Essa "construção de conhecimento" distanciada da ética, também gerou o biologismo das ciências que resultou no darwinismo social da virada do século 19 ao 20. Resumidamente o darwinistas sociais (multimilionários e alguns "estudiosos" da Europa e América do Norte), a partir da interpretação de que o animal mais forte devorava o mais fraco, inventaram uma série de argumentos mentirosos que afirmavam que os mais ricos deveriam ficar cada vez mais ricos e os pobres deveriam ficar cada vez mais pobres, porque isto seria uma lei da natureza. Este absurdo afetou todas ciências humanas da época, naturalizando a violência, a iniquidade, a injustiça e (enfim) a antiética. Todo esse movimento de desumanização dos saberes serviu bem para a intensificação do liberalismo econômico e sua ideologia capitalista - Com a classe intelectual predominantemente dessensibilizada, naturalmente se espalham a busca incessante por enriquecimento e pelo acúmulo de bens materiais, o individualismo, a "superioridade" racial e étnica (racismo e nacionalismo) desde o final do século 19, passando pela 1ª guerra mundial até por volta dos anos de 1930 e 1940 do século 20, quando o nazismo e o fascismo ganham força na Europa e eclodem na 2ª guerra mundial.

Para piorar, a pré suposição (materialista niilista) mencionada acima, tenta afirmar que a ciência é um campo do saber "neutro", como se não houvessem interesses envolvidos no que se pesquisa e para onde se destinará os resultados da pesquisa. Essa neutralidade na construção dos conhecimentos/ dos saberes portanto não existe, pois todo ser humano tem intenções, consciência etc. Tudo que o ser humano faz tem intenções por trás, sejam individuais ou universais, boas ou más, justas ou injustas. 

Assim como alguns religiosos usaram táticas para ganhar fortunas e poder, alguns intelectuais se beneficiaram ou serviram alguém que se beneficiou de seus estudos e de suas descobertas (geralmente é o segundo caso, onde proprietários de grandes empresas se beneficiam): Ao longo da história as armas químicas, as armas de destruição em massa, o confinamento em manicômios e até a escravização foram utilizadas para que determinados indivíduos se aproveitassem de outros "em nome da ciência", seja ela a química, a física, a medicina/ a psiquiatria, a biologia ou qualquer outra. A diferença das manipulações por trás da ciência, para as manipulações por trás da religião, é que estas últimas geralmente incitam medo de "punições eternas" e um grande afastamento dos ensinamentos de amor, piedade, solidariedade etc. 

Estas táticas de um modo geral não são novidades nas igrejas. Elas apenas mudam seus argumentos falaciosos ao longo dos anos. São táticas de dominação que funcionam por meio da intimidação e de promessas de recompensas sem relação alguma com amor, solidariedade, tolerância, equidade ou piedade. É óbvio que tais táticas visam favorecer líderes religiosos, sejam eles pastores, bispos, ou quaisquer outros - concedendo-lhes status, dinheiro e poder sobre grandes grupos de pessoas. A intenção de líderes que utilizam-se da religião para tais fins é tirar proveito de outros, favorecendo a eles mesmos. Lograr em cima de grupos ou mesmo de multidões. Inclusive as palavras proveito e lograr, ambas têm origens e significados muito semelhantes entre si: a primeira está relacionada à palavra inglesa "profit" (lucro) e a segunda, logro, que significa enganar, tirar proveito de outrem, está relacionada à palavra lucro. Portanto seus objetivos diferem muito da finalidade espiritual ensinada por Jesus e tantos outros líderes que viviam na humildade propagando o bem de modo universal - para que as pessoas pensem o bem e pratiquem o bem com todos. 

Como combater o mal na ciência e na religião? Qual seria a solução para tal problema? 

A solução não deve ser simples de ser colocada em prática: É a aplicação da ética na educação, na construção de conhecimento e na comunicação. A ética não é carisma, não é ser superficialmente simpático, nem meramente convincente ou polido - trata-se de valores universais, ou seja, que fazem bem para todas as pessoas, para o coletivo. É respeito, solidariedade, empatia, equidade etc. 

A ética, ou "seus valores", também devem ser inferidos, despertada individualmente, pois a ética faz bem para o indivíduo até mesmo psiquicamente. 

Os mais céticos poderiam contra argumentar dizendo que isso é ingênuo, ou impossível porque sempre haverão pessoas querendo tirar vantagens de outras. Porém estas pessoas que constantemente ou insistentemente tentam se aproveitar dos outros, estão satisfeitas? Permanecem satisfeitas? Certamente não, pois se fosse assim, parariam de tentar tirar vantagens das situações e das pessoas e ficariam satisfeitas com o que elas tem ou, mais precisamente, com o que elas são. Então, se elas nunca estão satisfeitas, elas são felizes? Óbvio que não. A satisfação de tais pessoas é fugaz e sempre passa, pois assim é o prazer - não é felicidade. Isto foi explicado na filosofia por Platão, em sua obra Filebo por exemplo, no século 4 a.C. e alguns estudos neurológicos recentes parecem indicar resultados numa direção similar a de Platão: Prazeres sensoriais como os do tato e do paladar, por exemplo, nunca podem ser definitivamente satisfeitos. (uma pena eu ter perdido a fonte destes estudos) 

Esta insatisfação consequente de uma busca incessante, não é boa, portanto é um mal. Como exemplo disto, basta ver como um típico multimilionário se comporta sempre em busca de enriquecimento: sua insatisfação é como um vício. Enquanto continua em sua busca nunca será feliz. No caso destes multimilionários eles podem prejudicar coletivos/ sociedades inteiras e por isso devem ser expostos, para que haja mais equidade e justiça entre as pessoas. É claro, que não vou detalhar tais assuntos aqui, pois neste texto abordo mais a ética e sua relação com a psiquê (seja mente ou alma). 

A felicidade então não está nos objetos - está em nossa psiquê e é boa, faz bem... 

Portanto deixo a questão: É possível ser feliz ou sentir-se plenamente bem, fazendo o mal? A resposta já está no texto e não fui eu quem a inventou. 

Fontes: (listagem incompleta)

 Platão, Fédon. Tradução de Edson Bini, Edipro (2020)

 [1] https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/12/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.html

https://youtu.be/QH0J4X-GGgE?si=nyL2Q9H_skwXiJY0 acesso em 20/05/2024  

Revue spirite - journal d'etudes psychologiques (vários números de 1858 a 1869)

*trecho retirado de diálogos de frequentadores da Igreja Universal no bairro do Brás, em São Paulo - SP;

**trecho baseado em conteúdos "espíritas" publicados na plataforma YouTube e  nos relatos de alunos do curso de Pedagogia Espírita da ABPE, frequentadores de variados centros espíritas pelo Brasil; 

Breves Observações sobre Politéia (A República); Livro 1

A obra conhecida e traduzida como "A República" é a mais famosa de Platão. Este extenso texto tem como título original “Politéia”, nome este que não tem tradução exata para outras línguas além do "grego".

Referindo-se às cidades/ estado helênicas (gregas) do período clássico e suas respectivas constituições ou códigos de leis, a obra mostra o diálogo de Sócrates com outros personagens sobre um estado (ou nação) ideal, ou seja, o melhor possível para a maioria das pessoas. Outros assuntos também são eventualmente abordados durante a conversa. 

Livro I: 

328a-329e: Sócrates encontra Polemarco, Glauco e Adimanto, que o levam até a casa do primeiro. Ali Sócrates tem uma breve conversa com o idoso Céfalo, que já não está apegado às coisas típicas dos mais jovens. Em seguida, Sócrates discute a justiça com Polemarco até Trasímaco interferir mostrando sua visão de “justiça” típica dos sofistas (em 337a-353e);

A interpretação de “justiça” de Trasímaco é basicamente a lei do mais forte: Usar todos recursos que se tem para beneficiar a si mesmo e aos seus preferidos ou “aliados”, assim o “mais forte” deve governar. Sócrates então expõe uma contradição no argumento de Trasímaco: Seu exemplar de governante pode errar e acabar prejudicado por isto. Trasímaco contra argumenta dizendo que assim como não considera um médico, verdadeiramente um médico, quando erra em seus procedimentos, não considera um governante forte (verdadeiro) quando o mesmo erra. Sócrates então menciona a finalidade de todas as artes (tekhnes, podendo ser traduzida também como profissões): 

341c: Sócrates — Mas diz-me: o médico, no sentido exato do termo, de que falavas ainda há pouco, tem por objetivo ganhar dinheiro ou tratar os doentes? Fala-me do verdadeiro médico. 

Trasímaco — Tem por objetivo tratar os doentes. 

Sócrates — E o piloto? O verdadeiro piloto é chefe dos marinheiros ou marinheiro? 

Trasímaco — Chefe dos marinheiros. 

341d: Sócrates — Não penso que se deva ter em conta o fato de navegar para que o denominemos marinheiro; de fato, não é por navegar que o denominamos piloto, mas devido à sua arte e ao comando que exerce sobre os marinheiros. 

Trasímaco — Concordo. 

Sócrates — Portanto, para o doente e o marinheiro, existe alguma vantagem? 

Trasímaco — Sem dúvida. 

Sócrates — E a arte não objetiva procurar e proporcionar a cada um o que é vantajoso para ele? 

Trasímaco — Sim. 

341e: Sócrates — Mas, para cada arte, existe outra vantagem além de ser tão perfeita quanto possível? 

Trasímaco — Qual é o sentido da tua pergunta? 

Sócrates — Este: Se me perguntasses se é suficiente ao corpo ser corpo ou se tem necessidade de outra coisa, responder-te-ia: Certamente que tem necessidade de outra coisa. Para isso é que a arte médica foi inventada: porque o corpo é defeituoso e não lhe é suficiente ser o que é. Por isso, para lhe proporcionar vantagens, a arte organizou-se’. Parece-te que tenho ou não razão? 

Trasímaco — Tens razão. 

(...) 342c: Sócrates — Portanto, a medicina não objetiva a sua própria vantagem, mas a do corpo. 

Trasímaco — Certamente. 

343-346: Na sequência os interlocutores discutem sobre o que é mais vantajoso: ser justo ou injusto e Trasímaco tenta seguir a linha de comparação baseada em profissões utilizada por Sócrates: Alega que os vaqueiros e pastores cuidam de seus animais apenas para matá-los em proveito próprio. Por isso os injustos se sobressairiam em todas situações sobre o justo e sobre o ingênuo: Conseguem pagar menos contribuições civis (ao estado), obter maiores lucros em transações e serem melhores reconhecidos por seus chegados e apoiadores por obterem tais vantagens sobre as demais pessoas da sociedade. Sócrates então diz que Trasímaco não se atentou à arte do pastoreio como se atentou à arte do médico: A arte do pastor é de cuidar bem de suas ovelhas (ou quaisquer outros animais), diferentemente de quem visa se banquetear dos animais ou vendê-los como um negociante. 

(...) Sócrates — Portanto, não é da arte que exerce que cada um retira esse proveito que consiste em receber um salário; mas, examinando com rigor, a medicina cria a saúde e a arte do mercenário proporciona o salário, a arquitetura edifica a moradia e a arte do mercenário, que a acompanha, proporciona o salário, e assim todas as outras artes: cada um trabalha na obra que lhe é própria e aproveita ao indivíduo a que se aplica. Porém, se não recebesse salário, tiraria o artesão proveito da sua arte? 

Trasímaco — Acredito que não. 

Sócrates — E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha gratuitamente? 

 Trasímaco — A meu ver, não. 

Sócrates — Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. 

Assim, sobre os ganhos pessoais com cada arte ou profissão, Sócrates indica que eles são um tipo de mercenarismo (a “tekhne” ou "arte" do mercenário), ou proveito tirado da prática, e não, a finalidade das profissões em si; Fazendo essa separação da arte do mercenário das demais artes/ profissões (como a da medicina etc), Sócrates continua:  — E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha gratuitamente? 

Trasímaco — A meu ver, não. 

Sócrates — Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. Eis por que, meu caro Trasímaco, que eu dizia há pouco que ninguém concorda de bom grado em governar e curar os males dos outros, mas exige salário, porque aquele que quer exercer convenientemente a sua arte não faz e não objetiva, na medida em que objetiva segundo essa arte, senão o bem do governado; 

Trasímaco concorda relutantemente com Sócrates e segue no diálogo com má vontade… 

347-353 Sócrates então segue indicando que o indivíduo bom não escolhe governar nem para conquistar riquezas nem para conseguir honrarias. Tal pessoa governaria apenas por necessidade e assim, em um “estado de homens justos” haveria competição para não governar enquanto no estado típico da época de Sócrates e de Platão, havia disputa para governar. O filósofo segue tratando da justiça com Trasímaco tentando definir o que é virtude e o que é vício: Trasímaco defende que a injustiça é uma virtude pois é proveitosa, enquanto a justiça não chega a ser vício, mas seria uma sublime ingenuidade. Sócrates pergunta-lhe se a injustiça não é um mau caráter, ao que Trasímaco responde que é prudência. 

No diálogo ambos concordam que o indivíduo justo tenta superar só o injusto não competindo com o justo, enquanto o injusto compete com ambos. Sócrates indica que o indivíduo que conhece uma arte ou profissão, detém episteme (traduzido como ciência ou como conhecimento) e que tal fato é perceptível. Após Trasímaco concordar, Sócrates indica que estes profissionais sendo sábios na arte que dominam, não tentam superar outros sábios, mas o ignorante tenta superar os sábios e outros ignorantes. Desta maneira o sábio se assemelha com o justo porque é justo de fato, enquanto o ignorante é e se parece com um injusto. Trasímaco se irrita com o resultado da investigação dialética e segue a contra gosto no diálogo com Sócrates: ele crê que o estado mais injusto tende a ser o mais bem-sucedido e o mais capaz de dominar todos os outros, porém, conforme Sócrates indicou, tal estado necessitaria de alguma justiça para se sobressair e governar, pois esta virtude é vinculada à sabedoria (ao domínio de uma episteme). O filósofo pergunta se um estado, exército, grupo de ladrões ou piratas, obteria êxito ao executar um plano ilegal, caso não observassem justiça alguma uns com os outros. Trasímaco responde que não obteriam êxito, pois seria necessária alguma justiça entre eles. Sócrates assim indica que a injustiça gera ódios, revoltas e conspirações, a justiça, pelo contrário, gera concórdia e amizade entre os indivíduos e grupos. 

No livro seguinte os demais interlocutores, juntamente com Sócrates, passam a investigar as origens da justiça e da injustiça.


 

Ensaio sobre Conhecimento, Ética e Política

Nos meus últimos 10 anos de vida, dos 33 aos 43 anos de idade, quando comecei a refletir sobre a humanidade e sobre a minha vida, percebi al...