A Anti ética, a Ética e a Psiquê Humana

Neste texto trago alguns assuntos que já abordei em outras "publicações" (posts), mas dando maior ênfase na importância da ética para além da filosofia.

A utilização das religiões como ferramenta de poder: 

A religião de um modo geral tem suas origens antes da história escrita, há milênios atrás, se levarmos em conta o xamanismo.

Desde a invenção da escrita por volta de 3.500 a.C., uma parte significativa da classe religiosa assumiu uma posição de prestígio ou de poder em variadas civilizações (Egito, Acádia, Babilônia etc). Estas religiões politeístas influenciavam grandemente os governantes, fossem eles faraós do Egito ou patesis dos estados da Mesopotâmia. 

O período de surgimento da primeira religião monoteísta é controverso: ela, conhecida como judaísmo, pode ter surgido das tribos hebraicas entre os séculos 15 e 18 antes de Cristo, mas alguns judeus atribuem sua origem tradicional entre o final do 4º milênio a.C. e início do 3º milênio. O judaísmo manteve-se muito próximo/ vinculado à nação/ etnia judaica sucessora das tribos hebraicas e dificilmente deve ter se tornado uma significativa ferramenta de poder "mundano ou estatal" (talvez só entre os séculos 10 e 9 antes de Cristo, sob o reinado de Davi e/ou de Salomão), mas não me aprofundarei sobre a antiguidade neste texto.

Considerando que a palavra espiritualidade só passa a ser propagada a partir do século 20, pode-se dizer que antes disso, existiam religiosos com poder sobre grupos e até sobre uma sociedade, e outros religiosos sem poder mundano - estes últimos simplesmente se dedicam às práticas espirituais.

Muito tempo depois das religiões mencionadas acima, o cristianismo surge entre as baixas classes sociais (Jesus e seus apóstolos) durante o século 1 na Judéia sob domínio do Império Romano. O governo romano então se aproxima do cristianismo e este começou a ser institucionalizado no ano de 325, passando a se chamar igreja católica e atingindo um auge de poder por volta do ano 1054 quando esta religião monoteísta se divide em duas: A católica romana (do ocidente) e a ortodoxa (do oriente). Em 1517 surge o protestantismo propondo uma reforma da igreja católica do ocidente e isto gera mais uma separação na história das religiões cristãs. Com um olhar histórico resumido, é possível perceber que argumentos de promessas de riqueza dentro das religiões monoteístas começaram depois do surgimento do calvinismo, um movimento protestante do século 16 que defendia um "valor sagrado" do trabalho e, ao menos de certa forma, do acúmulo dos bens. 

Porém, talvez as teologias da prosperidade como a mencionada acima (entre outras) podem estar ficando desgastadas por uma série de motivos, mas isso não quer dizer que as religiões estão necessariamente se tornando mais espiritualizadas ou solidárias: Mais atualmente, neste inicio de século 21, propaga-se a teologia da dominação baseada na promessa de "proteção espiritual". Essas promessas surgem como a idéia de "unção" nas igrejas evangélicas: Pastores convocam "fiéis" para receberem a unção como valor principal da religião. Recebida a suposta proteção divina chamada unção, os ensinamentos de Jesus baseado no amor à todos, passam a ser ignorados. Este conceito de unção foi adaptado ou distorcido de textos do velho testamento e isso faz sentido, pois nas igrejas cristãs, os religiosos conservadores ou reacionários pregam mais o velho testamento e algumas cartas de Paulo, do que os evangelhos com as passagens de Jesus. Desta forma os líderes religiosos conseguem priorizar passagens da bíblia voltadas à respectiva época a qual os textos foram escritos. Com esta priorização, os líderes escolhem argumentos nitidamente arcaicos e desatualizados próprios da antiguidade e os trazem como se fossem verdades absolutas para nossa época, sobrepondo até mesmo muitos dos ensinamentos de Jesus mencionados anteriormente. Chamam a Deus de "Senhor dos Exércitos", como era chamado séculos antes de Cristo, para defender a violência e se afastar do Deus piedoso explicado por Jesus. Chamam os membros de suas respectivas igrejas ou comunidades de "filhos de Abraão" para incitar a ideia de escolhidos, considerando-se melhores ou mais puros do que pessoas ateias ou de outras religiões, e assim se apoiam em vários outros termos e passagens dos textos da bíblia retirados de seus contextos originais da antiguidade*. Se escondendo atrás destas falácias, os líderes religiosos e suas respectivas igrejas podem propagar racismo, submissão das mulheres e transfobia facilmente. Podem criar inimigos fora de suas igrejas ou de suas religiões, fomentando rivalidade, conservadorismo, ignorância e obscurantismo. 

No espiritismo, o conservadorismo e o reacionarismo (ignorância do presente e veneração do passado), cresceram no Brasil ao longo do século 20 com a propagação exagerada de obras mediúnicas nada comprováveis. São romances sobre o além, descrições de realidades particulares como se fossem regras absolutas e contos que inspiram incerteza e medo! Além disto, os centros espíritas conservadores freqüentemente inventam explicações sobre qualquer sofrimento alheio culpando as vítimas, alegando que elas estão sofrendo por erros cometidos em outras encarnações (em vidas anteriores). Através deste afastamento dos ensinamentos de Jesus, eles incitam a veneração dos médiuns mais sensacionalistas e manipuladores**. Assim, o espiritismo conservador/ reacionário também se afasta das obras originais de Kardec, pois o fundador do movimento espírita da França do século 19 analisava criticamente as mensagens recebidas, fossem elas de médiuns ou de espíritos. 

Ambos movimentos (das igrejas cristãs e do espiritismo brasileiro) se apoiam na oratória e na retórica, ou seja, no sofismo que foi tão combatido pelos fundadores da filosofia ocidental, Sócrates e Platão. Esses movimentos religiosos conservadores/ reacionários então se mostram altamente anti éticos. Pois a filosofia ocidental em sua origem foi centrada na ética, na ideia do bem e na finalidade da melhoria (vide a função da ontologia na obra Fêdon). 

Os discursos religiosos que parecem "hipnotizar" grupos de pessoas possivelmente têm relação com o fato das pessoas não possuírem muito tempo para estudar as áreas "de humanas" (história, filosofia etc), ou, em alguns casos, os discursos manipuladores simplesmente servem bem aos que não querem pensar muito. Sentimentos não são opostos da racionalidade, mas são diferentes entre si. É difícil desenvolver os dois (a racionalidade e os sentimentos) voltados ao humanismo, à empatia, enfim, à ética. E o sentimento é uma necessidade humana que muitos líderes manipulam, não só nos meios espirituais, mas nos meios políticos e econômicos também. 

Analisando tais fatos, poderíamos concluir de maneira simplista, para não dizer errônea, que para combater tanto charlatanismo (logro, enganação) e obscurantismo, a humanidade deveria abandonar toda a religião, priorizando a ciência. Esta conclusão é errônea não só por que muitas pessoas querem ter uma religião ou uma espiritualidade, mas porque a ciência surge na era moderna praticamente se separando da filosofia no século 19, "buscando maior objetividade" (certamente houve outros motivos também). Objetividade é útil para entendermos os fenômenos sensorialmente perceptíveis, entre eles, algumas das ações humanas. Porém a ciência surge desta separação da filosofia com 2 problemas: Seu pressuposto é predominantemente materialista niilista - Ou seja,  a ciência tradicional se apoia numa visão de mundo reducionista e extremista de que só existe o que se percebe no ambiente/ no espaço e por isso o método de investigação utilizado pela maior parte dos cientistas é praticamente todo externalizado - não se avalia sentimentos, pensamentos, autocontrole, intenção, valores éticos etc. A ética, tema central da filosofia em sua origem, permaneceu na filosofia que foi significantemente encoberta pela ciência. Desta forma, afastada da ética, a ciência gerou o racismo científico (ou seria pseudocientífico?) que de certa forma serviu para inventar que indígenas e negros eram inferiores ou mais primitivos do que os brancos, "justificando" movimentos como a Partilha (invasão e tomada) da África pelas elites da Europa. Essa "construção de conhecimento" distanciada da ética, também gerou o biologismo das ciências que resultou no darwinismo social da virada do século 19 ao 20. Resumidamente o darwinistas sociais (multimilionários e alguns "estudiosos" da Europa e América do Norte), a partir da interpretação de que o animal mais forte devorava o mais fraco, inventaram uma série de argumentos mentirosos que afirmavam que os mais ricos deveriam ficar cada vez mais ricos e os pobres deveriam ficar cada vez mais pobres, porque isto seria uma lei da natureza. Este absurdo afetou todas ciências humanas da época, naturalizando a violência, a iniquidade, a injustiça e (enfim) a antiética. Todo esse movimento de desumanização dos saberes serviu bem para a intensificação do liberalismo econômico e sua ideologia capitalista - Com a classe intelectual predominantemente dessensibilizada, naturalmente se espalham a busca incessante por enriquecimento e pelo acúmulo de bens materiais, o individualismo, a "superioridade" racial e étnica (racismo e nacionalismo) desde o final do século 19, passando pela 1ª guerra mundial até por volta dos anos de 1930 e 1940 do século 20, quando o nazismo e o fascismo ganham força na Europa e eclodem na 2ª guerra mundial.

Para piorar, a pré suposição (materialista niilista) mencionada acima, tenta afirmar que a ciência é um campo do saber "neutro", como se não houvessem interesses envolvidos no que se pesquisa e para onde se destinará os resultados da pesquisa. Essa neutralidade na construção dos conhecimentos/ dos saberes portanto não existe, pois todo ser humano tem intenções, consciência etc. Tudo que o ser humano faz tem intenções por trás, sejam individuais ou universais, boas ou más, justas ou injustas. 

Assim como alguns religiosos usaram táticas para ganhar fortunas e poder, alguns intelectuais se beneficiaram ou serviram alguém que se beneficiou de seus estudos e de suas descobertas (geralmente é o segundo caso, onde proprietários de grandes empresas se beneficiam): Ao longo da história as armas químicas, as armas de destruição em massa, o confinamento em manicômios e até a escravização foram utilizadas para que determinados indivíduos se aproveitassem de outros "em nome da ciência", seja ela a química, a física, a medicina/ a psiquiatria, a biologia ou qualquer outra. A diferença das manipulações por trás da ciência, para as manipulações por trás da religião, é que estas últimas geralmente incitam medo de "punições eternas" e um grande afastamento dos ensinamentos de amor, piedade, solidariedade etc. 

Estas táticas de um modo geral não são novidades nas igrejas. Elas apenas mudam seus argumentos falaciosos ao longo dos anos. São táticas de dominação que funcionam por meio da intimidação e de promessas de recompensas sem relação alguma com amor, solidariedade, tolerância, equidade ou piedade. É óbvio que tais táticas visam favorecer líderes religiosos, sejam eles pastores, bispos, ou quaisquer outros - concedendo-lhes status, dinheiro e poder sobre grandes grupos de pessoas. A intenção de líderes que utilizam-se da religião para tais fins é tirar proveito de outros, favorecendo a eles mesmos. Lograr em cima de grupos ou mesmo de multidões. Inclusive as palavras proveito e lograr, ambas têm origens e significados muito semelhantes entre si: a primeira está relacionada à palavra inglesa "profit" (lucro) e a segunda, logro, que significa enganar, tirar proveito de outrem, está relacionada à palavra lucro. Portanto seus objetivos diferem muito da finalidade espiritual ensinada por Jesus e tantos outros líderes que viviam na humildade propagando o bem de modo universal - para que as pessoas pensem o bem e pratiquem o bem com todos. 

Como combater o mal na ciência e na religião? Qual seria a solução para tal problema? 

A solução não deve ser simples de ser colocada em prática: É a aplicação da ética na educação, na construção de conhecimento e na comunicação. A ética não é carisma, não é ser superficialmente simpático, nem meramente convincente ou polido - trata-se de valores universais, ou seja, que fazem bem para todas as pessoas, para o coletivo. É respeito, solidariedade, empatia, equidade etc. 

A ética, ou "seus valores", também devem ser inferidos, despertada individualmente, pois a ética faz bem para o indivíduo até mesmo psiquicamente. 

Os mais céticos poderiam contra argumentar dizendo que isso é ingênuo, ou impossível porque sempre haverão pessoas querendo tirar vantagens de outras. Porém estas pessoas que constantemente ou insistentemente tentam se aproveitar dos outros, estão satisfeitas? Permanecem satisfeitas? Certamente não, pois se fosse assim, parariam de tentar tirar vantagens das situações e das pessoas e ficariam satisfeitas com o que elas tem ou, mais precisamente, com o que elas são. Então, se elas nunca estão satisfeitas, elas são felizes? Óbvio que não. A satisfação de tais pessoas é fugaz e sempre passa, pois assim é o prazer - não é felicidade. Isto foi explicado na filosofia por Platão, em sua obra Filebo por exemplo, no século 4 a.C. e alguns estudos neurológicos recentes parecem indicar resultados numa direção similar a de Platão: Prazeres sensoriais como os do tato e do paladar, por exemplo, nunca podem ser definitivamente satisfeitos. (uma pena eu ter perdido a fonte destes estudos) 

Esta insatisfação consequente de uma busca incessante, não é boa, portanto é um mal. Como exemplo disto, basta ver como um típico multimilionário se comporta sempre em busca de enriquecimento: sua insatisfação é como um vício. Enquanto continua em sua busca nunca será feliz. No caso destes multimilionários eles podem prejudicar coletivos/ sociedades inteiras e por isso devem ser expostos, para que haja mais equidade e justiça entre as pessoas. É claro, que não vou detalhar tais assuntos aqui, pois neste texto abordo mais a ética e sua relação com a psiquê (seja mente ou alma). 

A felicidade então não está nos objetos - está em nossa psiquê e é boa, faz bem... 

Portanto deixo a questão: É possível ser feliz ou sentir-se plenamente bem, fazendo o mal? A resposta já está no texto e não fui eu quem a inventou. 

Fontes: (listagem incompleta)

 Platão, Fédon. Tradução de Edson Bini, Edipro (2020)

 [1] https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/12/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.html

https://youtu.be/QH0J4X-GGgE?si=nyL2Q9H_skwXiJY0 acesso em 20/05/2024  

Revue spirite - journal d'etudes psychologiques (vários números de 1858 a 1869)

*trecho retirado de diálogos de frequentadores da Igreja Universal no bairro do Brás, em São Paulo - SP;

**trecho baseado em conteúdos "espíritas" publicados na plataforma YouTube e  nos relatos de alunos do curso de Pedagogia Espírita da ABPE, frequentadores de variados centros espíritas pelo Brasil; 

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