Breves Observações sobre Politéia (A República); Livro 1

A obra conhecida e traduzida como "A República" é a mais famosa de Platão. Este extenso texto tem como título original “Politéia”, nome este que não tem tradução exata para outras línguas além do "grego".

Referindo-se às cidades/ estado helênicas (gregas) do período clássico e suas respectivas constituições ou códigos de leis, a obra mostra o diálogo de Sócrates com outros personagens sobre um estado (ou nação) ideal, ou seja, o melhor possível para a maioria das pessoas. Outros assuntos também são eventualmente abordados durante a conversa. 

Livro I: 

328a-329e: Sócrates encontra Polemarco, Glauco e Adimanto, que o levam até a casa do primeiro. Ali Sócrates tem uma breve conversa com o idoso Céfalo, que já não está apegado às coisas típicas dos mais jovens. Em seguida, Sócrates discute a justiça com Polemarco até Trasímaco interferir mostrando sua visão de “justiça” típica dos sofistas (em 337a-353e);

A interpretação de “justiça” de Trasímaco é basicamente a lei do mais forte: Usar todos recursos que se tem para beneficiar a si mesmo e aos seus preferidos ou “aliados”, assim o “mais forte” deve governar. Sócrates então expõe uma contradição no argumento de Trasímaco: Seu exemplar de governante pode errar e acabar prejudicado por isto. Trasímaco contra argumenta dizendo que assim como não considera um médico, verdadeiramente um médico, quando erra em seus procedimentos, não considera um governante forte (verdadeiro) quando o mesmo erra. Sócrates então menciona a finalidade de todas as artes (tekhnes, podendo ser traduzida também como profissões): 

341c: Sócrates — Mas diz-me: o médico, no sentido exato do termo, de que falavas ainda há pouco, tem por objetivo ganhar dinheiro ou tratar os doentes? Fala-me do verdadeiro médico. 

Trasímaco — Tem por objetivo tratar os doentes. 

Sócrates — E o piloto? O verdadeiro piloto é chefe dos marinheiros ou marinheiro? 

Trasímaco — Chefe dos marinheiros. 

341d: Sócrates — Não penso que se deva ter em conta o fato de navegar para que o denominemos marinheiro; de fato, não é por navegar que o denominamos piloto, mas devido à sua arte e ao comando que exerce sobre os marinheiros. 

Trasímaco — Concordo. 

Sócrates — Portanto, para o doente e o marinheiro, existe alguma vantagem? 

Trasímaco — Sem dúvida. 

Sócrates — E a arte não objetiva procurar e proporcionar a cada um o que é vantajoso para ele? 

Trasímaco — Sim. 

341e: Sócrates — Mas, para cada arte, existe outra vantagem além de ser tão perfeita quanto possível? 

Trasímaco — Qual é o sentido da tua pergunta? 

Sócrates — Este: Se me perguntasses se é suficiente ao corpo ser corpo ou se tem necessidade de outra coisa, responder-te-ia: Certamente que tem necessidade de outra coisa. Para isso é que a arte médica foi inventada: porque o corpo é defeituoso e não lhe é suficiente ser o que é. Por isso, para lhe proporcionar vantagens, a arte organizou-se’. Parece-te que tenho ou não razão? 

Trasímaco — Tens razão. 

(...) 342c: Sócrates — Portanto, a medicina não objetiva a sua própria vantagem, mas a do corpo. 

Trasímaco — Certamente. 

343-346: Na sequência os interlocutores discutem sobre o que é mais vantajoso: ser justo ou injusto e Trasímaco tenta seguir a linha de comparação baseada em profissões utilizada por Sócrates: Alega que os vaqueiros e pastores cuidam de seus animais apenas para matá-los em proveito próprio. Por isso os injustos se sobressairiam em todas situações sobre o justo e sobre o ingênuo: Conseguem pagar menos contribuições civis (ao estado), obter maiores lucros em transações e serem melhores reconhecidos por seus chegados e apoiadores por obterem tais vantagens sobre as demais pessoas da sociedade. Sócrates então diz que Trasímaco não se atentou à arte do pastoreio como se atentou à arte do médico: A arte do pastor é de cuidar bem de suas ovelhas (ou quaisquer outros animais), diferentemente de quem visa se banquetear dos animais ou vendê-los como um negociante. 

(...) Sócrates — Portanto, não é da arte que exerce que cada um retira esse proveito que consiste em receber um salário; mas, examinando com rigor, a medicina cria a saúde e a arte do mercenário proporciona o salário, a arquitetura edifica a moradia e a arte do mercenário, que a acompanha, proporciona o salário, e assim todas as outras artes: cada um trabalha na obra que lhe é própria e aproveita ao indivíduo a que se aplica. Porém, se não recebesse salário, tiraria o artesão proveito da sua arte? 

Trasímaco — Acredito que não. 

Sócrates — E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha gratuitamente? 

 Trasímaco — A meu ver, não. 

Sócrates — Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. 

Assim, sobre os ganhos pessoais com cada arte ou profissão, Sócrates indica que eles são um tipo de mercenarismo (a “tekhne” ou "arte" do mercenário), ou proveito tirado da prática, e não, a finalidade das profissões em si; Fazendo essa separação da arte do mercenário das demais artes/ profissões (como a da medicina etc), Sócrates continua:  — E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha gratuitamente? 

Trasímaco — A meu ver, não. 

Sócrates — Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. Eis por que, meu caro Trasímaco, que eu dizia há pouco que ninguém concorda de bom grado em governar e curar os males dos outros, mas exige salário, porque aquele que quer exercer convenientemente a sua arte não faz e não objetiva, na medida em que objetiva segundo essa arte, senão o bem do governado; 

Trasímaco concorda relutantemente com Sócrates e segue no diálogo com má vontade… 

347-353 Sócrates então segue indicando que o indivíduo bom não escolhe governar nem para conquistar riquezas nem para conseguir honrarias. Tal pessoa governaria apenas por necessidade e assim, em um “estado de homens justos” haveria competição para não governar enquanto no estado típico da época de Sócrates e de Platão, havia disputa para governar. O filósofo segue tratando da justiça com Trasímaco tentando definir o que é virtude e o que é vício: Trasímaco defende que a injustiça é uma virtude pois é proveitosa, enquanto a justiça não chega a ser vício, mas seria uma sublime ingenuidade. Sócrates pergunta-lhe se a injustiça não é um mau caráter, ao que Trasímaco responde que é prudência. 

No diálogo ambos concordam que o indivíduo justo tenta superar só o injusto não competindo com o justo, enquanto o injusto compete com ambos. Sócrates indica que o indivíduo que conhece uma arte ou profissão, detém episteme (traduzido como ciência ou como conhecimento) e que tal fato é perceptível. Após Trasímaco concordar, Sócrates indica que estes profissionais sendo sábios na arte que dominam, não tentam superar outros sábios, mas o ignorante tenta superar os sábios e outros ignorantes. Desta maneira o sábio se assemelha com o justo porque é justo de fato, enquanto o ignorante é e se parece com um injusto. Trasímaco se irrita com o resultado da investigação dialética e segue a contra gosto no diálogo com Sócrates: ele crê que o estado mais injusto tende a ser o mais bem-sucedido e o mais capaz de dominar todos os outros, porém, conforme Sócrates indicou, tal estado necessitaria de alguma justiça para se sobressair e governar, pois esta virtude é vinculada à sabedoria (ao domínio de uma episteme). O filósofo pergunta se um estado, exército, grupo de ladrões ou piratas, obteria êxito ao executar um plano ilegal, caso não observassem justiça alguma uns com os outros. Trasímaco responde que não obteriam êxito, pois seria necessária alguma justiça entre eles. Sócrates assim indica que a injustiça gera ódios, revoltas e conspirações, a justiça, pelo contrário, gera concórdia e amizade entre os indivíduos e grupos. 

No livro seguinte os demais interlocutores, juntamente com Sócrates, passam a investigar as origens da justiça e da injustiça.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ensaio sobre Conhecimento, Ética e Política

Nos meus últimos 10 anos de vida, dos 33 aos 43 anos de idade, quando comecei a refletir sobre a humanidade e sobre a minha vida, percebi al...