Considerações sobre Platão e suas propostas de estado e de episteme

 Trago aqui algumas considerações sobre as propostas da filosofia de Platão, mais centradas nos 4 primeiros livros da República, mas também contando com algumas ideias apresentadas em outras obras do autor, afinal há (bastante) coerência entre os diferentes textos do filósofo.

Platão destaca a importância da educação para as duas classes que constituíam seu modelo de governo/ estado - Eles teriam que, além de cuidar da saúde de seus corpos, estudar as "artes das musas" (a grosso modo filosofia, história e artes, como indico neste texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/09/observacoes-sobre-politeia-republica_01303578338.html)... Este estudo de filosofia, história e artes serviria para trabalhar as virtudes na psiquê das classes guardiãs (governantes e guerreiros), desenvolvendo os valores universais nestes (sabedoria, moderação, coragem e justiça), portanto desenvolvendo a ética. Desta forma eles deteriam a episteme (conhecimento ou ciência) para servir a todos no estado e regular a classe mercantil/ artesã, evitando que esta cresça em riquezas e tente tomar o poder. Além disto, o autor proíbe as classes responsáveis pela segurança do estado de participarem de toda e qualquer atividade mercantil. E como esta educação e leis valem para os filósofos também (a classe governante ideal), o dinheiro e as propriedades privadas, ficam proibidos de circularem entre estas classes que abrangem todo o governo/ todo o estado. Para compensar, estas classes teriam os recursos compartilhados entre si, suficientes para uma sobrevivência digna e saudável. Isto resulta em um estado apartado da economia, onde nenhum interesse comercial pode adentrar ou influenciar o governo e as forças armadas. Platão ainda cita no livro 3 da República que os praticantes de atividades comerciais (mercadores etc) tornam-se inimigos uns dos outros, odiando e sendo odiados, e conspirando uns contra os outros. Assim o autor indica que se as classes dos "guardiões" (de defesa, militar etc) e a classe de governantes (no caso os filósofos, detentores e construtores de episteme/ conhecimento) participassem da atividade mercantil, eles seriam distraídos e imersos nos problemas recorrentes deste tipo de atividade, desta forma acabariam disputando entre si. Isto porque a atividade mercantil é própria da classe trabalhadora que devido ao fato de executarem seus respectivos serviços ou produzirem itens para o consumo, não devem se ater à gestão geral da sociedade/ do estado que organiza as relações humanas e protege o coletivo.

Obviamente, um ponto criticado na proposta de governo de Platão, é o fato da classe governante ser composta de "reis filósofos". De fato o autor indica em alguns textos seus, como no "Político" e na "República", que o governo ideal seria composto por poucos (ou um) filósofo(s). Mas é importante fazer algumas ressalvas: É verdade que Platão teve uma má experiência com a "democracia" de seu tempo, pois seu mestre foi executado injustamente sob esse tipo de governo. Porém a democracia que temos hoje parece um meio termo da oligarquia e da aristocracia explicadas pelo autor em sua obra "Político", com vagos traços de democracia, pois a eleição (presidencial ou parlamentarista) escolhe poucos governantes e não impede a intromissão dos interesses privados/ comerciais na política. Além disto, o autor denota a importância dos governantes (e em algum nível, a classe defensora/ "guardiã" da nação) deterem uma episteme. Esta palavra nas obras de Platão, traduzida como ciência ou como conhecimento, se refere à "tekhnes" (arte ou profissão) de governar (as pólis, ou seja, as cidades/ estado, na época e local do autor). Platão se pautou na ética não só neste tema isoladamente, mas em toda sua obra, apesar de algumas restrições sócio culturais de seu tempo, algumas destas que perduram em nações até os dias de hoje (a pena de morte etc). Essas minúcias podem ser discutidas e melhoradas, mas o essencial é que a episteme ética de Platão é voltada à construção de conhecimento e à execução da arte/ profissão de governar e essa arte é realizada por alguém que tem a finalidade de servir a todos em seu respectivo estado/ nação.

Um resumo: Houve espaço para as propostas de Platão na história da civilização?

A partir daí, torna-se nítido que sua proposta de sociedade e economia, nunca (ou quase nunca) foram colocadas em prática na história da humanidade: Após a morte de Platão, seu pupilo mais famoso, Aristóteles, modificou algumas de suas ideias e os macedônios (sob Filipos II e Alexandre) conquistam todas as cidades/ estado gregas, unindo-as em um império absolutista. Seu governante, Alexandre, o Grande, pouco ou nada tinha de filósofo e após sua morte, o Império se dividiu em estados menores, governados por militares. Em seguida, Roma torna-se a maior potência do ocidente, e a maioria de seus governantes estavam envolvidos em conspirações por poder e riquezas. A Academia de Platão foi destruída pelo general romano, Susa, e os filósofos platônicos foram recorrentemente desprezados ou perseguidos. Um dos poucos governantes amigáveis à filosofia, foi Marco Aurélio que criou cátedras para diferentes filosofias em seu governo. Com o passar dos anos, Roma sucumbe devido a corrupção dos governantes e dos militares, além de sofrer investidas de diversos povos "bárbaros". O feudalismo passa a ser adotado na Europa e a filosofia é praticamente enterrada, tendo tímidas aparições entre os séculos 5 e 11 neste continente. Tais "aparições tímidas" da filosofia eram dominadas pela igreja católica já institucionalizada. Assim, somente após o contato com a civilização árabe entre os séculos 11 e 12, a filosofia grega volta aos poucos para as nações da Europa: As obras de Aristóteles tornam-se aceitas nos altos círculos da igreja católica que era o maior centro de poder do continente. 

No século 15, a filosofia ressurge na Europa, desta vez abalando o poder da igreja, por via da divulgação de obras de Platão, do estoicismo e do epicurismo. Mas as propostas feitas por Platão, de um estado governado por uma classe apartada do comércio e que construía conhecimento pautado pela ética, ainda eram muito distantes da mentalidade européia moderna: Prevaleceu o mercantilismo em favor da burguesia que vinha crescendo desde o fim da era medieval. Desde então se passaram cerca de 600 anos e "o mercado" ainda não deixou de interferir nos estados/ nos governos das nações. Na verdade este modelo ideológico por trás do mercantilismo, do liberalismo e do neoliberalismo foi imposto (muitas vezes com violência) sobre todos outros modos diferentes de pensar, de sonhar, de se comportar, enfim de existir. Sejam estes modos de existir um dos muitos das nações nativas da América, da África, da Ásia e da Oceania, ou mesmo um modo de existir de minorias da Europa. 

O modelo ideológico ao que me refiro é o que está ligado às intenções dos que querem acumular riquezas materiais incessantemente, ou seja, é o capitalismo. Ele vem ditando cada vez mais as regras da sociedade humana desde que intensificou o mercantilismo europeu dos séculos 15, 16 e 17 e o transformou no liberalismo. Sim, a revolução industrial ocorrida entre o fim do século 17 e o início do século 20 tem relação com essa mudança, mas é um reducionismo negar as intenções, as escolhas e atitudes humanas que ditavam o que era comercializável antes das inovações tecnológicas do iluminismo e seu período posterior. Estas intenções e escolhas de elites européias intensificaram a utilização, o tráfico e o comércio de seres humanos escravizados nativos do continente da África. Este momento pouco mencionado da história, foi onde ocorreu um dos maiores aumentos da lucratividade da produção de vários insumos, como açúcar, arroz, algodão, cacau e café. Estes lucros foram obtidos por burgueses e aristocratas da Europa a partir do trabalho de povos retirados de sua terra natal, obviamente mal tratados e não remunerados por seu trabalho exaustivo. Esta escravização dos povos africanos sob poder das elites europeias, em geral, eram bem mais opressoras e violentas do que as exercidas entre os diferentes povos da África e também mais opressoras e violentas do que os tratamentos dados aos indígenas americanos, pelos jesuítas. Dois exemplos deste período de aumento da exploração da força de trabalho e da lucratividade de tal ação violenta são a invasão da Xamaica (Jamaica) espanhola pela Inglaterra e a substituição da mão de obra indígena/ jesuítica ("ameríndios convertidos") do Brasil pela mão de obra de povos africanos escravizados. Este período que abrangeu aproximadamente de 1650 a 1770 marcado por esta intensificação do mercantilismo é a aplicação do liberalismo como sistema sócio econômico e foi feito a custa de vidas humanas tratadas como objetos. Este portanto é o 1º período de intensificação da ideologia capitalista em si e não a "era industrial" que viria se iniciar a seguir. O que é pouco ou nada mencionado em aulas de história, é que neste período muitos bancos cresceram e o "racismo científico" começou a ser gradativamente propagado entre as "elites intelectuais". 

Resumidamente na Europa, segue um período de revoltas, pois apesar do enriquecimento de pequenos grupos de burgueses e aristocratas, a maioria do povo europeu continuou na pobreza. Como exemplos temos revoltas nas indústrias têxteis da Inglaterra ("pré luditas"), a Revolução Francesa, a revolta dos escravizados do Haiti, até então colônia da França, o surgimento de pensadores socialistas ("utópicos") como Charles Fourier, Robert Owen e Johann G. Fichte etc. Entre o fim do século 18 e início do 19, talvez o que mais tenha se aproximado das ideias de Platão em priorizar a "episteme" e a educação desde a infância, foi o pensamento e obras de Pestalozzi, um dos precursores da universalização do ensino na Europa.

No século 19 então, a ideologia capitalista e seu sistema sócio econômico liberal já estavam considerados naturais entre as elites da Europa e um dos poucos opositores a esta política, foi o pensador socialista Karl Marx. Suas propostas certamente não são muito parecidas com as de Platão, mas serviram de crítica a uma classe da sociedade ocidental que enriquecia continuamente de modo similar ao que o filósofo da Grécia Clássica fez em obras como Górgias e Apologia de Sócrates

Ainda neste século, houve o movimento pela abolição da escravidão, porém os povos indígenas e negros já eram considerados como inferiores pelos intelectuais europeus: isto por si só é um afastamento do diálogo, e assim, um distanciamento da ética também. Tratados de paz com indígenas foram quebrados por autoridades descendentes de europeus da América do Sul à América do Norte e a África foi invadida pelos poderosos da Europa.

No século 20 algumas nações, principalmente no oriente, tentam praticar o modelo socioeconômico proposto no século anterior: o socialismo (suposta etapa para o utópico comunismo). Porém, depois deste período, houve uma nova intensificação do liberalismo e este é transformado no neoliberalismo - resumidamente a desintegração de infraestrutura das nações e das leis de regulação das empresas e de proteção ao trabalhador. Isto somado ao fato das falhas internas da nações socialistas, acaba na derrota do socialismo ante o neoliberalismo. Embora o socialismo, em teoria, visasse o bem comum e possivelmente o achatamento da economia (portanto do mercado em algum nível, porém não estudei a fundo o pensamento dos líderes socialistas), nenhum destes sistemas "socioeconômicos" tem a ética como tema central porque eles se baseiam quase que exclusivamente na realidade exterior, medível e observável sensorialmente - assim, nestes sistemas a ética pode ter seu valor, mas fica em segundo plano. Sim, os elementos mensuráveis são importantes, mas são resultados de intenções e ações, não sendo a intenção em si - eles não têm finalidade de tornar o ser humano mais ético, chame de mais "bonzinho" ou de "menos egoísta". Tais sistemas então ignoram ou menosprezam os conceitos platônicos em que a classe governante do estado se pauta na construção de conhecimento por via da presunção da ignorância, na finalidade (ontologia) de melhoria de todas as coisas e na ideia de kalos (o bem e belo) como o que há de mais desejável para o ser humano.  

A importância da filosofia na política e na construção de conhecimento

Seria possível atualizar as propostas de Platão, analisando o que há de útil nos sistemas que foram propostos como alternativa aos sistemas mercantil, liberal e neoliberal? 

Estes sistemas que dominaram as nações e a humanidade na era moderna têm uma ideologia tão tosca e afastada da ética como a ideologia do período anterior: o feudalismo que era resumidamente centrado em obediência irracional. Porém a ideologia desumana por trás dos sistemas modernos/ pós modernos, diferente do feudalismo e sua ênfase na obediência, é o capitalismo, que ao centrar a vida humana no mercado e no acúmulo de bens, objetifica e precifica vidas. Então não seria necessário uma "ideologia" (ou melhor, a filosofia proposta por Platão e sua construção de conhecimento) pautada na ética, no diálogo, ao invés de tal ideologia objetificadora e precificadora?

Um sistema alicerçado na filosofia que visa esta ética e este diálogo, não teria a mera finalidade de melhoria das condições de vida, mas da também da melhoria da psiquê humana. Esta melhoria se dá pela construção de conhecimento, ou seja pela educação e pela conscientização e por este caminho também trabalharia as relações humanas sociais e culturais.

Só para ter uma idéia da disparidade entre o mercantilismo e a filosofia platônica, analisemos o capitalismo nesta sua fase mercantil que é o menos desenvolvido, menos poderoso e menos agressivo de seus estágios: Os europeus saem de seu continente em meados do século 15 buscando variadas riquezas materiais, desde as tais especiarias "da Índia", passando a se interessar por madeira, minerais de valor, até mão de obra gratuita, ou seja, escravizada. Com esta ideologia mercantil, o contato com os indígenas americanos (e com muitas das nações africanas) foi predominantemente conflituoso - portugueses e espanhóis (depois outros europeus, como franceses, ingleses etc) obviamente queriam tirar vantagem sobre o indígena e isso já impossibilita relações de confiança mútua e de respeito. Não há nada de filosófico nas intenções dominantes dos europeus - Platão critica a priorização da busca pelo enriquecimento abertamente como nas obras mencionadas anteriormente. O fundador da filosofia ocidental, por mais que seja considerado racionalista, também dialogava com culturas espiritualistas (diferente da maioria das lideranças europeias) - isto é explícito em sua obra Fedro, onde cita o valor das profetizas e tenta explicar alguns estados alterados da psiquê (manike) como os transes místicos e a inspiração por "entidades sobrenaturais" (daemons, ninfas etc). O tema também é abordado em Ion (da Ilíada) onde o autor faz uma crítica construtiva da inspiração, defendendo a importância da reflexão e da busca por conhecimento. É verdade que Platão citava povos estrangeiros pouco ou nada urbanizados como "bárbaros", mas se não o fizesse assim, ele não conseguiria dialogar com as elites intelectuais e sociais da "Grécia" de seu tempo, 4 séculos antes de Cristo. Os pontos da filosofia de Platão a serem mais atualizados e humanizados são quase óbvios, pois são pautas de nosso tempo: a luta pelo direito das mulheres, a luta contra a pena de morte, contra o trabalho escravo/ análogo à escravidão etc. De resto é trazer a ética para o centro da construção de conhecimento e da política. Trazer o diálogo (e não os discursos de ódio, as fake news, o obscurantismo, o etnicismo e o cientificismo deste século 21) trabalhando estas construções.

 

Observações sobre "Politéia" (A República); Livro 4

Livro IV (419a - 445e) 

Aqui continuo de maneira resumida o conteúdo da Politéia (A República), de Platão: 

Após ouvir os direitos e deveres da classe guardiã, Adimanto pergunta a Sócrates se os guardiões da polis (cidade/ estado) não serão considerados infelizes, pois não poderão ter grandes casas nem móveis luxuosos e nenhuma regalia típica de quem juntou riquezas materiais. Sócrates explica que a finalidade de sua proposta política (a classe dos guardiões e dos governantes das cidades) é priorizar o bem e a felicidade de todos do estado, ou seja, do coletivo, o mais próximo possível da totalidade de habitantes. E assim, atribuindo a cada um o que lhe pertence, forma-se um todo belo - caso contrário, ao ceder regalias sem relações com o objetivo da classe guardiã a esta, ele estaria fazendo com que tal classe se parecesse com qualquer coisa, menos com guardiões da cidade/ estado. 

Os interlocutores então saem em busca das virtudes necessárias para a cidade/ estado ideal: sabedoria, temperança (sofrosine), coragem (andreias) e justiça. A sabedoria seria a episteme (“ciência”) que a classe ideal para se governar o estado detém: os filósofos; 

A coragem seria a capacidade desenvolvida pela educação desde a infância, de resistir aos desejos, prazeres, desgostos e temores. Por isso os guardiões são educados por via da ginástica e das artes “musicais” (das musas etc). 

A temperança/ moderação sendo o equilíbrio na obtenção de prazeres e na realização de desejos, não se limitaria a uma classe em específico. Ao ser governada pelos sábios e corajosos, a moderação estaria presente nos governantes e governados do estado, ou seja nas multidões. Em seguida, Sócrates conclui que ao definir as funções e virtudes de cada classe do estado, ele encontrou a justiça: 

Sócrates — Mas não podemos nos esquecer de que a cidade era justa pelo fato de cada uma das suas três classes se ocupar da sua própria tarefa. 

Os autores concluem que o modelo ideal de cidade/ estado, é uma sociedade dividida em 3 classes: Os governantes (depois descritos como filósofos), os guardas/ soldados e a classe artesã/ profissional/ mercantil. Conforme o conceito de justiça desenvolvido por eles, cada classe desempenharia suas devidas funções, sem almejar coisas da outra classe. 

Portanto, ao proibir o ouro e a prata para as duas classes estruturais (“superiores”) da sociedade (pólis), o comércio ficaria proibido para governantes e soldados, impedindo também a compra de cargos, seja na segurança da cidade ou no governo dela. Assim, os guerreiros e os filósofos não poderiam ter nem carregar moedas, mas obviamente não só isso: Eles estariam proibidos de carregar qualquer objeto feito dos metais mencionados, pois Sócrates sabia que ouro e prata eram considerados preciosos, tendo um valor material acima de qualquer “outro valor” na Grécia e em diversas civilizações próximas (Roma, Cartago, Egito, Pérsia etc). 

Apesar de impossibilitados de enriquecer, os soldados e filósofos teriam certos privilégios de uma vida comunitária / compartilhada. Isto tudo é lógico, pois o valor material só deve ser aplicado no comércio, e nas “tekhnes” (artesanatos, profissões) realizadas pela classe de artesãos/ comerciantes: A segurança e a filosofia, regidas pela episteme e “artes das musas” não devem ser negociáveis com ouro, prata nem com qualquer outro bem material. 

Interessante notar que a episteme regente destas classes, como será mostrada nos livros seguintes da obra Politéia (A República), é predominantemente humana. Platão prioriza a ética, a finalidade de melhoria de todas as coisas (a tarefa de um professor de ontos citada no diálogo Fédon) e as artes das musas, onde o autor inclui a filosofia para além das áreas difundidas popularmente como musicais na cultura grega clássica: música, poesia, teatro e história. Assim, a episteme (“ciência”) priorizada por Platão é humana, e, portanto, um direito de todos os seres humanos. Ainda que Platão não enxergasse a necessidade ou a possibilidade da classe artesã/ profissional estudar tal episteme/ ciências humanas, este conhecimento foi proposto como central na política de Platão e de serventia para toda a nação, o coletivo, para todo o povo.

Sócrates continua o diálogo dizendo que se a cidade era justa porque existiam 3 naturezas as quais cada uma delas realizava sua respectiva tarefa, respectivamente guiadas pela sabedoria, coragem (andreas) e temperança (sophrosyne), então essas 3 naturezas estão presentes na psiquê humana. A partir daí o autor formula sua famosa teoria tripartite da psiquê (“alma”/mente). 

Esta teoria é semelhante à explicação que o autor usa em Fedro, quando cita a parábola da biga, onde o auriga (condutor da biga) deveria deixar o cavalo bom e puro conduzir ao invés do cavalo bruto e selvagem. A parábola da biga compara o condutor com a pessoa em si, ou a psiquê do ser humano, sua essência; O cavalo bom ou puro por sua vez representa as virtudes como a temperança e o desejo pelo bem e o cavalo selvagem representa os desejos rudimentares e os vícios. Aqui, no diálogo da “República”, Sócrates explica que o elemento inferior da psiquê é o responsável pelos desejos e a busca de satisfação e prazer. O elemento superior então é o racional que toma decisões, podendo fazer com que a pessoa ceda ao desejo, ou impeça este. Estes elementos seriam de certo modo ligados respectivamente à classe dos artesãos (que lidam com seus desejos por bens materiais etc) e à classe dos filósofos, os governantes ideais (os que desenvolveram as virtudes e, por isso, servem à sociedade). Porém, após abordar o desejo por satisfação e prazer e a capacidade de autocontrolar-se e raciocinar, Sócrates percebe mais um elemento na psiquê [439d-e]: 

Sócrates — “ou dí alógos, ín d᾽ egó, axiósomen aftá dittá te kaí étera allílon eínai, tó mén ó logízetai logistikón prosagorévontes tís psychís, tó dé ó erá te kaí peiní kaí dipsí kaí perí tás állas epithymías eptóitai alógistón te kaí epithymitikón, pliróseón tinon kaí idonón etaíron.” Pietro Nassetti, entre outros tradutores, fazem a tradução da seguinte maneira: “Com razão, pois, não estaremos equivocados ao considerar que se trata de dois elementos diferentes entre si e ao denominar aquele pelo qual a alma raciocina seu elemento racional e aquele por causa do qual ela ama, tem fome, tem sede e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o seu elemento irracional, que desperta a concupiscência, amigo de certas satisfações e de certos prazeres.” 

De acordo com esta tradução, o elemento mais rústico da psiquê “ama, tem fome, tem sede” (etc)... Só que este termo “ama” refere-se à palavra grega epithymías, não ao típico “eros” mencionado por Platão em outros textos, nem à ágape, que após a propagação do cristianismo, passou a significar amor incondicional. Em seguida, os tradutores parecem utilizar a palavra “desejos” para definir o termo grego “epithymitikón” (..."e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o seu elemento irracional”…); Eles deveriam usar respectivamente dois termos de uma única raiz/ origem, como por exemplo: ama e amores, ou, deseja e desejos. Baseando-se na ideia que as palavras gregas “epithymías” e “epithymitikón” tenham a mesma raiz, uma outra possível tradução seria: Nós não estaremos equivocados se diferenciamos estas duas coisas uma da outra, a saber, aquela que é considerada racionalmente como premonições (admoestações) da alma, e aquela que chega a ter fome, sede e outros amores, temendo irrefletidamente e amorosamente, as necessidades de coisas e de parceiros de prazer.” O termo “amorosamente” empregado aqui não se refere ao meigo, mas sim ao gosto por algo, talvez à amizade também. 

O diálogo segue com Glauco — Não. Estaremos orgulhosos ao pensar assim. 

Sócrates — “tafta mén toínyn, ín d᾽ egó, dýo imín orístho eídi en psychí enónta: tó dé dí toú thymoú kaí ó thymoúmetha póteron tríton, í toúton potéro án eíi omofyés?” De acordo com os tradutores, este trecho ficou assim: "Admitamos então que distinguimos estes dois elementos na alma; mas a cólera (ira, traduzido de thymoú), com o concurso da qual nos indignamos (thymoúmetha), constitui um terceiro elemento ou é da mesma natureza que um dos outros dois, e de qual deles?"

 Glauco — “ísos, éfi, tó etéro, tó epithymitikó”. A tradução típica (novamente): “Creio que da mesma natureza que o segundo, o que desperta a concupiscência.” 

Assim as palavras “epithymías”, “epithymitikón”, thymoú e thymoúmetha, foram traduzidas com termos bem distintos entre si mencionadas anteriormente: "ama, desejos, cólera (ira), indignamos e concupiscência"! A confusão não é totalmente sem motivo, pois inicialmente Sócrates está falando  somente de 2 elementos da psiquê, para depois explicar um 3º elemento. Este 3º elemento útil à classe guerreira (guardiã, protetora, militar etc), se refere a um intermediário entre a razão e os desejos mais relacionados às necessidades biológicas e prazeres sensoriais. Ele certamente foi traduzido como “ira e cólera”, por estar relacionado a tal classe de guerreiros, porém Sócrates diz que esse “desejo, ira ou amor” (que se originam no termo grego thymo), às vezes pode e deve ser utilizado contra o desejo, ao lado da razão e das virtudes (sabedoria, moderação, coragem etc), o que o caracteriza mais como a emoção - Um sentimento não interiorizado nem duradouro, mas expressivo e/ ou imediato, ou talvez, a expressão de sentimentos.  

Certamente Platão se mostrou tolerante com a emoção ou sentimento de ira, raiva (e similares) para defender a classe dos guerreiros, uma classe dificilmente dispensável na época e sociedade em que o autor viveu, nas cidades gregas e seus arredores 4 séculos antes de Cristo. Assim, a teoria tripartite da "alma" (psiquê), proposta por Platão indica que o ser humano teria 3 “níveis” de psiquismo, ou mentalidade: o mais rústico, voltado aos desejos por prazer, ou meramente às necessidades básicas/ biológicas; o intermediário, ou emocional, que apesar de permitir a ira, também permite a honra, a amizade e a busca por justiça. E por fim, o superior, que pensa, reflete, se autocontrola, busca o saber, a sabedoria e as ideias mais sublimes, como o bem, que o autor explica nos livros seguintes da obra “A República”. 

 Sócrates então faz a relação entre os 3 elementos encontrados na psiquê humana, com as 3 classes sociais de seu estado ideal, dizendo [440e]: Ou então, assim como três classes compunham a cidade — mercadores/ artesãos, guerreiros e magistrados/ legisladores —, assim também, na alma, o "impulso irascível" (thymoides) constitui um terceiro elemento, aliado natural da razão, a menos que uma má educação o tenha corrompido? 

Glauco — Existe necessariamente um terceiro elemento. 

[441c-e] (...) Sócrates — Conseqüentemente, já não é necessário que o indivíduo seja sábio do mesmo modo e pelo mesmo princípio que a cidade? 

Glauco — Sim, sem dúvida. 

Sócrates — E que a cidade seja corajosa pelo mesmo princípio e do mesmo modo que o indivíduo? Enfim, que tudo o que diz respeito à virtude se encontre igualmente numa e noutro? 

Glauco — É necessário. 

Sócrates — Então, amigo Glauco, afirmaremos que a justiça tem no indivíduo o mesmo caráter que na cidade. 

Glauco — Concordo também com isso. 

Sócrates — Mas não podemos nos esquecer de que a cidade era justa pelo fato de cada uma das suas três dessas se ocupar da sua própria tarefa. 

Glauco — Não creio que o tenhamos esquecido. 

Sócrates — Lembremo-nos então de que se cada um de nós desempenhar a sua tarefa própria, será também justo e desempenhará a tarefa que lhe é própria. 

Glauco — Sim, precisamos nos lembrar disso. 

Sócrates — Portanto, não compete à razão mandar, por ser sábia e possuir a responsabilidade de velar pela alma, e à cólera obedecer à razão e defendê-la? 

Glauco — Sim, com certeza. 

[442] Sócrates — Mas não é, como afirmamos, um misto de música e ginástica que conciliará estas partes, fortificando e alimentando uma delas com belos discursos e com os conhecimentos científicos, acalmando, abrandando a outra pela harmonia e pelo ritmo? 

Glauco — Sem dúvida. 

Sócrates — E estas duas partes assim criadas, realmente educadas e instruídas para desempenhar o seu papel, dominarão e conterão o elemento concupiscente, que ocupa o maior espaço na psiquê e que, por natureza, é mais insaciável de riquezas; irão vigiá-lo para evitar que, saciando-se dos prazeres físicos, se desenvolva, fortaleça e, em vez de se ocupar da sua tarefa, busque subjugá-los e dominá-los — o que não convém a um elemento da sua espécie — e subverta toda a vida do conjunto. 

O autor é claro aqui, em sua comparação da psiquê humana com a sociedade: Se a parcela mais sedenta de riquezas materiais cresce e domina/ escraviza a restante, ela está fora de sua função e causa grandes males por isso. Ou seja, no nível social/ nacional, se a classe mercantil/ comerciante cresce ao ponto de dominar a classe responsável por defender a nação e a classe responsável por legislar e governar o estado, ela causa estrago e ameaça a vida de todos. Platão propõe assim, que o mercado seja devidamente regulado pelos governantes, legisladores e defensores do estado. 

Glauco — Com toda a certeza. 

Sócrates — E nos defenderão melhor dos inimigos externos, com toda a alma e todo o corpo, a primeira decidindo, o segundo lutando sob as ordens da primeira e executando corajosamente os projetos elaborados por esta. 

(...) Sócrates — Pela mesma razão, engendrar a justiça não significa estabelecer, conforme a natureza, as relações de comando e submissão entre os diferentes elementos da alma? E engendrar a injustiça não significa permitir-lhes comandar ou ser comandados um pelo outro ao arrepio da natureza?
Assim Sócrates indica a seus interlocutores, que a justiça, seja a nível individual ou coletivo, é um tipo de regulação de um todo e que esta regulação é saudável/ faz bem, notoriamente diferente do desejo de adquirir riquezas materiais e prazeres sensoriais, que quando crescem podem causar os estragos mencionados anteriormente no texto.


Observações sobre Politéia (A República); Livro 3

Livro III (386a - 417b) 

Neste livro Platão mostra Sócrates fazendo uma crítica às obras mitológicas/ de poesia e explicando que deve-se descartar os contos de violência, incontinência, oportunismo e indiferença dos deuses, selecionando os que dão importância ao bem (à sophrosyne: a moderação, temperança, autoconhecimento). Se um personagem dos mitos helênicos (gregos) cometeu um ato hediondo como assassinato, sequestro ou traição, ele não tem relação com os deuses. Se o personagem tem relação com os deuses, ele não tem mentalidade ou comportamento violento nem mesquinho. Segue um trecho da crítica feita pelo filósofo (até 392b): 

“Sócrates — Por conseguinte, não devemos acreditar nem permitir que se diga que Teseu, filho de Poseidon, e Pirithos, filho de Zeus, praticaram tão hediondos raptos (o sequestro de Helena, por exemplo), nem que outro qualquer filho de deus e herói tenha cometido os atos horríveis e ímpios de que são acusados. Ao contrário, obriguemos os poetas dizer que não tiveram tais atitudes ou que não foram os filhos dos deuses, mas que não afirmem ambas as coisas ao mesmo tempo, tampouco que procurem convencer os nossos jovens de que os deuses realizam coisas más, e de que os heróis não são em nada melhores do que os homens. Conforme já dissemos, estas não passam de idéias ímpias e falsas, pois demonstramos que o mal não pode ser oriundo dos deuses.” 

Platão propõe regras de maneira crítica, principalmente aos imitadores / atores. Embora o autor apresente seus argumentos buscando uma ética, o texto obviamente tem limitações de sua respectiva época e nacionalidade/ cultura. 

Para a educação "musical" da classe guerreira (guardiã/ militar), Platão sugere artes com tema de coragem e guerra, mas também de ações voluntárias pacíficas, como o rogo, a oração aos deuses e os ensinamentos e admoestações aos homens. Vale lembrar que os deuses aqui não são meramente os mesmos da religião popular grega da época: Eles não são vingativos, violentos, incontinentes nem traiçoeiros: Platão os descreve como seres bons, justos, moderados, sábios e corajosos. O autor explica que a música com seus respectivos elementos (ritmo, harmonia etc) segue as palavras e estas seguem o caráter de quem as pronuncia. Isto vale como parâmetro para as demais artes também (pintura, escultura etc) e por isso Platão condenou as artes que dão ênfase às lamentações tristonhas, às tragédias, às traições, às punições cruéis, ao deboche e aos prazeres dos banquetes e das bebedeiras. 

401b-e (...) “Sócrates — Não devemos procurar artistas de mérito, capazes de seguirem a natureza do belo e do gracioso, a fim de que os nossos jovens, a semelhança dos habitantes de uma terra sadia, tirem proveito de tudo que os rodeia, de qualquer lado que chegue aos seus olhos ou ouvidos uma emanação das obras belas, tal como uma brisa transporta a saúde de regiões salubres, e predispondo-os insensivelmente, desde a infância, a imitar e a amar o que é razoável / correto e bom/ belo? 

Glauco — Seria uma excelente educação. 

Esta última frase de Sócrates, em grego, acaba do seguinte modo: “filían kaí simphonían tó kaló”, o que significa algo como “a filiar-se ao (tornar-se amigo do) que é sinfônico (harmonioso - que age bem junto aos outros) e kaló” (bom e belo - não só fisicamente, mas principalmente psiquicamente, eticamente). Assim, Platão (e Sócrates) indicavam que a psiquê e o caráter das pessoas são moldados desde a infância: Se educarmos as crianças com ética, ensinando-lhes serem justas, moderadas, corajosas e boas, elas crescerão com estes valores. Tais valores não são meramente individuais, pois também fazem bem ao convívio social - era a formação idealizada para os guardas das cidades/ estados, que se assemelhava à educação para os filósofos. 

Interessante notar como a arte fazia parte do cotidiano das cidades estado gregas: não só tradições que ditavam costumes, mas obras sobre os deuses, ou seja, de teor religioso eram propagadas por poetas, rapsodos etc. Esta classe “artística/ religiosa” deve ter perdido sua influência parcialmente com a ascensão dos filósofos naturalistas (pré socráticos) nos séculos 6 a.C. e 5 a.C. Pouco tempo depois destes filósofos surgem os sofistas que não priorizavam a construção de conhecimento, pois focavam nos interesses particulares das relações políticas/ econômicas das cidades. Estes últimos são os mais combatidos por Sócrates e Platão durante os séculos 4 a.C. e 3 a.C

Sócrates — E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco, que a educação musical (arte das musas, inclui música, poesia etc) é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na psiquê* e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem-educado.” 

*Embora "psiquê" seja comumente traduzido como alma, em vários trechos das obras de Platão, é possível notar que o termo abrange a mente humana, não ficando restrito só a um "significado" mais espiritual.

Sócrates então explica que nem eles (os filósofos) nem os guardiões (a guarda da cidade estado, o exército) serão músicos se não reconhecerem e dominarem as virtudes e a grandeza da alma, como a generosidade, a coragem e a moderação. Perguntado a Glauco em seguida, se uma pessoa que reunisse tais disposições na psiquê e, harmoniosamente, no seu exterior (nas ações etc), não seria um belo espetáculo. Glauco concorda com isto e que também seria o mais amável e honrável. Sócrates continua: 

402 (...) “Eis porque o músico se encantaria o mais possível com homens desta espécie; Mas se fosse privado dessa harmonia não se encantaria. 

Glauco — Não se fosse a psiquê que deixasse algo a desejar, mas caso seja o corpo que não tenha tal harmonia, o músico será capaz de manter-lhe afeição. 

Sócrates — Compreendo que tens ou já sentiste um amor desses e concordo contigo, mas diz-me uma coisa: o prazer excessivo harmoniza-se com a temperança? 

Glauco — Como poderia isso acontecer, visto que o excessivo prazer não perturba a psique menos que a excessiva dor? 

(...) Sócrates: — Sabes de um prazer maior e mais penetrante do que o do amor sensual*? 

Glauco — Não, não conheço nenhum mais violento (manikotéran). 

403 Sócrates — Porém, em sua natureza, o amor autêntico ama com harmonia e medida a ordem e a beleza? (“o dé orthós éros péfyke kosmíou te kaí kaloú sofrónos te kaí mousikós erán?”) 

Glauco — Por certo. 

Sócrates — Logo, nada de violento nem de parecido com a devassidão (libertinagem) deve aproximar-se do amor autêntico (ou desejo correto, de “orthos eros”). 

Glauco — Nada. 

Sócrates — Portanto, a volúpia não se deve aproximar dele; não deve entrar no comércio do amante e da criança que se amam com amor verdadeiro. 

Glauco — Não, por Zeus, Sócrates, não deve se aproximar!” 

*Traduzido da palavra grega aphrodysia, referente não ao prazer sensorial de modo genérico, mas especificamente ao prazer sexual e ao prazer da sedução que provoca desejo. O autor também critica a atitude “erótica com furor”, a paixão (eros) violenta ou “maníaca” - Esta última palavra é uma tentativa de traduzir sem distanciamento do termo original em grego "manike", que não tem uma tradução exata. 

Depois de traçar a importância dos cuidados com o corpo, como a ginástica (exercícios físicos) e a dieta (uma alimentação balanceada e sem embriaguez), o filósofo fala da medicina na cultura das cidades estado gregas. Ela teria surgido com o personagem semi-lendário, Asclépio, um médico e político da época da guerra de Tróia, que acabou sendo cultuado como divindade com o passar dos anos. No diálogo, Sócrates diz que durante a época de Asclépio não se faziam acompanhamentos terapêuticos dia após dia de pessoas que permanecem doentes por longos períodos: Geralmente tratava-se dos ferimentos e doenças pontuais daqueles que mantinham algum cuidado do próprio corpo através da dieta e do exercício físico, e que mantinham um cuidado da própria psique, através da moderação, do autocontrole e das demais virtudes. O autor então conclui que, por mais ricos que sejam, os indivíduos que corromperam sua psiquê por terem se entregado aos vícios e aos prazeres excessivos, são os mais indignos de serem tratados. 

Glauco então pergunta: — Tens toda a razão, Sócrates. Mas não devemos ter bons médicos na cidade? Ora, os bons médicos são, principalmente, os que trataram o maior número de indivíduos saudáveis e não saudáveis; Da mesma maneira, os bons juízes são os que têm convivido com homens de todos os caracteres, certo? 

Sócrates concorda, porém faz a distinção entre os médicos e os juízes: Os primeiros tratam do corpo, mas devem ter a psiquê em boas condições. Isto porque o médico não trata dos corpos de seus pacientes meramente através de seu próprio corpo - ele usa seu conhecimento para exercer sua profissão. Já os segundos, os juízes, utilizam suas respectivas psiquês para tratar da psiquê de outros indivíduos. Por esta razão o juiz não só deve ter a educação baseada na moderação e nas demais virtudes mencionadas anteriormente, como deve se manter sem se misturar com aqueles que cometem exageros, crimes e/ ou que vivem uma vida de vícios. Sócrates diz que o juiz deve passar anos apenas observando tais tipos de psiquês/ comportamentos, e assim, se tornará um bom profissional quando tiver alguma idade mais avançada, por via da experiência adquirida. O diálogo segue a cerca dos exageros: 

(410) “Sócrates — Já notaste, certamente, qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário? 

Glauco — De que disposição falas? 

Sócrates — Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura dos outros. 

Glauco—Já notei que aqueles que se entregam unicamente à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam os omitiria a decência. 

Sócrates — Entretanto, é o elemento generoso da sua natureza que provoca a rudeza; bem dirigido, tornar-se-ia coragem, mas, demasiado tenso, degenera em dureza e mau humor, como é natural. 

Glauco — Assim me parece. 

Sócrates— E a brandura não faz parte do caráter do filósofo? Demasiado frouxa, amolece-o mais do que o permitido, mas, dirigida, abranda-o e ordena-o.” 

Sócrates conclui que as pessoas que vivem só pela arte, exagerando e deixando de cuidar do próprio corpo, tornam-se desequilibradas emocionalmente. Muito sensíveis, mas facilmente irritáveis e covardes. 

Já os que se dedicam apenas às atividades físicas, como por exemplo alguns atletas, tornam-se rudes e seus desejos por aprender quaisquer ciências ou artes tornam-se fracos. Assim eles ficam incapazes de sentir e de entender assuntos diferentes das atividades físicas, frequentemente desejando resolver problemas com grosseria e violência (esta educação deficiente parece a típica da "cultura" militar dominante nos séculos 20 e início do 21: onde ensina-se a obediência cega, sem ensinar sobre a sociedade, sua história e suas leis voltadas ao bem de todos habitantes da nação). 

Para Sócrates, os guardas de uma cidade devem ter um equilíbrio em sua educação, recebendo os dois elementos: A música/ poesia (as artes “das musas”*) e a ginástica. 

*As artes das musas, ou seja, as artes musicais, não se limitava só à música, nem para Platão, nem para diversos outros autores gregos. Como exemplos de "artes musicais" temos a poesia, a história, a comédia e a tragédia (teatro) e a astronomia/ astrologia (estas são algumas das artes musicais populares difundidas por via das obras de Hesíodo), a meditação, memorização (exemplos de Pausânias) e a prática (exemplo de Varro). Além destas, Platão entre outros autores, inclui a filosofia nas artes das musas. A filosofia de Platão é centrada na psiquê, no bem (kalos, como é mais detalhado nos capítulos seguintes da República) e na finalidade de melhoria (enfim na ética e em sua inferência e prática). Esta educação auxiliaria aos guardas compreender sua função de proteger o estado e o povo da cidade. Vale lembrar que a civilização helênica (grega) não constituía um reino nem um império, era composta de cidades-estado que ocasionalmente se juntavam em ligas. Daí o nome da obra: Politéia. 

A seguir, o filósofo sugere que os mais velhos são melhores para governar devido a experiência e que os indivíduos escolhidos para formarem a classe guardiã da cidade devem ser aqueles que têm inteligência, autoridade e dedicação à cidade/ estado (à nação e toda sua respectiva sociedade). Estes que irão compor a classe dos guardas/ soldados da cidade, devem ser treinados desde jovens em situações que lhe testem suas respectivas psiques, para que, com força de vontade, não sejam guiados pela opinião falsa e sim pela verdade: De acordo com o autor, a opinião falsa sai voluntariamente do intelecto quando a pessoa vê que está enganada e a abandona, mas a opinião verdadeira só sai involuntariamente, através de 2 processos: Quando a pessoa é dissuadida e perde a razão sem perceber ou quando esquece com o tempo. 

Sócrates — Afirmo que se é vítima quando o desgosto ou a dor forçam a mudança de opinião. 

Glauco — Também compreendo isso e é exato. 

Sócrates — Portanto, acredito que se fica iludido quando se muda de opinião sob o encanto do prazer ou a opressão do medo. 

Glauco — De fato, tudo o que nos engana parece seduzir-nos.” 

Neste trecho, o autor indica que podemos expressar uma opinião verdadeira, mas quando se é iludido (e quando se hesita) podemos passar a ter uma opinião falsa sobre as coisas. O diálogo, além de tratar da educação e da ética, mostra a importância do intelecto humano e da opinião, portanto aborda a psiquê que consequentemente afeta as ações, ou seja, as intenções nas interações humanas, e também as decisões e a determinação das pessoas, no caso da classe guardiã da cidade/ estado. 

Tratando da psiquê humana, tanto como mente, como alma, o tema abrange desde questões psicológicas e sociais, passando pela ética até possíveis questões espirituais: Os dois elementos citados por Platão, que geram as falsas opiniões, têm semelhanças com os citados na obra de Kardec, durante o séc 19: Os espíritos desencarnados egoístas usam da sedução (fascinação) ou do medo (obsessão) para influenciar os humanos - O funcionamento da psique pouco ou nada difere ao interagir com pessoas por via de diálogos, consigo mesma em pensamento ou com supostos espíritos.  

Sócrates e os demais, após concluírem sobre a importância da ética em todas artes "musicais", passando pelas poesias, mitos e pela educação dos habitantes da cidade/ estado, seguem argumentando a respeito de uma cidade/ estado ideal. Sobre as classes de governantes e de defesa (filósofos e militares), Platão propõe o seguinte: 

…"primeiramente, nenhum deles possuirá nada em exclusivo, exceto os objetos de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação nem loja onde toda a gente possa entrar. Quanto à alimentação necessária a atletas guerreiros sóbrios e corajosos, recebê-la-ão dos outros cidadãos, como salário da guarda que asseguram, em quantidade suficiente para um ano, de modo a não sobrar e a não faltar; tomarão as refeições juntos e viverão em comum como soldados em campanha. Quanto ao ouro e à prata, dir-lhes-emos que têm sempre na alma os metais que receberam dos deuses, que não têm necessidade dos homens e que é ímpio macular a posse do ouro divino acrescentando-lhe o ouro mortal, porque muitos crimes foram cometidos pelo metal em forma de moeda do vulgo, ao passo que o deles é puro; que só a eles, entre os habitantes da cidade, não é permitido manipular e tocar ouro, nem ir a uma casa onde ele exista, nem usá-lo, nem beber em taças de prata ou ouro; que assim se salvarão e salvarão a cidade. Ao contrário, logo que sejam proprietários de terra, casas e dinheiro, de guardas que eram transformar-se-ão em mercadores e lavradores e, de aliados, em déspotas inimigos dos outros cidadãos; passarão a vida a odiar e a ser odiados, a conspirar e a ser alvo de conspirações, receando muito mais os adversários de dentro do que os de fora e correndo a passos largos para a ruína, eles e o resto da cidade. Por todas estas razões, diremos que é preciso garantir aos guardas habitação e bens, como indiquei."


 

Ensaio sobre Conhecimento, Ética e Política

Nos meus últimos 10 anos de vida, dos 33 aos 43 anos de idade, quando comecei a refletir sobre a humanidade e sobre a minha vida, percebi al...