Observações sobre "Politéia" (A República); Livro 4

Livro IV (419a - 445e) 

Aqui continuo de maneira resumida o conteúdo da Politéia (A República), de Platão: 

Após ouvir os direitos e deveres da classe guardiã, Adimanto pergunta a Sócrates se os guardiões da polis (cidade/ estado) não serão considerados infelizes, pois não poderão ter grandes casas nem móveis luxuosos e nenhuma regalia típica de quem juntou riquezas materiais. Sócrates explica que a finalidade de sua proposta política (a classe dos guardiões e dos governantes das cidades) é priorizar o bem e a felicidade de todos do estado, ou seja, do coletivo, o mais próximo possível da totalidade de habitantes. E assim, atribuindo a cada um o que lhe pertence, forma-se um todo belo - caso contrário, ao ceder regalias sem relações com o objetivo da classe guardiã a esta, ele estaria fazendo com que tal classe se parecesse com qualquer coisa, menos com guardiões da cidade/ estado. 

Os interlocutores então saem em busca das virtudes necessárias para a cidade/ estado ideal: sabedoria, temperança (sofrosine), coragem (andreias) e justiça. A sabedoria seria a episteme (“ciência”) que a classe ideal para se governar o estado detém: os filósofos; 

A coragem seria a capacidade desenvolvida pela educação desde a infância, de resistir aos desejos, prazeres, desgostos e temores. Por isso os guardiões são educados por via da ginástica e das artes “musicais” (das musas etc). 

A temperança/ moderação sendo o equilíbrio na obtenção de prazeres e na realização de desejos, não se limitaria a uma classe em específico. Ao ser governada pelos sábios e corajosos, a moderação estaria presente nos governantes e governados do estado, ou seja nas multidões. Em seguida, Sócrates conclui que ao definir as funções e virtudes de cada classe do estado, ele encontrou a justiça: 

Sócrates — Mas não podemos nos esquecer de que a cidade era justa pelo fato de cada uma das suas três classes se ocupar da sua própria tarefa. 

Os autores concluem que o modelo ideal de cidade/ estado, é uma sociedade dividida em 3 classes: Os governantes (depois descritos como filósofos), os guardas/ soldados e a classe artesã/ profissional/ mercantil. Conforme o conceito de justiça desenvolvido por eles, cada classe desempenharia suas devidas funções, sem almejar coisas da outra classe. 

Portanto, ao proibir o ouro e a prata para as duas classes estruturais (“superiores”) da sociedade (pólis), o comércio ficaria proibido para governantes e soldados, impedindo também a compra de cargos, seja na segurança da cidade ou no governo dela. Assim, os guerreiros e os filósofos não poderiam ter nem carregar moedas, mas obviamente não só isso: Eles estariam proibidos de carregar qualquer objeto feito dos metais mencionados, pois Sócrates sabia que ouro e prata eram considerados preciosos, tendo um valor material acima de qualquer “outro valor” na Grécia e em diversas civilizações próximas (Roma, Cartago, Egito, Pérsia etc). 

Apesar de impossibilitados de enriquecer, os soldados e filósofos teriam certos privilégios de uma vida comunitária / compartilhada. Isto tudo é lógico, pois o valor material só deve ser aplicado no comércio, e nas “tekhnes” (artesanatos, profissões) realizadas pela classe de artesãos/ comerciantes: A segurança e a filosofia, regidas pela episteme e “artes das musas” não devem ser negociáveis com ouro, prata nem com qualquer outro bem material. 

Interessante notar que a episteme regente destas classes, como será mostrada nos livros seguintes da obra Politéia (A República), é predominantemente humana. Platão prioriza a ética, a finalidade de melhoria de todas as coisas (a tarefa de um professor de ontos citada no diálogo Fédon) e as artes das musas, onde o autor inclui a filosofia para além das áreas difundidas popularmente como musicais na cultura grega clássica: música, poesia, teatro e história. Assim, a episteme (“ciência”) priorizada por Platão é humana, e, portanto, um direito de todos os seres humanos. Ainda que Platão não enxergasse a necessidade ou a possibilidade da classe artesã/ profissional estudar tal episteme/ ciências humanas, este conhecimento foi proposto como central na política de Platão e de serventia para toda a nação, o coletivo, para todo o povo.

Sócrates continua o diálogo dizendo que se a cidade era justa porque existiam 3 naturezas as quais cada uma delas realizava sua respectiva tarefa, respectivamente guiadas pela sabedoria, coragem (andreas) e temperança (sophrosyne), então essas 3 naturezas estão presentes na psiquê humana. A partir daí o autor formula sua famosa teoria tripartite da psiquê (“alma”/mente). 

Esta teoria é semelhante à explicação que o autor usa em Fedro, quando cita a parábola da biga, onde o auriga (condutor da biga) deveria deixar o cavalo bom e puro conduzir ao invés do cavalo bruto e selvagem. A parábola da biga compara o condutor com a pessoa em si, ou a psiquê do ser humano, sua essência; O cavalo bom ou puro por sua vez representa as virtudes como a temperança e o desejo pelo bem e o cavalo selvagem representa os desejos rudimentares e os vícios. Aqui, no diálogo da “República”, Sócrates explica que o elemento inferior da psiquê é o responsável pelos desejos e a busca de satisfação e prazer. O elemento superior então é o racional que toma decisões, podendo fazer com que a pessoa ceda ao desejo, ou impeça este. Estes elementos seriam de certo modo ligados respectivamente à classe dos artesãos (que lidam com seus desejos por bens materiais etc) e à classe dos filósofos, os governantes ideais (os que desenvolveram as virtudes e, por isso, servem à sociedade). Porém, após abordar o desejo por satisfação e prazer e a capacidade de autocontrolar-se e raciocinar, Sócrates percebe mais um elemento na psiquê [439d-e]: 

Sócrates — “ou dí alógos, ín d᾽ egó, axiósomen aftá dittá te kaí étera allílon eínai, tó mén ó logízetai logistikón prosagorévontes tís psychís, tó dé ó erá te kaí peiní kaí dipsí kaí perí tás állas epithymías eptóitai alógistón te kaí epithymitikón, pliróseón tinon kaí idonón etaíron.” Pietro Nassetti, entre outros tradutores, fazem a tradução da seguinte maneira: “Com razão, pois, não estaremos equivocados ao considerar que se trata de dois elementos diferentes entre si e ao denominar aquele pelo qual a alma raciocina seu elemento racional e aquele por causa do qual ela ama, tem fome, tem sede e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o seu elemento irracional, que desperta a concupiscência, amigo de certas satisfações e de certos prazeres.” 

De acordo com esta tradução, o elemento mais rústico da psiquê “ama, tem fome, tem sede” (etc)... Só que este termo “ama” refere-se à palavra grega epithymías, não ao típico “eros” mencionado por Platão em outros textos, nem à ágape, que após a propagação do cristianismo, passou a significar amor incondicional. Em seguida, os tradutores parecem utilizar a palavra “desejos” para definir o termo grego “epithymitikón” (..."e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o seu elemento irracional”…); Eles deveriam usar respectivamente dois termos de uma única raiz/ origem, como por exemplo: ama e amores, ou, deseja e desejos. Baseando-se na ideia que as palavras gregas “epithymías” e “epithymitikón” tenham a mesma raiz, uma outra possível tradução seria: Nós não estaremos equivocados se diferenciamos estas duas coisas uma da outra, a saber, aquela que é considerada racionalmente como premonições (admoestações) da alma, e aquela que chega a ter fome, sede e outros amores, temendo irrefletidamente e amorosamente, as necessidades de coisas e de parceiros de prazer.” O termo “amorosamente” empregado aqui não se refere ao meigo, mas sim ao gosto por algo, talvez à amizade também. 

O diálogo segue com Glauco — Não. Estaremos orgulhosos ao pensar assim. 

Sócrates — “tafta mén toínyn, ín d᾽ egó, dýo imín orístho eídi en psychí enónta: tó dé dí toú thymoú kaí ó thymoúmetha póteron tríton, í toúton potéro án eíi omofyés?” De acordo com os tradutores, este trecho ficou assim: "Admitamos então que distinguimos estes dois elementos na alma; mas a cólera (ira, traduzido de thymoú), com o concurso da qual nos indignamos (thymoúmetha), constitui um terceiro elemento ou é da mesma natureza que um dos outros dois, e de qual deles?"

 Glauco — “ísos, éfi, tó etéro, tó epithymitikó”. A tradução típica (novamente): “Creio que da mesma natureza que o segundo, o que desperta a concupiscência.” 

Assim as palavras “epithymías”, “epithymitikón”, thymoú e thymoúmetha, foram traduzidas com termos bem distintos entre si mencionadas anteriormente: "ama, desejos, cólera (ira), indignamos e concupiscência"! A confusão não é totalmente sem motivo, pois inicialmente Sócrates está falando  somente de 2 elementos da psiquê, para depois explicar um 3º elemento. Este 3º elemento útil à classe guerreira (guardiã, protetora, militar etc), se refere a um intermediário entre a razão e os desejos mais relacionados às necessidades biológicas e prazeres sensoriais. Ele certamente foi traduzido como “ira e cólera”, por estar relacionado a tal classe de guerreiros, porém Sócrates diz que esse “desejo, ira ou amor” (que se originam no termo grego thymo), às vezes pode e deve ser utilizado contra o desejo, ao lado da razão e das virtudes (sabedoria, moderação, coragem etc), o que o caracteriza mais como a emoção - Um sentimento não interiorizado nem duradouro, mas expressivo e/ ou imediato, ou talvez, a expressão de sentimentos.  

Certamente Platão se mostrou tolerante com a emoção ou sentimento de ira, raiva (e similares) para defender a classe dos guerreiros, uma classe dificilmente dispensável na época e sociedade em que o autor viveu, nas cidades gregas e seus arredores 4 séculos antes de Cristo. Assim, a teoria tripartite da "alma" (psiquê), proposta por Platão indica que o ser humano teria 3 “níveis” de psiquismo, ou mentalidade: o mais rústico, voltado aos desejos por prazer, ou meramente às necessidades básicas/ biológicas; o intermediário, ou emocional, que apesar de permitir a ira, também permite a honra, a amizade e a busca por justiça. E por fim, o superior, que pensa, reflete, se autocontrola, busca o saber, a sabedoria e as ideias mais sublimes, como o bem, que o autor explica nos livros seguintes da obra “A República”. 

 Sócrates então faz a relação entre os 3 elementos encontrados na psiquê humana, com as 3 classes sociais de seu estado ideal, dizendo [440e]: Ou então, assim como três classes compunham a cidade — mercadores/ artesãos, guerreiros e magistrados/ legisladores —, assim também, na alma, o "impulso irascível" (thymoides) constitui um terceiro elemento, aliado natural da razão, a menos que uma má educação o tenha corrompido? 

Glauco — Existe necessariamente um terceiro elemento. 

[441c-e] (...) Sócrates — Conseqüentemente, já não é necessário que o indivíduo seja sábio do mesmo modo e pelo mesmo princípio que a cidade? 

Glauco — Sim, sem dúvida. 

Sócrates — E que a cidade seja corajosa pelo mesmo princípio e do mesmo modo que o indivíduo? Enfim, que tudo o que diz respeito à virtude se encontre igualmente numa e noutro? 

Glauco — É necessário. 

Sócrates — Então, amigo Glauco, afirmaremos que a justiça tem no indivíduo o mesmo caráter que na cidade. 

Glauco — Concordo também com isso. 

Sócrates — Mas não podemos nos esquecer de que a cidade era justa pelo fato de cada uma das suas três dessas se ocupar da sua própria tarefa. 

Glauco — Não creio que o tenhamos esquecido. 

Sócrates — Lembremo-nos então de que se cada um de nós desempenhar a sua tarefa própria, será também justo e desempenhará a tarefa que lhe é própria. 

Glauco — Sim, precisamos nos lembrar disso. 

Sócrates — Portanto, não compete à razão mandar, por ser sábia e possuir a responsabilidade de velar pela alma, e à cólera obedecer à razão e defendê-la? 

Glauco — Sim, com certeza. 

[442] Sócrates — Mas não é, como afirmamos, um misto de música e ginástica que conciliará estas partes, fortificando e alimentando uma delas com belos discursos e com os conhecimentos científicos, acalmando, abrandando a outra pela harmonia e pelo ritmo? 

Glauco — Sem dúvida. 

Sócrates — E estas duas partes assim criadas, realmente educadas e instruídas para desempenhar o seu papel, dominarão e conterão o elemento concupiscente, que ocupa o maior espaço na psiquê e que, por natureza, é mais insaciável de riquezas; irão vigiá-lo para evitar que, saciando-se dos prazeres físicos, se desenvolva, fortaleça e, em vez de se ocupar da sua tarefa, busque subjugá-los e dominá-los — o que não convém a um elemento da sua espécie — e subverta toda a vida do conjunto. 

O autor é claro aqui, em sua comparação da psiquê humana com a sociedade: Se a parcela mais sedenta de riquezas materiais cresce e domina/ escraviza a restante, ela está fora de sua função e causa grandes males por isso. Ou seja, no nível social/ nacional, se a classe mercantil/ comerciante cresce ao ponto de dominar a classe responsável por defender a nação e a classe responsável por legislar e governar o estado, ela causa estrago e ameaça a vida de todos. Platão propõe assim, que o mercado seja devidamente regulado pelos governantes, legisladores e defensores do estado. 

Glauco — Com toda a certeza. 

Sócrates — E nos defenderão melhor dos inimigos externos, com toda a alma e todo o corpo, a primeira decidindo, o segundo lutando sob as ordens da primeira e executando corajosamente os projetos elaborados por esta. 

(...) Sócrates — Pela mesma razão, engendrar a justiça não significa estabelecer, conforme a natureza, as relações de comando e submissão entre os diferentes elementos da alma? E engendrar a injustiça não significa permitir-lhes comandar ou ser comandados um pelo outro ao arrepio da natureza?
Assim Sócrates indica a seus interlocutores, que a justiça, seja a nível individual ou coletivo, é um tipo de regulação de um todo e que esta regulação é saudável/ faz bem, notoriamente diferente do desejo de adquirir riquezas materiais e prazeres sensoriais, que quando crescem podem causar os estragos mencionados anteriormente no texto.


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