Observações sobre Politéia (A República); Livro 3

Livro III (386a - 417b) 

Neste livro Platão mostra Sócrates fazendo uma crítica às obras mitológicas/ de poesia e explicando que deve-se descartar os contos de violência, incontinência, oportunismo e indiferença dos deuses, selecionando os que dão importância ao bem (à sophrosyne: a moderação, temperança, autoconhecimento). Se um personagem dos mitos helênicos (gregos) cometeu um ato hediondo como assassinato, sequestro ou traição, ele não tem relação com os deuses. Se o personagem tem relação com os deuses, ele não tem mentalidade ou comportamento violento nem mesquinho. Segue um trecho da crítica feita pelo filósofo (até 392b): 

“Sócrates — Por conseguinte, não devemos acreditar nem permitir que se diga que Teseu, filho de Poseidon, e Pirithos, filho de Zeus, praticaram tão hediondos raptos (o sequestro de Helena, por exemplo), nem que outro qualquer filho de deus e herói tenha cometido os atos horríveis e ímpios de que são acusados. Ao contrário, obriguemos os poetas dizer que não tiveram tais atitudes ou que não foram os filhos dos deuses, mas que não afirmem ambas as coisas ao mesmo tempo, tampouco que procurem convencer os nossos jovens de que os deuses realizam coisas más, e de que os heróis não são em nada melhores do que os homens. Conforme já dissemos, estas não passam de idéias ímpias e falsas, pois demonstramos que o mal não pode ser oriundo dos deuses.” 

Platão propõe regras de maneira crítica, principalmente aos imitadores / atores. Embora o autor apresente seus argumentos buscando uma ética, o texto obviamente tem limitações de sua respectiva época e nacionalidade/ cultura. 

Para a educação "musical" da classe guerreira (guardiã/ militar), Platão sugere artes com tema de coragem e guerra, mas também de ações voluntárias pacíficas, como o rogo, a oração aos deuses e os ensinamentos e admoestações aos homens. Vale lembrar que os deuses aqui não são meramente os mesmos da religião popular grega da época: Eles não são vingativos, violentos, incontinentes nem traiçoeiros: Platão os descreve como seres bons, justos, moderados, sábios e corajosos. O autor explica que a música com seus respectivos elementos (ritmo, harmonia etc) segue as palavras e estas seguem o caráter de quem as pronuncia. Isto vale como parâmetro para as demais artes também (pintura, escultura etc) e por isso Platão condenou as artes que dão ênfase às lamentações tristonhas, às tragédias, às traições, às punições cruéis, ao deboche e aos prazeres dos banquetes e das bebedeiras. 

401b-e (...) “Sócrates — Não devemos procurar artistas de mérito, capazes de seguirem a natureza do belo e do gracioso, a fim de que os nossos jovens, a semelhança dos habitantes de uma terra sadia, tirem proveito de tudo que os rodeia, de qualquer lado que chegue aos seus olhos ou ouvidos uma emanação das obras belas, tal como uma brisa transporta a saúde de regiões salubres, e predispondo-os insensivelmente, desde a infância, a imitar e a amar o que é razoável / correto e bom/ belo? 

Glauco — Seria uma excelente educação. 

Esta última frase de Sócrates, em grego, acaba do seguinte modo: “filían kaí simphonían tó kaló”, o que significa algo como “a filiar-se ao (tornar-se amigo do) que é sinfônico (harmonioso - que age bem junto aos outros) e kaló” (bom e belo - não só fisicamente, mas principalmente psiquicamente, eticamente). Assim, Platão (e Sócrates) indicavam que a psiquê e o caráter das pessoas são moldados desde a infância: Se educarmos as crianças com ética, ensinando-lhes serem justas, moderadas, corajosas e boas, elas crescerão com estes valores. Tais valores não são meramente individuais, pois também fazem bem ao convívio social - era a formação idealizada para os guardas das cidades/ estados, que se assemelhava à educação para os filósofos. 

Interessante notar como a arte fazia parte do cotidiano das cidades estado gregas: não só tradições que ditavam costumes, mas obras sobre os deuses, ou seja, de teor religioso eram propagadas por poetas, rapsodos etc. Esta classe “artística/ religiosa” deve ter perdido sua influência parcialmente com a ascensão dos filósofos naturalistas (pré socráticos) nos séculos 6 a.C. e 5 a.C. Pouco tempo depois destes filósofos surgem os sofistas que não priorizavam a construção de conhecimento, pois focavam nos interesses particulares das relações políticas/ econômicas das cidades. Estes últimos são os mais combatidos por Sócrates e Platão durante os séculos 4 a.C. e 3 a.C

Sócrates — E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco, que a educação musical (arte das musas, inclui música, poesia etc) é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na psiquê* e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem-educado.” 

*Embora "psiquê" seja comumente traduzido como alma, em vários trechos das obras de Platão, é possível notar que o termo abrange a mente humana, não ficando restrito só a um "significado" mais espiritual.

Sócrates então explica que nem eles (os filósofos) nem os guardiões (a guarda da cidade estado, o exército) serão músicos se não reconhecerem e dominarem as virtudes e a grandeza da alma, como a generosidade, a coragem e a moderação. Perguntado a Glauco em seguida, se uma pessoa que reunisse tais disposições na psiquê e, harmoniosamente, no seu exterior (nas ações etc), não seria um belo espetáculo. Glauco concorda com isto e que também seria o mais amável e honrável. Sócrates continua: 

402 (...) “Eis porque o músico se encantaria o mais possível com homens desta espécie; Mas se fosse privado dessa harmonia não se encantaria. 

Glauco — Não se fosse a psiquê que deixasse algo a desejar, mas caso seja o corpo que não tenha tal harmonia, o músico será capaz de manter-lhe afeição. 

Sócrates — Compreendo que tens ou já sentiste um amor desses e concordo contigo, mas diz-me uma coisa: o prazer excessivo harmoniza-se com a temperança? 

Glauco — Como poderia isso acontecer, visto que o excessivo prazer não perturba a psique menos que a excessiva dor? 

(...) Sócrates: — Sabes de um prazer maior e mais penetrante do que o do amor sensual*? 

Glauco — Não, não conheço nenhum mais violento (manikotéran). 

403 Sócrates — Porém, em sua natureza, o amor autêntico ama com harmonia e medida a ordem e a beleza? (“o dé orthós éros péfyke kosmíou te kaí kaloú sofrónos te kaí mousikós erán?”) 

Glauco — Por certo. 

Sócrates — Logo, nada de violento nem de parecido com a devassidão (libertinagem) deve aproximar-se do amor autêntico (ou desejo correto, de “orthos eros”). 

Glauco — Nada. 

Sócrates — Portanto, a volúpia não se deve aproximar dele; não deve entrar no comércio do amante e da criança que se amam com amor verdadeiro. 

Glauco — Não, por Zeus, Sócrates, não deve se aproximar!” 

*Traduzido da palavra grega aphrodysia, referente não ao prazer sensorial de modo genérico, mas especificamente ao prazer sexual e ao prazer da sedução que provoca desejo. O autor também critica a atitude “erótica com furor”, a paixão (eros) violenta ou “maníaca” - Esta última palavra é uma tentativa de traduzir sem distanciamento do termo original em grego "manike", que não tem uma tradução exata. 

Depois de traçar a importância dos cuidados com o corpo, como a ginástica (exercícios físicos) e a dieta (uma alimentação balanceada e sem embriaguez), o filósofo fala da medicina na cultura das cidades estado gregas. Ela teria surgido com o personagem semi-lendário, Asclépio, um médico e político da época da guerra de Tróia, que acabou sendo cultuado como divindade com o passar dos anos. No diálogo, Sócrates diz que durante a época de Asclépio não se faziam acompanhamentos terapêuticos dia após dia de pessoas que permanecem doentes por longos períodos: Geralmente tratava-se dos ferimentos e doenças pontuais daqueles que mantinham algum cuidado do próprio corpo através da dieta e do exercício físico, e que mantinham um cuidado da própria psique, através da moderação, do autocontrole e das demais virtudes. O autor então conclui que, por mais ricos que sejam, os indivíduos que corromperam sua psiquê por terem se entregado aos vícios e aos prazeres excessivos, são os mais indignos de serem tratados. 

Glauco então pergunta: — Tens toda a razão, Sócrates. Mas não devemos ter bons médicos na cidade? Ora, os bons médicos são, principalmente, os que trataram o maior número de indivíduos saudáveis e não saudáveis; Da mesma maneira, os bons juízes são os que têm convivido com homens de todos os caracteres, certo? 

Sócrates concorda, porém faz a distinção entre os médicos e os juízes: Os primeiros tratam do corpo, mas devem ter a psiquê em boas condições. Isto porque o médico não trata dos corpos de seus pacientes meramente através de seu próprio corpo - ele usa seu conhecimento para exercer sua profissão. Já os segundos, os juízes, utilizam suas respectivas psiquês para tratar da psiquê de outros indivíduos. Por esta razão o juiz não só deve ter a educação baseada na moderação e nas demais virtudes mencionadas anteriormente, como deve se manter sem se misturar com aqueles que cometem exageros, crimes e/ ou que vivem uma vida de vícios. Sócrates diz que o juiz deve passar anos apenas observando tais tipos de psiquês/ comportamentos, e assim, se tornará um bom profissional quando tiver alguma idade mais avançada, por via da experiência adquirida. O diálogo segue a cerca dos exageros: 

(410) “Sócrates — Já notaste, certamente, qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário? 

Glauco — De que disposição falas? 

Sócrates — Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura dos outros. 

Glauco—Já notei que aqueles que se entregam unicamente à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam os omitiria a decência. 

Sócrates — Entretanto, é o elemento generoso da sua natureza que provoca a rudeza; bem dirigido, tornar-se-ia coragem, mas, demasiado tenso, degenera em dureza e mau humor, como é natural. 

Glauco — Assim me parece. 

Sócrates— E a brandura não faz parte do caráter do filósofo? Demasiado frouxa, amolece-o mais do que o permitido, mas, dirigida, abranda-o e ordena-o.” 

Sócrates conclui que as pessoas que vivem só pela arte, exagerando e deixando de cuidar do próprio corpo, tornam-se desequilibradas emocionalmente. Muito sensíveis, mas facilmente irritáveis e covardes. 

Já os que se dedicam apenas às atividades físicas, como por exemplo alguns atletas, tornam-se rudes e seus desejos por aprender quaisquer ciências ou artes tornam-se fracos. Assim eles ficam incapazes de sentir e de entender assuntos diferentes das atividades físicas, frequentemente desejando resolver problemas com grosseria e violência (esta educação deficiente parece a típica da "cultura" militar dominante nos séculos 20 e início do 21: onde ensina-se a obediência cega, sem ensinar sobre a sociedade, sua história e suas leis voltadas ao bem de todos habitantes da nação). 

Para Sócrates, os guardas de uma cidade devem ter um equilíbrio em sua educação, recebendo os dois elementos: A música/ poesia (as artes “das musas”*) e a ginástica. 

*As artes das musas, ou seja, as artes musicais, não se limitava só à música, nem para Platão, nem para diversos outros autores gregos. Como exemplos de "artes musicais" temos a poesia, a história, a comédia e a tragédia (teatro) e a astronomia/ astrologia (estas são algumas das artes musicais populares difundidas por via das obras de Hesíodo), a meditação, memorização (exemplos de Pausânias) e a prática (exemplo de Varro). Além destas, Platão entre outros autores, inclui a filosofia nas artes das musas. A filosofia de Platão é centrada na psiquê, no bem (kalos, como é mais detalhado nos capítulos seguintes da República) e na finalidade de melhoria (enfim na ética e em sua inferência e prática). Esta educação auxiliaria aos guardas compreender sua função de proteger o estado e o povo da cidade. Vale lembrar que a civilização helênica (grega) não constituía um reino nem um império, era composta de cidades-estado que ocasionalmente se juntavam em ligas. Daí o nome da obra: Politéia. 

A seguir, o filósofo sugere que os mais velhos são melhores para governar devido a experiência e que os indivíduos escolhidos para formarem a classe guardiã da cidade devem ser aqueles que têm inteligência, autoridade e dedicação à cidade/ estado (à nação e toda sua respectiva sociedade). Estes que irão compor a classe dos guardas/ soldados da cidade, devem ser treinados desde jovens em situações que lhe testem suas respectivas psiques, para que, com força de vontade, não sejam guiados pela opinião falsa e sim pela verdade: De acordo com o autor, a opinião falsa sai voluntariamente do intelecto quando a pessoa vê que está enganada e a abandona, mas a opinião verdadeira só sai involuntariamente, através de 2 processos: Quando a pessoa é dissuadida e perde a razão sem perceber ou quando esquece com o tempo. 

Sócrates — Afirmo que se é vítima quando o desgosto ou a dor forçam a mudança de opinião. 

Glauco — Também compreendo isso e é exato. 

Sócrates — Portanto, acredito que se fica iludido quando se muda de opinião sob o encanto do prazer ou a opressão do medo. 

Glauco — De fato, tudo o que nos engana parece seduzir-nos.” 

Neste trecho, o autor indica que podemos expressar uma opinião verdadeira, mas quando se é iludido (e quando se hesita) podemos passar a ter uma opinião falsa sobre as coisas. O diálogo, além de tratar da educação e da ética, mostra a importância do intelecto humano e da opinião, portanto aborda a psiquê que consequentemente afeta as ações, ou seja, as intenções nas interações humanas, e também as decisões e a determinação das pessoas, no caso da classe guardiã da cidade/ estado. 

Tratando da psiquê humana, tanto como mente, como alma, o tema abrange desde questões psicológicas e sociais, passando pela ética até possíveis questões espirituais: Os dois elementos citados por Platão, que geram as falsas opiniões, têm semelhanças com os citados na obra de Kardec, durante o séc 19: Os espíritos desencarnados egoístas usam da sedução (fascinação) ou do medo (obsessão) para influenciar os humanos - O funcionamento da psique pouco ou nada difere ao interagir com pessoas por via de diálogos, consigo mesma em pensamento ou com supostos espíritos.  

Sócrates e os demais, após concluírem sobre a importância da ética em todas artes "musicais", passando pelas poesias, mitos e pela educação dos habitantes da cidade/ estado, seguem argumentando a respeito de uma cidade/ estado ideal. Sobre as classes de governantes e de defesa (filósofos e militares), Platão propõe o seguinte: 

…"primeiramente, nenhum deles possuirá nada em exclusivo, exceto os objetos de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá habitação nem loja onde toda a gente possa entrar. Quanto à alimentação necessária a atletas guerreiros sóbrios e corajosos, recebê-la-ão dos outros cidadãos, como salário da guarda que asseguram, em quantidade suficiente para um ano, de modo a não sobrar e a não faltar; tomarão as refeições juntos e viverão em comum como soldados em campanha. Quanto ao ouro e à prata, dir-lhes-emos que têm sempre na alma os metais que receberam dos deuses, que não têm necessidade dos homens e que é ímpio macular a posse do ouro divino acrescentando-lhe o ouro mortal, porque muitos crimes foram cometidos pelo metal em forma de moeda do vulgo, ao passo que o deles é puro; que só a eles, entre os habitantes da cidade, não é permitido manipular e tocar ouro, nem ir a uma casa onde ele exista, nem usá-lo, nem beber em taças de prata ou ouro; que assim se salvarão e salvarão a cidade. Ao contrário, logo que sejam proprietários de terra, casas e dinheiro, de guardas que eram transformar-se-ão em mercadores e lavradores e, de aliados, em déspotas inimigos dos outros cidadãos; passarão a vida a odiar e a ser odiados, a conspirar e a ser alvo de conspirações, receando muito mais os adversários de dentro do que os de fora e correndo a passos largos para a ruína, eles e o resto da cidade. Por todas estas razões, diremos que é preciso garantir aos guardas habitação e bens, como indiquei."


 

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