Livro VII Esta parte da obra começa com a famosa alegoria da caverna de Platão:
[514 a-c] Sócrates — Agora mostro a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à educação (instrução) e à ignorância.
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
[515 a-e] Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco — Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco — É bem possível.
Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco — Sim, por Zeus!
Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados.
Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer as olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas (coisas vãs), mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que as objetos que lhe mostram agora?Glauco — Muito mais verdadeiras.
Sócrates — E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco — Com toda a certeza.
Sócrates — E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
[516 a-e] Glauco — Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates — Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homem e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu da que, durante o dia, o Sol e a sua luz.
Sócrates — Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é.
Glauco — Necessariamente.
Sócrates — Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o (arremedo) que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco — E evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates — Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco — Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates — E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em última lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco — Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates — Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco — Por certo que sim.
[517 a-e] Sócrates— E se tiver de entrar de nova em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco — Sem nenhuma dúvida.
Sócrates — Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Deus (Theos) sabe se ela é verdadeira. É assim que os fenômenos se apresentam: no (limite do) cognoscível (mundo inteligível), a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de justo e belo existe em todas as coisas; No mundo visível, ela gerou a luz e e é soberana desta; No mundo inteligível, ela é soberana da verdade e* da inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
*Outra possível tradução seria: (ela é verdadeira e provida)... Este último parágrafo parece mais complexo e as traduções variam. Certamente Platão afirma que o bem, sendo a ideia (eidos?) mais perfeita, é a soberana do mundo cognoscível/ “inteligível”: é verdadeiramente um presente, e/ ou é o que torna a pessoa verdadeiramente provida. Aquele que a vê, vê o futuro com ela em todas situações, sendo que esta visão do futuro, talvez signifique que a pessoa se baseie na ideia do bem para tudo, planeje tudo com base no bem.
É notável como Platão usa o mito da caverna para explicar que o cognoscível/ o mundo das ideias (eidos) é mais importante e mais verdadeiro do que o que percebemos com os sentidos em vida. Sua realidade é imediata, ou seja, não necessita de um meio, nem dos sentidos - qualquer pessoa, sem necessariamente usar seus sentidos, pode pensar, sentir (ter sentimentos), sonhar etc. Os sentidos captados pelos órgãos (visão, audição, olfato, paladar e tato) são “mediatos” pois requerem um meio - captam o que está no exterior de cada ser/ de cada indivíduo. Os sentidos não tomam decisões nem têm intenções como faz a atividade psíquica, seja da mente ou alma. Na realidade imediata (interna da pessoa), ou seja, cognoscível/ psíquica, a ideia mais sublime é o bem - ele resolve todos os problemas e deve ser a referência de todas ações/ comportamentos humanos.
Sócrates — Pois bem! Compartilha-a também neste ponto e não te admires se aqueles que se elevaram a tais alturas desistem de se ocupar das coisas humanas e as suas almas aspiram sem cessar a instalar-se nas alturas. É assim, portanto, de acordo com a imagem que pretendemos ter.
Glauco — Com efeito, é muito natural.
Sócrates — Mas como? Achas espantoso que um homem que passa das contemplações divinas às miseráveis coisas humanas revele repugnância e pareça inteiramente ridículo, quando, ainda com a vista perturbada e não estando suficientemente acostumado às trevas circundantes, é obrigado a entrar em disputa, perante os tribunais ou em qualquer outra parte, sobre sombras de justiça ou sobre estátuas que projetam essas sombras, e a combater as interpretações que disso dão os que nunca viram a justiça em si mesma?
Glauco — Não há nisso nada de espantoso.
[518 a-e] Sócrates — No entanto, um homem sensato lembrar-se-á de que os olhos podem ser perturbados de duas maneiras e por duas causas opostas: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão à luz; e, tento refletido que o mesmo se passa com a alma, quando encontrar uma confusa e embaraçada para discernir certos objetos, não se rirá totalmente, mas antes examinará se, vinda de uma vida mais luminosa, ela se encontra, por falta de hábito, ofuscada pelas trevas ou se, passando da ignorância à luz, está deslumbrada pelo seu brilho demasiado vivo; no primeiro caso, considerá-la-á feliz, em virtude do que ela sente e da vida que leva; no segundo, lamentá-la-á e, se quisesse rir à sua custa, as suas zombarias seriam menos ridículas do que se aplicadas à alma que regressa de cima da luz (ánothen ek fotós).
Aquele que alcançou a ideia do bem, ou seja, o entendimento deste, não quer se ocupar de disputas supérfluas nem de julgamentos baseados em opiniões humanas de quem não entende que o bem é um valor universal. O valor universal não é um valor individual (como uma preferência ou opinião), nem é algo imposto para oprimir outrem - é uma virtude que o indivíduo desenvolve (ou desperta) e a direciona para todos os demais seres. Por exemplo, o verdadeiro ser solidário não se porta desta maneira (solidariamente) só em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas, ele é solidário em relação a todos. Isto é individual (interno, imediato) e coletivo (bom para toda a humanidade, toda a vida etc).
Ao propor que pode haver confusão nos 2 casos: daquele que “viu a luz (da ideia, ou eidos, do bem) e retornou para as trevas” do mundo sensorial que ignora a relação do saber com o bem e daquele que “subiu do mundo das trevas (sensorial, ignorante…) ao mundo da luz, das ideias e do bem”, Sócrates insinua que há algo além de meras "ideias" no reino cognoscível/ inteligível. Certamente este é um dos motivos que o autor utiliza a palavra eidos, que significa algo entre forma e ideia (a ideia mais real do que os corpos perceptíveis sensorialmente).
De acordo com estes discursos de Sócrates, há uma aparente afirmação de que a mente que alcançou tal bem, tem um entendimento também do que é verdadeiramente superior, algo como uma realidade sublime, ou mesmo um reino celeste, espiritual, angelical/ divino, afinal quem iria rir de alguém que saiu das “trevas do mundo sensorial” e chegou à “luz do reino cognoscível/ ideal”?
Sócrates (...) Eu digo se tudo isto é verdadeiro, temos que pensar o seguinte: a educação não é o que alguns proclamam que é, porquanto pretendem introduzir ciência (episteme) na alma onde ela não está, como quem tentasse dar vista a olhos cegos.
Glauco — Mais uma verdade.
Certamente a episteme, seja educação ou ciência, não pode ser desvinculada da ideia do bem. Isto está de acordo com o combate ao relativismo e ao sofismo, que tanto Platão, quanto Sócrates desempenharam. Separar o valor universal do bem da episteme (da construção de conhecimento), é uma distorção, portanto é uma falsidade, uma mentira. Trata-se de excluir a ética da ciência e de permitir que se insira o mau no lugar do bem…
Sócrates — Ora, o presente discurso demonstra que cada um possui a faculdade de aprender e o órgão destinado a esse uso e que, semelhante a olhos que só poderiam voltar das trevas para a luz com todo o corpo, esse órgão deve também afastar-se com toda a alma do que se altera, até que se torne capaz de suportar a vista do Ser e do que há de mais luminoso no Ser. A isso denominamos o bem, não é verdade?
Glauco — É.
Sócrates — A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por educá-lo na boa direção.
Embora possa parecer que os autores sejam elitistas ao dizer que alguns não estão prontos para educação (filosófica), a verdade é que em seguida eles afirmam que cada um deve receber a educação de uma maneira suportável de acordo com suas condições. Afinal todos indivíduos têm a capacidade de aprender, mas cada um tem sua própria história que formou maneiras variadas entre si de perceber e interpretar as coisas. O autor diz que o filósofo que serve como governante ideal, não deve se interessar pelo enriquecimento material (dinheiro, ouro etc) e sim por uma vida bondosa e sensata.
[520 a] (...) é isso mesmo, Glauco. Se descobrires uma condição preferível ao poder para os que devem mandar, ser-te-á passível ter um Estado bem governado. Certamente, neste Estado só mandarão os que são verdadeiramente ricos, não de ouro, mas dessa riqueza de que o homem tem necessidade para ser feliz: uma vida virtuosa (ágathis, ou seja, vida bondosa, generosa) e sábia. Pelo contrário, se os mendigos e os sedentos de bens pessoais procurarem os negócios públicos convencidos de que é deles que podem extrair suas vantagens, isso não será possível. As pessoas guerreiam para obterem o poder, e esta guerra doméstica e interna perde não só os que a travam como também o restante da cidade.
[521-523] A seguir Sócrates diz à Glauco, que é preciso descobrir o estudo (máthimas) que afasta a pessoa do que é mutável rumo ao que é essencial, rumo ao Ser. Então ambos iniciam a busca, chegando ao "estudo dos números e do cálculo" (aritmós e lógis), pois este estudo seria onde toda arte (tekhne) e ciência (episteme) tem parte. Isto porque nas sensações, há coisas (ou fenômenos) que não convidam à reflexão, ficando suficientemente avaliadas pelos sentidos, enquanto outras obrigam de toda maneira a refletir, como se a sensação não produzisse nada de são. Estas "coisas" que não convidam à reflexão são as identificáveis, ou mais precisamente a identidade do objeto em si: o autor dá o exemplo que todos sabem o que é um dedo, então não se mede o que é um dedo. Os objetos que conduzem à reflexão, são aqueles que produzem sensações contrárias: questionamentos sobre o quão grandes ou pequenos são, espessos ou finos, duros ou macios, leves ou pesados, enfim são passíveis de medição e enumeração.
[525] Sócrates — Julga, pois, pelo que acabamos de dizer, por analogia. Se a unidade é apreendida em si mesma, de maneira satisfatória, pela visão ou por qualquer outro sentido, não atrairá a nossa psiquê para a essência, tal como o dedo que citávamos há pouco; mas se a visão da unidade oferece sempre uma contradição, de modo que não pareça mais unidade do que multiplicidade, então será preciso alguém para decidir; o espírito fica, nessa situação, forçosamente embaraçada e, despertando em si mesmo o entendimento, é constrangido a indagar o que vem a ser a unidade; é assim que a percepção intelectual da unidade é das que conduzem e orientam o espírito para a contemplação do Ser (ontos).
Glauco — Certamente a visão da unidade possui esse poder em altíssimo grau, pois que vemos a mesma coisa ao mesmo tempo una e múltipla até o infinito.
Tal assunto também é abordado no diálogo Filebo, para definir o que é finito, o que é infinito e o que há entre estas categorias de fenômenos ou objetos, com a finalidade de provar que a inteligência (nous) é superior ao prazer (hedonis). Porém aqui na "República", o assunto parece indicar que onde vemos unidade, também é possível ver multiplicidade - a partir do momento que identificamos a unidade de qualquer objeto, podemos contá-los, enumerá-los etc. Este questionamento do que é a unidade deve permitir reflexões sobre o Ser - objeto de estudo do professor de ontos explicado no diálogo Fédon.
Neste trecho do livro 7 [526c], Platão mostra Sócrates falando da importância de estudar a Matemática, a Geometria, a Astronomia e a Música. Porém critica aqueles que estudam apenas por observação (baseando-se nos sentidos como a visão) e que meramente “buscam números” nestas ciências. Sócrates propõe uma busca pela harmonia entre os elementos estudados e posteriormente uma busca pela harmonia entre estas “diferentes” ciências. Esta harmonia é o que deve levar à verdadeira beleza e ao bem. Assim, ao indicar que é insuficiente e ridículo o estudo limitado à meras operações matemáticas, aos negócios, à construção e às campanhas militares, Sócrates mostra seu lado religioso ou espiritual (e certamente o de Platão também). Para ele é possível aproximar-se do Bem, uma essência, uma ideia real/ superior (eidos) ou de Deus, estudando as partes mais avançadas do cálculo e da geometria e suas interconexões.
A harmonia e interconexão entre elementos estudados e entre epistemes aponta que Platão propunha um conhecimento transdisciplinar, similar à Teoria geral dos sistemas. Além disto, o estudo filosófico da matemática e da geometria está de acordo com o diálogo
Parmênides, onde parece ser possível entender a existência da 4ª dimensão
através da construção de conhecimento via diálogo e reflexão.
[528] Sócrates — (...) ainda há pouco escolhemos a ciência que se segue à geometria.
Glauco — Como assim?
Sócrates — Depois das superfícies, tratamos dos sólidos em movimento, antes de nos ocuparmos dos sólidos em si. A bem da verdade, a ordem exige que, depois da segunda dimensão (ou potência), se passe à terceira, ou seja, aos cubos e aos objetos que possuem profundidade.
Glauco — Muito bem. Mas, essa ciência, ó Sócrates, ainda não foi descoberta.
Sócrates — Pelo que vi, isso deve-se a dois motivos: em primeiro lugar, nenhum Estado honra estas pesquisas e, como são difíceis, trabalha-se bem pouco nelas; em segundo lugar, os investigadores precisam de um diretor, sem o qual os seus esforços serão desperdiçados. Temos conosco que é difícil encontrá-lo. E, se o encontrássemos, no estado atual das coisas, os que se ocupam destas investigações não lhe obedeceriam por terem demasiada arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com esse diretor e honrasse essa ciência, eles o obedeceriam, e as questões que esta aventa, estudadas com seqüência e vigor, seriam esclarecidas. Pois, mesmo nos dias de hoje desprezada pelo vulgo, truncada por investigadores que não entendem a sua utilidade, apesar de tudo isso, e só pela força de seu encanto, ela exerce o seu fascínio. Portanto, não é de admirar que esteja na situação em que a vemos.
[531 d-e] Sócrates — Tenho para mim que, se o estudo de todas as ciências que examinamos conduz à descoberta das relações e do parentesco existente entre elas e mostra a natureza do elo que as une, este estudo nos ajudará a alcançar o objetivo que nos propomos, e o nosso trabalho não será inútil; caso contrário, teremos labutado em vão.
Glauco — Presumo o mesmo, Sócrates, mas é um trabalho árduo o que propões.
[533] Sócrates explica que a educação ideal que propôs (com matemática, geometria, astrologia...) é dialética, que busca a essência de cada coisa. As demais artes (ou técnicas) ocupam-se apenas dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas para a produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais. Aqueles que não recebem a educação proposta no diálogo só conhecem o Ser por sonhos e lhes será impossível ter dele uma visão real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Pois, quando se toma por princípio algo que não se conhece, ou seja, quando se nega a busca pela essência, pelo imutável/ o uno, as conclusões e as proposições intermédias também serão de elementos desconhecidos, assim é impossível construir uma (verdadeira) ciência.
[534] Sócrates — Bastará, então, destinar ciência (epistémin) à primeira divisão, conhecimento discursivo (diánoian*) à segunda, fé à terceira e imaginação à quarta; as duas últimas denominaremos opinião (dóxan), e as duas primeiras, inteligência (nóisin). A opinião terá por objeto a mutabilidade, e a inteligência, a essência. Devemos acrescentar que a essência está para a mutabilidade como a inteligência está para a opinião, a ciência para a fé e o conhecimento discursivo para a imaginação. Quanto à analogia dos objetos a que se aplicam estas relações e à divisão em dois de cada esfera, a da opinião e a do inteligível, deixemos isso, amigo, a fim de não nos lançarmos em discussões muito mais longas…
*Esta palavra parece a união do termo grego "dia" referente à dois e o termo "noian" referente à intelecto. Este último é similar à nóisin (inteligência) e nous (inteligência divina, como visto em Filebo, onde o opositor de Sócrates acusa o filósofo de "elevar muito" a sua divindade favorita). Dianoian, então traduzido como "conhecimento discursivo" por Carlos A. Nunes e "entendimento" por Pietro Nasseti, deve se referir a uma atividade intelectual/ racional onde se expõe as ideias para outra pessoa, ou onde se compara com outro argumento ou teoria...
Platão em sua ênfase na ética, mostra abertura para dialogar com temas espirituais e de religiosidade, pois entende o estudo sensorial/ material como limitado à produção ou à conservação de objetos/ corpos. Isso seria polêmico para o modelo científico dominante no ocidente após a propagação das obras e idéias de Locke (empirismo como único método de construção de conhecimento), Newton (a idéia de que o espaço tridimensional é absoluto) e Comte (positivismo), afinal a ciência após o séc. 17 foi dominada pela ênfase na matéria perceptível sensorialmente e no controle humano sobre o fenômeno estudado. Já a teoria do tempo quadrimensional de Minkowski e a teoria da relatividade de Einstein certamente não contradizem a abertura de Platão para além do método de investigação sensorial, embora obviamente o filósofo não buscava a reprodutibilidade palpável "materialmente".
É possível que Platão relacionou a ética (kalos, a ideia do bem/ belo) e a espiritualidade com matemática, geometria, astronomia e música devido a astronomia ser mista com a astrologia em sua época (os pitagóricos certamente já tinham absorvido estas idéias de babilônicos etc). Na verdade astronomia e astrologia permaneceram unidas até o fim da renascença. No livro 8, Platão dará mais uma pista sobre a possível abertura à astrologia, ao descrever como o sistema de governo ideal (dos filósofos) não duraria para sempre.
Sócrates — Assim, deverão ser ensinadas aos nossos alunos desde a infância a aritmética, a geometria e todas as ciências que hão de servir de preparação à dialética, mas este ensino deverá ser ministrado de maneira a não haver constrangimento.
Glauco — Por quê?
Sócrates — Porque o homem livre não deve ser obrigado a aprender como se fosse escravo. Os exercícios físicos, quando praticados à força, não causam dano ao corpo, mas as lições que se fazem entrar à força na alma nela não permanecerão.
[536e - 537] A seguir eles dialogam sobre a importância da educação desde a infância, não só nas artes/ ciências mencionadas (matemática, geometria, astronomia...) mas também na dialética.
Sócrates — Assim, caríssimo, não uses de violência para educar as crianças, mas age de modo que aprendam brincando, pois assim poderás perceber mais facilmente as tendências naturais de cada uma.
A proposta de uma educação sem punições físicas ou humilhações era tão revolucionária na época de Sócrates e Platão (século 4 a.C.) que ela demorou cerca de 2300 anos para se propagar de modo relevante na Europa e nos países colonizados pelos europeus. A educação seria importante desde a infância para se trabalhar as virtudes das classes guardiã e governante/ legisladora/ filósofa. Tais indivíduos devem saber distinguir a verdadeira temperança, justiça, coragem, benevolência (as virtudes, enfim valores universais, éticos) não os confundindo com o gosto por pessoas próximas nem com interesses particulares. As crianças criadas com tal educação, cresceriam de modo que não seriam enganadas por lisonjeadores nem seduzidas por posições importantes ou por grandes riquezas. No fim deste trecho do diálogo, Sócrates lembra que a educação deve também estar disponível para as mulheres e propõe determinados períodos de tempo para os estudos realizados pelas classes guardiã e governante/ legisladora/ filósofa.