Observações sobre "Politéia" (A República); Livro 7

Livro VII Esta parte da obra começa com a famosa alegoria da caverna de Platão:

[514 a-c] Sócrates — Agora mostro a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à educação (instrução) e à ignorância.

Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.    

[515 a-e] Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. 

Glauco — Um quadro estranho e estranhos prisioneiros. 

Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? 

Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida? 

Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? 

Glauco — Sem dúvida. 

Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? 

 Glauco — É bem possível. 

Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? 

Glauco — Sim, por Zeus! 

Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados. 

Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer as olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas (coisas vãs), mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que as objetos que lhe mostram agora? 

Glauco — Muito mais verdadeiras.

Sócrates — E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? 

Glauco — Com toda a certeza. 

Sócrates — E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? 

[516 a-e] Glauco — Não o conseguirá, pelo menos de início. 

Sócrates — Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homem e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu da que, durante o dia, o Sol e a sua luz.

Sócrates — Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é. 

 Glauco — Necessariamente. 

Sócrates — Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o (arremedo) que ele via com os seus companheiros, na caverna. 

Glauco — E evidente que chegará a essa conclusão. 

Sócrates — Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? 

Glauco — Sim, com certeza, Sócrates. 

Sócrates — E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em última lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? 

Glauco — Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira. 

Sócrates — Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? 

Glauco — Por certo que sim. 

[517 a-e] Sócrates— E se tiver de entrar de nova em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo? 

Glauco — Sem nenhuma dúvida. 

Sócrates — Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Deus (Theos) sabe se ela é verdadeira. É assim que os fenômenos se apresentam: no (limite do) cognoscível (mundo inteligível), a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de justo e belo existe em todas as coisas; No mundo visível, ela gerou a luz e e é soberana desta; No mundo inteligível, ela é soberana da verdade e* da inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública. 

*Outra possível tradução seria: (ela é verdadeira e provida)... Este último parágrafo parece mais complexo e as traduções variam. Certamente Platão afirma que o bem, sendo a ideia (eidos?) mais perfeita, é a soberana do mundo cognoscível/ “inteligível”: é verdadeiramente um presente, e/ ou é o que torna a pessoa verdadeiramente provida. Aquele que a vê, vê o futuro com ela em todas situações, sendo que esta visão do futuro, talvez signifique que a pessoa se baseie na ideia do bem para tudo, planeje tudo com base no bem. 

É notável como Platão usa o mito da caverna para explicar que o cognoscível/ o mundo das ideias (eidos) é mais importante e mais verdadeiro do que o que percebemos com os sentidos em vida. Sua realidade é imediata, ou seja, não necessita de um meio, nem dos sentidos - qualquer pessoa, sem necessariamente usar seus sentidos, pode pensar, sentir (ter sentimentos), sonhar etc. Os sentidos captados pelos órgãos (visão, audição, olfato, paladar e tato) são “mediatos” pois requerem um meio - captam o que está no exterior de cada ser/ de cada indivíduo. Os sentidos não tomam decisões nem têm intenções como faz a atividade psíquica, seja da mente ou alma. Na realidade imediata (interna da pessoa), ou seja, cognoscível/ psíquica, a ideia mais sublime é o bem - ele resolve todos os problemas e deve ser a referência de todas ações/ comportamentos humanos. 

Sócrates — Pois bem! Compartilha-a também neste ponto e não te admires se aqueles que se elevaram a tais alturas desistem de se ocupar das coisas humanas e as suas almas aspiram sem cessar a instalar-se nas alturas. É assim, portanto, de acordo com a imagem que pretendemos ter. 

Glauco — Com efeito, é muito natural. 

Sócrates — Mas como? Achas espantoso que um homem que passa das contemplações divinas às miseráveis coisas humanas revele repugnância e pareça inteiramente ridículo, quando, ainda com a vista perturbada e não estando suficientemente acostumado às trevas circundantes, é obrigado a entrar em disputa, perante os tribunais ou em qualquer outra parte, sobre sombras de justiça ou sobre estátuas que projetam essas sombras, e a combater as interpretações que disso dão os que nunca viram a justiça em si mesma? 

Glauco — Não há nisso nada de espantoso. 

[518 a-e] Sócrates — No entanto, um homem sensato lembrar-se-á de que os olhos podem ser perturbados de duas maneiras e por duas causas opostas: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão à luz; e, tento refletido que o mesmo se passa com a alma, quando encontrar uma confusa e embaraçada para discernir certos objetos, não se rirá totalmente, mas antes examinará se, vinda de uma vida mais luminosa, ela se encontra, por falta de hábito, ofuscada pelas trevas ou se, passando da ignorância à luz, está deslumbrada pelo seu brilho demasiado vivo; no primeiro caso, considerá-la-á feliz, em virtude do que ela sente e da vida que leva; no segundo, lamentá-la-á e, se quisesse rir à sua custa, as suas zombarias seriam menos ridículas do que se aplicadas à alma que regressa de cima da luz (ánothen ek fotós). 

Aquele que alcançou a ideia do bem, ou seja, o entendimento deste, não quer se ocupar de disputas supérfluas nem de julgamentos baseados em opiniões humanas de quem não entende que o bem é um valor universal. O valor universal não é um valor individual (como uma preferência ou opinião), nem é algo imposto para oprimir outrem - é uma virtude que o indivíduo desenvolve (ou desperta) e a direciona para todos os demais seres. Por exemplo, o verdadeiro ser solidário não se porta desta maneira (solidariamente) só em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas, ele é solidário em relação a todos. Isto é individual (interno, imediato) e coletivo (bom para toda a humanidade, toda a vida etc). Ao propor que pode haver confusão nos 2 casos: daquele que “viu a luz (da ideia, ou eidos, do bem) e retornou para as trevas” do mundo sensorial que ignora a relação do saber com o bem e daquele que “subiu do mundo das trevas (sensorial, ignorante…) ao mundo da luz, das ideias e do bem”, Sócrates insinua que há algo além de meras "ideias" no reino cognoscível/ inteligível. Certamente este é um dos motivos que o autor utiliza a palavra eidos, que significa algo entre forma e ideia (a ideia mais real do que os corpos perceptíveis sensorialmente).

De acordo com estes discursos de Sócrates, há uma aparente afirmação de que a mente que alcançou tal bem, tem um entendimento também do que é verdadeiramente superior, algo como uma realidade sublime, ou mesmo um reino celeste, espiritual, angelical/ divino, afinal quem iria rir de alguém que saiu das “trevas do mundo sensorial” e chegou à “luz do reino cognoscível/ ideal”? 

Sócrates (...) Eu digo se tudo isto é verdadeiro, temos que pensar o seguinte: a educação não é o que alguns proclamam que é, porquanto pretendem introduzir ciência (episteme) na alma onde ela não está, como quem tentasse dar vista a olhos cegos. 

Glauco — Mais uma verdade. 

Certamente a episteme, seja educação ou ciência, não pode ser desvinculada da ideia do bem. Isto está de acordo com o combate ao relativismo e ao sofismo, que tanto Platão, quanto Sócrates desempenharam. Separar o valor universal do bem da episteme (da construção de conhecimento), é uma distorção, portanto é uma falsidade, uma mentira. Trata-se de excluir a ética da ciência e de permitir que se insira o mau no lugar do bem… 

Sócrates — Ora, o presente discurso demonstra que cada um possui a faculdade de aprender e o órgão destinado a esse uso e que, semelhante a olhos que só poderiam voltar das trevas para a luz com todo o corpo, esse órgão deve também afastar-se com toda a alma do que se altera, até que se torne capaz de suportar a vista do Ser e do que há de mais luminoso no Ser. A isso denominamos o bem, não é verdade? 

Glauco — É. 

Sócrates — A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por educá-lo na boa direção. 

Embora possa parecer que os autores sejam elitistas ao dizer que alguns não estão prontos para educação (filosófica), a verdade é que em seguida eles afirmam que cada um deve receber a educação de uma maneira suportável de acordo com suas condições. Afinal todos indivíduos têm a capacidade de aprender, mas cada um tem sua própria história que formou maneiras variadas entre si de perceber e interpretar as coisas. O autor diz que o filósofo que serve como governante ideal, não deve se interessar pelo enriquecimento material (dinheiro, ouro etc) e sim por uma vida bondosa e sensata.

[520 a] (...) é isso mesmo, Glauco. Se descobrires uma condição preferível ao poder para os que devem mandar, ser-te-á passível ter um Estado bem governado. Certamente, neste Estado só mandarão os que são verdadeiramente ricos, não de ouro, mas dessa riqueza de que o homem tem necessidade para ser feliz: uma vida virtuosa (ágathis, ou seja, vida bondosa, generosa) e sábia. Pelo contrário, se os mendigos e os sedentos de bens pessoais procurarem os negócios públicos convencidos de que é deles que podem extrair suas vantagens, isso não será possível. As pessoas guerreiam para obterem o poder, e esta guerra doméstica e interna perde não só os que a travam como também o restante da cidade.

[521-523] A seguir Sócrates diz à Glauco, que é preciso descobrir o estudo (máthimas) que afasta a pessoa do que é mutável rumo ao que é essencial, rumo ao Ser. Então ambos iniciam a busca, chegando ao "estudo dos números e do cálculo" (aritmós e lógis), pois este estudo seria onde toda arte (tekhne) e ciência (episteme) tem parte. Isto porque nas sensações, há coisas (ou fenômenos) que não convidam à reflexão, ficando suficientemente avaliadas pelos sentidos, enquanto outras obrigam de toda maneira a refletir, como se a sensação não produzisse nada de são. Estas "coisas" que não convidam à reflexão são as identificáveis, ou mais precisamente a identidade do objeto em si: o autor dá o exemplo que todos sabem o que é um dedo, então não se mede o que é um dedo. Os objetos que conduzem à reflexão, são aqueles que produzem sensações contrárias: questionamentos sobre o quão grandes ou pequenos são, espessos ou  finos, duros ou macios, leves ou pesados, enfim são passíveis de medição e enumeração.

[525]  Sócrates — Julga, pois, pelo que acabamos de dizer, por analogia. Se a unidade é apreendida em si mesma, de maneira satisfatória, pela visão ou por qualquer outro sentido, não atrairá a nossa psiquê para a essência, tal como o dedo que citávamos há pouco; mas se a visão da unidade oferece sempre uma contradição, de modo que não pareça mais unidade do que multiplicidade, então será preciso alguém para decidir; o espírito fica, nessa situação, forçosamente embaraçada e, despertando em si mesmo o entendimento, é constrangido a indagar o que vem a ser a unidade; é assim que a percepção intelectual da unidade é das que conduzem e orientam o espírito para a contemplação do Ser (ontos).
        Glauco — Certamente a visão da unidade possui esse poder em altíssimo grau, pois que vemos a mesma coisa ao mesmo tempo una e múltipla até o infinito. 

Tal assunto também é abordado no diálogo Filebo, para definir o que é finito, o que é infinito e o que há entre estas categorias de fenômenos ou objetos, com a finalidade de provar que a inteligência (nous) é superior ao prazer (hedonis). Porém aqui na "República", o assunto parece indicar que onde vemos unidade, também é possível ver multiplicidade - a partir do momento que identificamos a unidade de qualquer objeto, podemos contá-los, enumerá-los etc. Este questionamento do que é a unidade deve permitir reflexões sobre o Ser - objeto de estudo do professor de ontos explicado no diálogo Fédon.

Neste trecho do livro 7 [526c], Platão mostra Sócrates falando da importância de estudar a Matemática, a Geometria, a Astronomia e a Música. Porém critica aqueles que estudam apenas por observação (baseando-se nos sentidos como a visão) e que meramente “buscam números” nestas ciências. Sócrates propõe uma busca pela harmonia entre os elementos estudados e posteriormente uma busca pela harmonia entre estas “diferentes” ciências. Esta harmonia é o que deve levar à verdadeira beleza e ao bem. Assim, ao indicar que é insuficiente e ridículo o estudo limitado à meras operações matemáticas, aos negócios, à construção e às campanhas militares, Sócrates mostra seu lado religioso ou espiritual (e certamente o de Platão também). Para ele é possível aproximar-se do Bem, uma essência, uma ideia real/ superior (eidos) ou de Deus, estudando as partes mais avançadas do cálculo e da geometria e suas interconexões.

A harmonia e interconexão entre elementos estudados e entre epistemes aponta que Platão propunha um conhecimento transdisciplinar, similar à Teoria geral dos sistemas. Além disto, o estudo filosófico da matemática e da geometria está de acordo com o diálogo Parmênides, onde parece ser possível entender a existência da 4ª dimensão através da construção de conhecimento via diálogo e reflexão.

[528] Sócrates — (...) ainda há pouco escolhemos a ciência que se segue à geometria.
        Glauco — Como assim?
        Sócrates — Depois das superfícies, tratamos dos sólidos em movimento, antes de nos ocuparmos dos sólidos em si. A bem da verdade, a ordem exige que, depois da segunda dimensão (ou potência), se passe à terceira, ou seja, aos cubos e aos objetos que possuem profundidade.
        Glauco — Muito bem. Mas, essa ciência, ó Sócrates, ainda não foi descoberta.
        Sócrates — Pelo que vi, isso deve-se a dois motivos: em primeiro lugar, nenhum Estado honra estas pesquisas e, como são difíceis, trabalha-se bem pouco nelas; em segundo lugar, os investigadores precisam de um diretor, sem o qual os seus esforços serão desperdiçados. Temos conosco que é difícil encontrá-lo. E, se o encontrássemos, no estado atual das coisas, os que se ocupam destas investigações não lhe obedeceriam por terem demasiada arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com esse diretor e honrasse essa ciência, eles o obedeceriam, e as questões que esta aventa, estudadas com seqüência e vigor, seriam esclarecidas. Pois, mesmo nos dias de hoje desprezada pelo vulgo, truncada por investigadores que não entendem a sua utilidade, apesar de tudo isso, e só pela força de seu encanto, ela exerce o seu fascínio. Portanto, não é de admirar que esteja na situação em que a vemos. 

[531 d-e] Sócrates — Tenho para mim que, se o estudo de todas as ciências que examinamos conduz à descoberta das relações e do parentesco existente entre elas e mostra a natureza do elo que as une, este estudo nos ajudará a alcançar o objetivo que nos propomos, e o nosso trabalho não será inútil; caso contrário, teremos labutado em vão. 

Glauco — Presumo o mesmo, Sócrates, mas é um trabalho árduo o que propões.

[533] Sócrates explica que a educação ideal que propôs (com matemática, geometria, astrologia...) é dialética, que busca a essência de cada coisa. As demais artes (ou técnicas) ocupam-se apenas dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas para a produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais. Aqueles que não recebem a educação proposta no diálogo só conhecem o Ser por sonhos e lhes será impossível ter dele uma visão real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Pois, quando se toma por princípio algo que não se conhece, ou seja, quando se nega a busca pela essência, pelo imutável/ o uno, as conclusões e as proposições intermédias também serão de elementos desconhecidos, assim é impossível construir uma (verdadeira) ciência. 

[534] Sócrates — Bastará, então, destinar ciência (epistémin) à primeira divisão, conhecimento discursivo (diánoian*) à segunda, fé à terceira e imaginação à quarta; as duas últimas denominaremos opinião (dóxan), e as duas primeiras, inteligência (nóisin). A opinião terá por objeto a mutabilidade, e a inteligência, a essência. Devemos acrescentar que a essência está para a mutabilidade como a inteligência está para a opinião, a ciência para a fé e o conhecimento discursivo para a imaginação. Quanto à analogia dos objetos a que se aplicam estas relações e à divisão em dois de cada esfera, a da opinião e a do inteligível, deixemos isso, amigo, a fim de não nos lançarmos em discussões muito mais longas… 

*Esta palavra parece a união do termo grego "dia" referente à dois e o termo "noian" referente à intelecto. Este último é similar à nóisin (inteligência) e nous (inteligência divina, como visto em Filebo, onde o opositor de Sócrates acusa o filósofo de "elevar muito" a sua divindade favorita). Dianoian, então traduzido como "conhecimento discursivo" por Carlos A. Nunes e "entendimento" por Pietro Nasseti, deve se referir a uma atividade intelectual/ racional onde se expõe as ideias para outra pessoa, ou onde se compara com outro argumento ou teoria...

Platão em sua ênfase na ética, mostra abertura para dialogar com temas espirituais e de religiosidade, pois entende o estudo sensorial/ material como limitado à produção ou à conservação de objetos/ corpos. Isso seria polêmico para o modelo científico dominante no ocidente após a propagação das obras e idéias de Locke (empirismo como único método de construção de conhecimento), Newton (a idéia de que o espaço tridimensional é absoluto) e Comte (positivismo), afinal a ciência após o séc. 17 foi dominada pela ênfase na matéria perceptível sensorialmente e no controle humano sobre o fenômeno estudado. Já a teoria do tempo quadrimensional de Minkowski e a teoria da relatividade de Einstein certamente não contradizem a abertura de Platão para além do método de investigação sensorial, embora obviamente o filósofo não buscava a reprodutibilidade palpável "materialmente". 

É possível que Platão relacionou a ética (kalos, a ideia do bem/ belo) e a espiritualidade com matemática, geometria, astronomia e música  devido a astronomia ser mista com a astrologia em sua época (os pitagóricos certamente já tinham absorvido estas idéias de babilônicos etc). Na verdade astronomia e astrologia permaneceram unidas até o fim da renascença. No livro 8, Platão dará mais uma pista sobre a possível abertura à astrologia, ao descrever como o sistema de governo ideal (dos filósofos) não duraria para sempre. 

Sócrates — Assim, deverão ser ensinadas aos nossos alunos desde a infância a aritmética, a geometria e todas as ciências que hão de servir de preparação à dialética, mas este ensino deverá ser ministrado de maneira a não haver constrangimento. 

Glauco — Por quê? 

Sócrates — Porque o homem livre não deve ser obrigado a aprender como se fosse escravo. Os exercícios físicos, quando praticados à força, não causam dano ao corpo, mas as lições que se fazem entrar à força na alma nela não permanecerão.

[536e - 537] A seguir eles dialogam sobre a importância da educação desde a infância, não só nas artes/ ciências mencionadas (matemática, geometria, astronomia...) mas também na dialética.

Sócrates — Assim, caríssimo, não uses de violência para educar as crianças, mas age de modo que aprendam brincando, pois assim poderás perceber mais facilmente as tendências naturais de cada uma. 

A proposta de uma educação sem punições físicas ou humilhações era tão revolucionária na época de Sócrates e Platão (século 4 a.C.) que ela demorou cerca de 2300 anos para se propagar de modo relevante na Europa e nos países colonizados pelos europeus. A educação seria importante desde a infância para se trabalhar as virtudes das classes guardiã e governante/ legisladora/ filósofa. Tais indivíduos devem saber distinguir a verdadeira temperança, justiça, coragem, benevolência (as virtudes, enfim valores universais, éticos) não os confundindo com o gosto por pessoas próximas nem com interesses particulares. As crianças criadas com tal educação, cresceriam de modo que não seriam enganadas por lisonjeadores nem seduzidas por posições importantes ou por grandes riquezas. No fim deste trecho do diálogo, Sócrates lembra que a educação deve também estar disponível para as mulheres e propõe determinados períodos de tempo para os estudos realizados pelas classes guardiã e governante/ legisladora/ filósofa.

 

Observações sobre "Politéia" (A República); Livro 6

No livro anterior (5) da República foi possível concluir que o objetivo da "ciência" e dos estudos (episteme e mathematos) realizadas pelos filósofos é convergir estes com a política, que por sua vez é a gestão, as normas e o convívio dos cidadãos das pólis/ do estado. Pelo exemplo da teoria tripartite da alma (psiquê) mostrado em comparação com as 3 classes da sociedade no livro anterior, nota-se que o filósofo é aquele que corrigiu seu desejo (tornando-o "orthos eros") abandonando a priorização da busca do mero saciar de necessidades básicas e de prazeres sensoriais (típica da parte inferior da psiquê). Isto é feito por escolha, por intenção do indivíduo e não por imposição: o verdadeiro filósofo uniu seu sentimento/ paixão (thymous e palavras oriundas deste termo, a parte intermediária da psiquê apresentada por Platão) com a parte mais elevada de sua psiquê, que detém o autocontrole, a inteligência/ razão que busca a ideia do bem e do belo (kalos, o valor universal, imutável).

Livro VI:

[484] Sócrates — O que vem logo a seguir? Como estabelecemos que são filósofos aqueles que podem chegar ao conhecimento do imutável ao passo que os que não podem, mas erram na multiplicidade dos objetos variáveis, não são filósofos, cumpramos ver a quem escolheríamos para governar o Estado.
Glauco — Qual a medida mais sábia que devemos tomar?
Sócrates — Devemos escolher para magistrados aqueles que nos parecerem capazes de zelar pelas leis e as instituições da cidade. 

[485] Sócrates — Em primeiro lugar, admitamos, no que concerne à natureza do filósofo, que ele deseja sempre o estudo (mathematos) que possa dar-lhe a conhecer essa essência que existe sempre e que não se desvirtua (ilude, delira) por ação da geração e da corrupção. 

Glauco — Sim, admitamo-lo. 

Sócrates — E que amam a essência* na totalidade, não renunciando a nenhuma de suas partes, pequena ou grande, exaltada ou desprezada, da mesma forma que os ambiciosos e os amantes a que nos referimos. 

*Esta é a tradução de Pietro Nassetti; Carlos Alberto Nunes traduziu como "ciência" embora não haja palavras equivalente a isto no texto (episteme, gnosis ou gnosthein etc)

Glauco — Tens razão. 

Sócrates — Considera agora se não é necessário que homens que devem ser como acabamos de dizer possuam, além disso, uma outra qualidade. 

Glauco — Qual? 

Sócrates— A sinceridade, unia tendência natural para não admitirem voluntariamente a mentira, mas odiá-la e amar a verdade. 

 Glauco — É importante. 

Sócrates — Não apenas é importante, meu amigo, mas é forçoso que aquele que ama alguém ame tudo o que se assemelha e liga ao objeto do seu amor. 

[487 b-e] Adimanto interfere dizendo que as pessoas podem ir se desorientando pouco a pouco em cada questão, de forma que no fim da discussão entendam praticamente tudo errado. E que por isso muitos dos filósofos se tornam extravagantes ou até perversos, considerados inúteis aos governos das cidades. 

[488] Sócrates responde dando um exemplo que pode ocorrer num navio: Se um navio tiver um comandante medíocre que chegou ao seu posto sem grandes competências, este pode se deixar levar por marinheiros que não entendem de navegação. Os marinheiros então poderão disputar entre si ou mesmo forçar o comandante à uma ação desastrosa para a embarcação e todos que estão nela. E continua: 

“...Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro piloto, nem sequer suspeitam de que deve estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar, com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação, não pensam que seja possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte da pilotagem.” 

Sócrates e Adimanto então começam a discutir as possíveis causas da corrupção da natureza filosófica. 

[491 e] Sócrates — Podemos também afirmar, Adimanto, que as almas (psiquês) mais bem-dotadas, influenciadas por uma má educação, se tornam más no mais alto grau. Ou julgas que os grandes crimes e a pior perversidade provêm de uma medíocre e não de uma excelente natureza? E poderá uma alma vulgar* realizar grandes coisas, seja para o bem, seja para o mal? 

Adimanto — Não. Penso igual a ti. 

* A psiquê vulgar certamente se refere à pessoa que cresce sem recursos, principalmente no que se refere à educação, ou seja, sem acesso à educação.

Na sequência os interlocutores discutem como os sofistas sistematizaram meios de influenciar as pessoas sem se importar com o que é justo, sem diferenciar o belo do feio etc. Sócrates cita que aqueles que recebiam a "educação" dos sofistas eram submersos e arrastados por censuras e louvores exagerados, ou seja, pela oratória e pela retórica, táticas de persuasão. Os sofistas então são entendidos como estudiosos falsos (corruptos) pois agiam como mercenários especializados em provocar e amansar pessoas através de abordagens superficiais mas geralmente chamativas. Assim estes sofistas modelavam multidões e buscavam castigar aqueles que desmentiam seus discursos, seja com multas ou com pena de morte. 

Sócrates — Depois de termos compreendido tudo isto, diz-me: é possível que a turba admita e conceba que o belo em si mesmo existe, uno e distinto da multidão das coisas belas e que a essência das coisas é simples, uma e indivisível? 

Adimanto — De forma alguma. 

Sócrates — Por conseguinte, é impossível que o povo seja filósofo. 

Adimanto — Impossível. 

Sócrates — É impossível, também, que esses sofistas que se misturam com o povo, vendidos a ele, deixem de lisonjear-lhe o gosto. 

Adimanto — É claro. 

Sócrates — Percebes assim que eu tinha razão quando afirma que os elementos que compõem a temperamento filosófico de uma pessoa, ao serem deteriorados por uma má educação, fazem essa pessoa afastar-se da sua vocação, tanto quanto as riquezas. 

Adimanto — Reconheço que tinha razão. 

Sócrates — Assim é, meu grande amigo, em toda a sua extensão, a corrupção que perverte as melhores naturezas, aliás bem raras, como observamos. É de homens assim que saem não apenas os que causam os maiores males às cidades e aos cidadãos, mas também os que lhes proporcionam o maior bem quando seguem o caminho certo; mas um temperamento medíocre nunca faz nada de grande a favor ou em detrimento de alguém, mero cidadão ou cidade.

[496 b-e] Sócrates — Então, Adimanto, é por demais baixo o número dos que podem lidar dignamente com a filosofia: talvez alguns nobres espíritos aprimorados por uma boa educação, isoladas do mundo, que, afastados de quaisquer influências corruptoras, permanecem fiéis à sua natureza e vocação; ou alguma grande alma, nascida numa pequena cidade, que despreze os cargos públicos; talvez ainda algum raro e feliz caráter que abandone, para se entregar à filosofia, outra profissão que considere inferior. Outras, enfim, parecem contidos pelo mesmo freio que mantém preso à filosofia a nosso amigo Teages. Embora tudo conspire para afastá-lo da filosofia, as enfermidades que o incapacitam para a vida política o obrigam a filosofar. Quanto a mim, não convém que eu fale do meu daemon (espírito, guia) familiar e pressaga que me adverte interiormente, pois é duvidosa que se possa encontrar outro exemplo no passado. Mas, entre este pequeno grupo, aqueles que se tornaram filósofas e provaram as delícias proporcionadas pela posse da sabedoria, convencidas da insensatez do restante dos homens,aqueles que sabem que não possuem aliados com quem passam cantar para ir em socorro da justiça sem se perder, mas que, ao contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes, recusando-se a participar das injustiças dos outros e incapaz de resistir sozinho a esses seres selvagens, pereceriam antes de ter servido a pátria e os amigos, inúteis a si mesmos e aos outros. Levados por essas reflexões, ficam inativos e ocupam-se dos seus negócios; semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto a vento ergue turbilhões de pó e chuva, fica feliz se encontra um muro atrás do qual possa se abrigar, os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro isentos de injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sorridentes e tranqüilos e com a consola de uma bela esperança. 

Adimanto — Na verdade, não sairão deste mundo sem ter realizado grandes obras. 

O diálogo apresentado do livro 1 ao 6 da "República" indica que poucos indivíduos podem ser filósofos porque para isso precisam deixar em segundo plano os prazeres sensoriais e os gostos particulares, unindo seus sentimentos à razão e à busca pela idéia "una" que não é iludida pela geração, pelas distorções e corrupções. Esta idéia é o bem, a verdadeira beleza (kalos), e por Una, devemos entender imutável e válida para todos, ou seja, universal. Logicamente não existe bem universal que seja meramente individual ou particular: ele é coletivo, por isso Platão explica (no livro 1 desta obra) que a finalidade de todas as profissões (tekhnes) e de toda episteme é servir. O diálogo mostra que a única "profissão" que destoa disso é a do mercenário: este usa/ prioriza "a técnica de ganhar dinheiro", de lucrar. 

A "técnica" ou conhecimento (episteme) do filósofo assim apresenta-se centrada no ser humano, especialmente em sua psiquê e na ética (justiça, moderação, coragem, beleza psíquica emocional e bem universal) e por causa destes pré-requisitos poucos podem ser governantes. Ao delinear tais exigências para a filosofia e para a política, estes são alguns dos argumentos de Platão/ Sócrates que podem parecer "elitistas". Porém se considerarmos que os governantes filósofos realmente prezem pelo bem universal/ coletivo, servindo à toda cidade/ estado e regulando a classe mercantil para que esta não tome o poder, não há nada de elitista nisso. O elitismo surge quando grupos da classe que prioriza riquezas materiais e prazeres sensoriais tomam o poder, seja de uma cidade, estado ou nação maior. 

Além da dificuldade de se encontrar pessoas que priorizem a ética ante os demais assuntos, para se começar a implantar as ideias de Platão certamente outro desafio seria colocar em prática uma educação centrada nos saberes humanos e na ética como o autor propôs.

[498-501] Na sequência, Sócrates critica a educação dos jovens de sua época, explicando que eles mal chegam a aprender a dialética, que para o filósofo envolve a arte da maiêutica, o diálogo que conduz o despertar a virtude, a noção do bem, enfim a ética e seu valor universal. Desta forma, enquanto os jovens filósofos não receberem uma educação filosófica/ ética e enquanto as classes dominantes na política e nos tribunais estiverem envolvidas com disputas mesquinhas e invejosas, não haverá governo nem estado perfeito. Esta classe formada pelos governadores e pelos sofistas desprezavam as propostas dos verdadeiros filósofos. Sócrates diz para Adimanto não acusar a multidão pela dificuldade da verdadeira filosofia ser propagada, pois esta é corrompida por pessoas que se consideram filósofos, educadores ou construtores de conhecimento, mas que na verdade agem como os interesseiros mencionados ao longo do diálogo. 

Os verdadeiros filósofos, ou seja, os indivíduos que se pautam pelo bem/ beleza, temperança, justiça e demais virtudes (de valor universal, ético) escreveriam leis justas, adaptando-as conforme surgisse necessidades etc.

[505] Sócrates: (...) Na verdade, ouviste-me falar várias vezes dessa ciência; agora, porém, ou te esqueceste ou pensas em me causar novos embaraços. E inclina-me para esta última opinião, pois me ouviste muitas vezes afirmar que a idéia do bem é o mais alto dos conhecimentos, aquela de que a justiça e as outras virtudes tiram a sua utilidade e as suas vantagens. Não ignoras, agora, que é isto o que vai dizer, acrescentando que não conhecemos suficientemente esta idéia. Ora, se não a conhecemos, embora conheçamos o melhor possível todo o resto, sabes que estes conhecimentos não nos valerão de nada sem ela, da mesma forma que a passe de um objeto sem a do bem. Com efeito, julgas vantajoso possuir muitas coisas, se não forem boas, ou conhecer tudo, com exceção do bem, e não conhecer nada de belo nem de bom? 

Adimanto — Não, por Zeus, não acho. 

O conhecimento sem o bem não traz vantagens reais, pois acaba sendo usado para encobrir mentiras ou para fins egoístas (como citado nos exemplos anteriores dos sofistas, dos governantes corruptos entre outros). Se todas as virtudes são oriundas do bem, qualquer conhecimento sem o bem é incompleto e não traz a verdade e o que é mais belo à tona. Na sequência, Sócrates compara o bem com o Sol. 

[507-508] Sócrates — A visão pode estar situada nos olhos, e estes podem ser usados para enxergar; a cor, da mesma maneira, pode estar nos objetos. Contudo, se a isso não for acrescentado um terceiro elemento, a vista nada verá e as cores não serão percebidas. 

Adimanto — De que elemento estás falando? 

Sócrates— Aquele que denominas luz. 

Adimanto — Tens razão. 

Sócrates — Logo, o sentido da visão e a faculdade de serviço estão unidos por um laço incomparavelmente mais precioso do que aquele que estabelece as outras uniões, desde que a luz não seja uma coisa desprezível. 

Adimanto— De maneira nenhuma ela é desprezível. 

Sócrates — Pois é o Sol que eu chamo de filho do bem, que o bem engendrou à sua própria semelhança. Aquilo que o bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e aos seus objetos, o Sol o é no campo da visível, em relação à vista e aos seus objetos. 

(...) Sócrates — Creio que admitirás que o Sol fornece às coisas visíveis não apenas a capacidade de serem vistas, mas também a criação, o crescimento e a nutrição, apesar de ele mesmo não ser criação. 

Adimanto — Efetivamente, não o é. 

Sócrates— Admite também que as coisas cognoscíveis não recebem do bem apenas a sua inteligibilidade, mas também retiram dele a sua existência e a sua essência, apesar de o bem não ser a essência, mas estar muita acima desta em dignidade e poder. 

Assim como o Sol permite que a visão funcione e com que a vida exista na Terra, o Bem permite que os processos mentais alcançáveis (conhecimentos e sentimentos) sejam reconhecidos e sustenta tais coisas. O Bem então seria a verdade por trás de todas as coisas de modo similar (ou igual) à Deus. 

(...) Sócrates — Considera, então, que existem dois reis, reinando um sobre o campo do cognoscível e o outro, do visível: não diga do céu, com receio de que penses que brinco com as palavras. Mas consegues imaginar estes dois gêneros, o visível e o cognoscível? 

Glauco — Consigo. 

Sócrates — Agora, pega uma linha cortada em dois segmentos desiguais, representando um o gênero visível, o outro o cognoscível, e corta de novo cada segmento respeitando a mesma proporção; terás então, classificando as divisões obtidas conforme o seu grau relativo de clareza ou de obscuridade, no mundo visível, um primeiro segmento, a das imagens. Denomino imagens primeiramente às sombras, depois aos reflexos que se vêem nas águas ou na superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e a todas as representações semelhantes. Compreendes? 

Glauco — Lógico que sim. 

Sócrates — Considera agora que o segundo segmento corresponde aos objetos que essas imagens representam, ou seja, os animais que nos cercam, as plantas e todas as obras de arte. 

Glauco — Estou considerando. 

Sócrates — Concordas também em dizer que, no que concerne à verdade e ao seu contrário, a divisão foi feita de tal modo que a imagem está para o objeto que reproduz como a opinião está para a ciência? 

Glauco — Concordo plenamente. 

 Sócrates — Vê agora como deve ser dividido o mundo cognoscível. 

Glauco — Como? 

Sócrates — Na primeira parte desse segmento, a alma (psique), utilizando as imagens dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses, seguindo um caminho que a leva, não a um princípio, mas a uma conclusão. No segundo segmento, a alma parte da hipótese para chegar ao princípio absoluto, sem lançar mão das imagens, como no caso anterior, e desenvolve a sua análise servindo-se unicamente das idéias. 

No “reino visível” (que é um reino sensorial) as imagens são meras representações bidimensionais (indiretas) de corpos tridimensionais. A sombra sendo a mais rústica (uma mera silhueta sem cor) é a mais imprecisa/ imperfeita do reino visível, seguida pelas imagens refletidas em superfícies lisas e reluzentes, que possuem cores. No reino visível, a forma mais perfeita são as “originais” dos corpos, vistas diretamente: possuem além da cor, volume, movimento etc. 

Já no reino cognoscível, as imagens (e certamente tudo capturado pelos sentidos) são meras representações do mundo exterior ao pensamento e outros processos psíquicos (da alma, da mente). As imagens na mente humana não trazem informações completas sobre uma pesquisa, estudo ou investigação em si - elas requerem raciocínio, intuição, entendimento etc. Por esta razão recorrer a elas é um processo mais imperfeito e indireto do que o pensamento, a reflexão, as ideias etc. As ideias (eidos) para Platão não eram meras opiniões, tratavam-se de algo mais importante e mais real do que as experiências sensoriais. Com a comparação de Sócrates neste diálogo, nota-se que as ideias não têm uma mediação. Neste quadro comparativo a ideia/ o eidos não é uma mera representação indireta das coisas que são - ela é o elemento mais direto e verdadeiro que relaciona-se com a psique

Muitas traduções do texto, indicam que o entendimento é o primeiro a resolver dúvidas e investigações, embora talvez fosse mais correto afirmar que as ideias do conceito platônico ocupem tal posição. O intelecto é o segundo, a fé a terceira e por último a especulação. Isto parece relacionar-se com a teoria tripartite da alma (psique) de Platão, pois as duas atividades mais elevadas são mais psíquicas, ou mentais. Interessante notar também, que antes destas explicações, Sócrates cita o exemplo do Sol relacionando-o com o bem. Isto indica que o eidos também relaciona-se com o bem como é mostrado no capítulo seguinte.

 

Observações sobre "Politéia" (A República); Livro 5

Continuo aqui os resumos e observações sobre a obra "A República" de Platão, onde o clássico autor fundador da filosofia ocidental mostra seu mestre Sócrates, discutindo com colegas sobre a cidade/ estado ideal, incluindo seu sistema político, a educação necessária etc. 

Livro 5: Sócrates propôs começar a falar dos governos, mas seus interlocutores pedem para que fale da criação dos filhos antes de entrar em tal assunto [449a-451a]. 

Sócrates - [452a-457d] (…) somos da opinião de que as fêmeas dos cães devem cooperar com os machos na atividade da guarda, da caça e em todo o resto, ou que devem permanecer no canil, incapazes de realizar outra coisa porque dão à luz e alimentam os filhotes, enquanto os machos trabalham e assumem toda a responsabilidade do rebanho? 

Glauco — Somos da opinião de que devem fazer tudo em comum, com a ressalva de que, para as tarefas que deles esperamos, consideremos as fêmeas mais fracas e os machos mais fortes. 

Sócrates — Mas é possível exigir de um animal os mesmos trabalhos exigidos de outro, se ele não tiver sido alimentado e criado da mesma forma? 

Glauco — É impossível, naturalmente. 

Sócrates — Logo, se exigimos das mulheres os mesmos serviços que dos homens, precisamos fornecer-lhes o mesmo tipo de educação. 

Glauco — Com certeza. 

Sócrates — Logo, se chegarmos à conclusão de que os dois sexos diferem entre si quanto à sua aptidão para determinada função, diremos que se deve atribuir essa função a um ou a outro; porém, se a diferença consistir apenas no fato de ser a fêmea a parir e não o macho, não admitiremos por isso como demonstrado que a mulher difere do homem na relação que nos ocupa e continuaremos a pensar que os guerreiros e as suas mulheres devem exercer as mesmas atividades. 

(...) Sócrates — Conseqüentemente, meu amigo, não há nenhuma atividade que conceme à administração da cidade que seja própria da mulher enquanto mulher ou do homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente distribuídas pelos dois sexos e é próprio da natureza que a mulher, assim como o homem, participe em todas as atividades, ainda que em todas seja mais fraca do que o homem. 

(...) Sócrates — Logo, existem mulheres que são aptas para a guerra e outras que não são. Ora, não escolhemos homens dessa natureza para tomá-los nossos guerreiros? 

Glauco — Sim, escolhemos. 

Sócrates— Portanto, a mulher e o homem possuem a mesma natureza no que concerne à sua aptidão para proteger a cidade,sem esquecer que a mulher é mais fraca e o homem mais forte. 

Glauco — Assim parece. 

Sócrates — Por consequência, temos de escolher mulheres semelhantes aos nossos guerreiros que viverão com eles e com eles protegerão a cidade, visto que são capazes disso e as suas naturezas são semelhantes. 

Glauco — Não há dúvida. 

Sócrates — Então, visto que já entramos no assunto, precisamos avançar até as dificuldades que a lei apresenta, após termos pedido aos gracejadores que renunciem ao seu papel e sejam sérios e lhes termos lembrado que não está distante o tempo em que os gregos acreditavam, como ainda acredita a maioria dos bárbaros, que a visão de um homem nu é um espetáculo vergonhoso e ridículo; e que, quando os exercícios de ginástica foram praticados pela primeira vez pelos cretenses, depois pelos lacedemônios, os cidadãos de então tiveram a oportunidade de zombar de tudo isso. Não crês? Glauco — Sim, creio. 

Sócrates — Mas quando lhes pareceu que era mais conveniente estar nu do que vestido ao praticar todos esses exercícios, o que lhes parecia ridículo na nudez foi eliminado pela razão, que acabava de descobrir onde estava o melhor. E isso provou como é insensato aquele que julga ridícula outra coisa que não seja o mal, que tenta excitar o riso tomando para objeto das suas zombarias outro espetáculo que não seja a loucura e a perversidade ou que busque com seriedade um objetivo de beleza que seja diferente do bem. 

 Os helênicos chamavam a antiga civilização minoica, de eteo cretenses, que significa verdadeiros cretenses. Os “eteocretenses” eram antecessores dos micênicos e da Hélade (“Grécia clássica”) e conforme as pinturas minoicas mostram, este povo utilizava menos roupas do que outras civilizações. Isto certamente deve ter uma relação com os cretenses citados por Sócrates. Nestas pinturas minoicas/ eteo cretenses as mulheres eram muito retratadas, aparentemente mais retratadas do que os homens, provavelmente indicando a proeminência da mulher na civilização minoica. A partir deste ponto do diálogo [457e-461e], após defender que a os exercícios físicos deveriam ser praticados por homem e mulheres enquanto nus, Sócrates propõe algo mais polêmico: Que todas as mulheres não pertenceriam a homem algum, assim como todas as crianças das classes dos guerreiros (que compõem o estado) seriam responsabilidade de todos homens e mulheres (da mesma classe), sem famílias tradicionais. Glauco responde que isto seria facilmente questionável no que se diz respeito à possibilidade e à utilidade. Sócrates então explica isto deveria ser assim porque eles (os integrantes do estado) compartilham tudo numa vida sem propriedade privada e que as uniões entre homens e mulheres e os filhos não seriam feitos ao acaso e sim sob regras sagradas realizadas como um casamento - o filósofo propõe limites na faixa etária ideal para tais uniões etc.

Sócrates— Os nossos cidadãos estarão unidos naquilo que considerarão o seu próprio interesse e, assim unidos, experimentarão alegrias e tristezas em perfeita comunhão. 

Glauco — Isso mesmo. 

Sócrates — A que atribuir efeitos tão admiráveis senão à constituição da nossa e, especialmente, à comunidade das mulheres e dos filhos estabelecida entre os guerreiros? 

Glauco — Não há dúvida de que esse será o principal motivo. 

Sócrates conclui que essa comunhão de interesses representa o maior bem para a cidade/ estado, isto porque comparou a cidade ao indivíduo (corpo e psiquê) na forma como este se comporta em relação a uma de suas partes, no que concerne ao prazer e à dor. Assim, o maior mal de uma cidade/ estado seria o individualismo, onde uns se regozijam em excesso enquanto outros sofrem profundamente.

Sócrates — Portanto, está provado que a causa do maior bem que pode acontecer na cidade é a comunidade das crianças e das mulheres dos guerreiros. 

Glauco — Com certeza. 

Sócrates — Convém acrescentar que estamos de acordo com o que estabelecemos anteriormente. Com efeito, dissemos que os nossos guerreiros não deviam possuir nem casas, nem terras, nem qualquer outra propriedade, mas que deviam receber seu sustento dos outros cidadãos, vivendo vida comum, se quiserem ser guerreiros autênticos. 

Glauco — Muito bem. 

Sócrates — Então, não tenho razão para afirmar que as nossas disposições anteriores, juntamente com as que acabamos de tomar, farão deles guerreiros ainda mais autênticos e os impedirão de dividir a cidade, o que aconteceria se cada um não chamasse de suas as mesmas coisas, mas a coisas diferentes? Se, morando separadamente, levassem para as suas respectivas causas tudo aquilo de que pudessem garantir a posse exclusiva? E se, tendo mulher e filhos diferentes, imaginassem alegrias e tristezas pessoais — ao passo que, com uma crença idêntica a respeito do que lhes pertence, terão todos o mesmo objetivo e experimentarão, tanto quanto possível, as mesmas alegrias e as mesmas tristezas? 

Glauco — É inegável 

[466e-471e] Na sequência Sócrates discute regras para os exércitos/ classe guerreira do estado. O filósofo propõe a preparação dos jovens para as "artes" bélicas, a punição para os guerreiros que agirem covardemente (demovendo-os para classe mercantil/ artesã) e traça a relação de proximidade entre as diferentes cidades helênicas (gregas), diferenciando-as de outros povos "bárbaros".

Apesar de prezarem pela igualdade dos sexos e pela construção de conhecimento (geralmente chamada de ciência por tradutores dos textos de Platão), a visão de classes dos filósofos apresentava aparentemente um teor segregador e até um pouco elitista para os padrões de hoje conforme pode ser visto no livro a seguir. Pois para os autores as possíveis fontes da ignorância não eram apenas a falta de uma educação digna: Poderia ser de nascença ou até mesmo de espírito (psiquê: mente / alma). Embora isso possa dar margem ao elitismo, as ideias de Platão (e de Sócrates) ainda eram muito avançadas para a “Grécia” do século 4 anterior à Cristo. Certamente chamar as ideias apresentadas na obra "A República" de elitista, é ignorar as ideias dominantes daquela época; uma leitura anacrônica da história.

Já o tratamento mais respeitoso proposto pelo filósofo, entre as diferentes cidades gregas, envolvia uma distinção entre conflitos/ atitudes bélicas "aceitáveis" e os inaceitáveis (hoje, os inaceitáveis seriam os crimes de guerra). Evitando as atitudes mais brutais, covardes e interesseiras nos conflitos entre gregos, trabalhava-se a eventual união das cidades em uma só identidade nacional/ cultural grega. 

[473e-474c] A seguir, o filósofo conclui seu pensamento explicado anteriormente no diálogo/ texto: Sócrates já havia discutido as origens da justiça, da injustiça e das guerras, também mensurado a importância de uma educação centrada na ética para os indivíduos que deveriam compor o governo da cidade (guerreiros/ guardas, legisladores/ governantes):

Sócrates — Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. Eis o que eu hesitava há muito em dizer, prevendo quanto estas palavras chocariam o senso comum. De fato, é difícil conceber que não haja felicidade possível de outra maneira, para o Estado e para os cidadãos. 

Glauco — Depois de semelhante discurso, deves esperar, Sócrates, ver muitas pessoas tirar, por assim dizer, as roupas e, nuas, apanhar a primeira arma que estiver à mão, investir contra ti com todas as suas forças. Se não repelires essas pessoas com as armas da razão e se não conseguires fugir-lhes, saberás à tua custa o que significa zombar.

Sócrates — Por isso, toma-se necessário, se quisermos escapar a esses assaltantes, distinguir quais são os filósofos aos quais nos referimos quando ousamos dizer que é necessário confiar-lhes o governo, para que, feita esta distinção, estejam preparados para defender-nos, mostrando que a uns convém por natureza consagrar-se à filosofia e governar na cidade e aos outros não se consagrarem à filosofia e obedecerem ao líder. 

[475b-476] Para definir a ciência (episteme) que os verdadeiros filósofos buscavam, Sócrates traça a diferença entre ignorância, opinião e conhecimento/ ciência. Ele e Glauco discutem se quem está desejoso (filotimos, ao pé da letra seria amigo da emoção, do sentimento, ou da paixão), deseja algo em sua totalidade e não somente uma parte de algo. Sócrates diz que o filósofo se entrega ao estudo (mathematos) com prazer e insaciavelmente, ao que Glauco responde que podem haver "filósofos" estranhos que amam mais os espetáculos do que o estudo/ as lições. Sócrates explica que estes não são verdadeiros filósofos pois encantam-se com belas vozes, cores e formas e obras feitas com tais elementos, sendo incapazes de discernir e amar a natureza do belo (kalon) em si. Glauco pergunta o que Sócrates entende sobre o verdadeiro filósofo e a beleza. Sócrates então diz que a beleza difere da feiura (asqueron), assim como a justiça difere da injustiça e o bom do mau, sendo ideias claramente distintas entre si (pois os exemplos são opostos entre si). Porém tais ideias são frequentemente apresentadas combinadas com ações, corpos e umas com as outras, se manifestando por toda parte, o que pode fazer com que se pareçam múltiplas. Assim, um indivíduo que se funda nas aparências poderia se irritar com filósofos como Sócrates e acusá-lo de não falar a verdade.

(477...) Sócrates — Muito bem! Vê o que diríamos a ele. Ou, antes, querias que o interrogássemos, garantindo-lhe que de modo nenhum cobiçamos os conhecimentos que possa ter, e que, ao contrário, gostaríamos de nos convencermos de que ele sabe alguma coisa? “Mas”, perguntar-lhe-íamos, “diz-me: aquele que sabe, sabe alguma coisa ou nada?’ Glauco, responde tu por ele. 

Glauco — Responderei que sabe alguma coisa. 

Sócrates — Que é conhecido ou que não é conhecido? 

Glauco — Que é. Com efeito, como saber o que não é conhecido (gnosthein)? 

Sócrates — Será então que temos, mesmo que almejemos a excelência, o seguinte fato: o que é em absoluto, absolutamente pode ser conhecido (é cognoscível)* e o que não é de modo nenhum, é absolutamente incognoscível (agnoston)?  

*duas traduções possíveis do termo grego "gnoston".

Glauco — Excelentemente.

Sócrates — Mas, se houver uma coisa que existe e não existe ao mesmo tempo, não ocupará o meio entre o que é verdadeiramente (elikrinós ontos) e nada é (midamí ontos)? 

Glauco — Ocupará esse meio. 

Sócrates — Logo, se o conhecimento (gnósis) incide sobre o ser e, necessariamente, o desconhecimento (agnósia) sobre o não-ser*, faz-se necessário descobrir, para o que ocupa o meio entre o ser e o não-ser, um intermediário entre a ciência (episteme) e a ignorância (agnóias), supondo-se que exista algo do gênero. 

Glauco — Sem dúvida. 

Sócrates — Mas algo do gênero é a opinião? 

Glauco — Com certeza! 

Sócrates — É uma potência (dynamin) distinta da ciência ou idêntica a ela? 

Glauco — É uma potência distinta. 

Sócrates — Então, está claro que distinguimos a opinião da ciência. 

Glauco — Sim. 

Sócrates — Portanto, cada uma tem, por natureza, um objetivo diferente. 

Glauco — Necessariamente. 

 *Aqui fica claro que qualquer construção de conhecimento (seja ciência, filosofia etc) descreve e trabalha o que existe. Assim, por exemplo, podemos afirmar "sei que tal fenômeno (ou objeto) existe." Então quando perguntarem "como eu sei", respondo explicando minha experiência. Porém o que não foi experimentado não é passível de ser expresso pela frase "eu sei"; Por exemplo a frase "eu sei que não existe", não faz sentido, pois seria correto afirmar saber somente o que experimentei. Se investigamos algo e nada detectamos, a descrição correta da conclusão de tal estudo seria afirmar: "Não sei se tal fenômeno existe" ou "Investiguei tal fenômeno e nada detectei" e então para a seguir, poder explicar como foi feito o estudo/ a pesquisa sobre tal assunto. Também é notável que, ao fundar a filosofia ocidental estudando outros pensadores (Parmênides, Protágoras, Heráclito, Pitágoras, Anaxágoras etc), Platão indica que não há neutralidade na epistemologia (na construção de conhecimento) - ou o estudioso busca a melhor maneira das coisas serem (a ontologia apresentada em Fedon), baseando-se no bem como valor universal (kalos, a ideia do bem e do belo, que é una), ou ele caí em argumentos retóricos que são mera opinião. Este tipo de argumento que ignora o valor universal (portanto ignora a ética) geralmente era usado pelos sofistas, mestres da persuação que almejavam ganhos particulares ao invés de construir conhecimento.

Sócrates — O objetivo da ciência não é conhecer o que é, exatamente tal como é? 

Glauco — Sim. 

Sócrates — E o propósito da opinião não é julgar pelas aparências? 

Glauco — Sim. 

Sócrates — Mas a opinião conhece aquilo que a ciência conhece? Uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo objetivo da ciência e da opinião, ou isso é impossível? 

Glauco — É impossível. Com efeito… ...o objetivo da ciência não pode ser o mesmo da opinião.

Sócrates — Mas a opinião pode incidir sobre o não-ser? Ou é impossível saber por ela o que não é? Raciocina: aquele que opina, opina sobre alguma coisa ou é possível opinar e não opinar sobre nada? 

Glauco — E impossível.

Sócrates — E o não ser alguma coisa? Não é, antes, uma negação da coisa? 

Glauco — Com certeza.

Sócrates— Por isso temos, necessariamente, de relacionar o ser à ciência e o não-ser, à ignorância. 

Glauco — E com razão. 

Sócrates — Em vista disso, o objetivo da opinião não é nem o ser nem o não-ser. 

Glauco — Correto. 

Sócrates — Conseqüentemente, a opinião não é nem ciência nem ignorância.

Sócrates — Então, julgas a opinião menos clara que a ciência e menos obscura que a ignorância?

Glauco — Com certeza.

Sócrates— Logo, a opinião é algo intermediário entre a ciência e a ignorância? 

Glauco — Exatamente. 

Sócrates identifica a opinião entre as coisas que são e que não são. No trecho a seguir (479a até o 480a)  ele busca o objetivo da opinião que “situa-se nesta condição intermediária”, voltando ao exemplo do “homem bom” (ungido pelo divino; possivelmente o termo foi utilizado com algum sarcasmo) que não crê na beleza em si mesma, nem na idéia do belo eternamente imutável (possivelmente o/ um valor universal), mas reconhece apenas a multidão das coisas belas, esse apreciador de espetáculos que não suporta que se afirme que o belo é uno, assim como o justo e as outras realidades semelhantes. 

Tal exemplo dado por Sócrates aos seus interlocutores, pode ser qualquer indivíduo que emite opiniões destoantes da verdade e de seus conceitos mais elevados, como o Uno e o(s) valor(es) universal (“kalos”, o bem e belo). Alegar que o belo e o bom são coisas relativas é um discurso relativista, que nega o conceito de verdade, fomentando separatividade e indiferença entre as pessoas. Tal tipo de pessoa, "apreciadora de múltiplos espetáculos", não é capaz de aprender filosofia, então não deveria assumir poder algum no estado nem deveria exercer influência sobre qualquer forma de governo.

Sócrates — Afirmaremos, pois, que as pessoas* que enxergam muitas coisas belas (kalon), mas não apreendem o próprio belo (kala) e não podem seguir aquele que gostaria de guiá-las nessa contemplação, que enxergam muitas coisas justas sem verem a própria justiça, e assim por diante, essas pessoas, diremos nós, opinam sobre tudo, mas não sabem nada a respeito das coisas sobre as quais opinam.

*Nas traduções de Carlos Alberto Nunes e de Pietro Nassetti (Ed. Martin Claret) a tradução do termo grego theomenóus (divinizado, ou deificado) não parece clara. Talvez foi considerado um adjetivo desnecessário e substituído pela palavra pessoas.

Glauco — Necessariamente. 

Sócrates — Mas que diremos daquelas pessoas que enxergam as coisas em si mesmas, na sua essência imutável? Que elas possuem conhecimentos, e não opiniões, não é verdade? 

Glauco — Necessariamente, também. 

Sócrates — Não diremos, da mesma forma, que amam as coisas que são o objeto da ciência, ao passo que os outros sentem isso apenas por aquelas que são o objeto da opinião? Não te recordas do que dizíamos a respeito destes últimos que amam e admiram as belas vozes, as cores belas e as outras coisas semelhantes, mas não admitem que o belo em si mesmo seja uma realidade? 

Glauco — Recordo-me. 

Sócrates — Seremos injustos com eles se os denominarmos amantes da opinião em vez de amantes da filosofia? Ficaram Muito irritados conosco se os tratarmos assim? 

Glauco — Não, se acreditarem em mim, pois não é lícito irritar-se com a verdade. 

Sócrates — Então, denominaremos filósofos apenas aqueles que em tudo se prendem à realidade? 

Glauco — Sem sombra de dúvida.

Enfim, a opinião é comum entre os humanos, mas não é sinônimo de verdade, como Platão mostrará no capítulo seguinte. O amigo da opinião (filodoxia), ou seja, o que gosta de opinar/ que defende sua própria opinião ante os fatos ou ante o desconhecido, não aprende as coisas verdadeiras. Este não é filósofo, pois prioriza uma opinião ante a verdade. Aquele que ama a sabedoria, vê o bem como algo uno e verdadeiramente belo, vê como um valor universal, certamente o mais sublime valor universal. Somando o conceito do bem apresentado pelo filósofo neste livro com a ênfase na educação e a ausência de propriedade privada entre os guardiões e filósofos apresentadas nos livros anteriores, começa a ficar evidente que a filosofia é o exercício racional que une o sentimento voltado à ética, ao valor universal que deve ser despertado/ inferido pelo ser humano e que serve o coletivo. 

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...