No livro anterior (5) da República foi possível concluir que o objetivo da "ciência" e dos estudos (episteme e mathematos) realizadas pelos filósofos é convergir estes com a política, que por sua vez é a gestão, as normas e o convívio dos cidadãos das pólis/ do estado. Pelo exemplo da teoria tripartite da alma (psiquê) mostrado em comparação com as 3 classes da sociedade no livro anterior, nota-se que o filósofo é aquele que corrigiu seu desejo (tornando-o "orthos eros") abandonando a priorização da busca do mero saciar de necessidades básicas e de prazeres sensoriais (típica da parte inferior da psiquê). Isto é feito por escolha, por intenção do indivíduo e não por imposição: o verdadeiro filósofo uniu seu sentimento/ paixão (thymous e palavras oriundas deste termo, a parte intermediária da psiquê apresentada por Platão) com a parte mais elevada de sua psiquê, que detém o autocontrole, a inteligência/ razão que busca a ideia do bem e do belo (kalos, o valor universal, imutável).
Livro VI:
[484] Sócrates — O que vem logo a seguir? Como estabelecemos que são filósofos aqueles que podem chegar ao conhecimento do imutável ao passo que os que não podem, mas erram na multiplicidade dos objetos variáveis, não são filósofos, cumpramos ver a quem escolheríamos para governar o Estado.
Glauco — Qual a medida mais sábia que devemos tomar?
Sócrates — Devemos escolher para magistrados aqueles que nos parecerem capazes de zelar pelas leis e as instituições da cidade.
[485] Sócrates — Em primeiro lugar, admitamos, no que concerne à natureza do filósofo, que ele deseja sempre o estudo (mathematos) que possa dar-lhe a conhecer essa essência que existe sempre e que não se desvirtua (ilude, delira) por ação da geração e da corrupção.
Glauco — Sim, admitamo-lo.
Sócrates — E que amam a essência* na totalidade, não renunciando a nenhuma de suas partes, pequena ou grande, exaltada ou desprezada, da mesma forma que os ambiciosos e os amantes a que nos referimos.
*Esta é a tradução de Pietro Nassetti; Carlos Alberto Nunes traduziu como "ciência" embora não haja palavras equivalente a isto no texto (episteme, gnosis ou gnosthein etc)
Glauco — Tens razão.
Sócrates — Considera agora se não é necessário que homens que devem ser como acabamos de dizer possuam, além disso, uma outra qualidade.
Glauco — Qual?
Sócrates— A sinceridade, unia tendência natural para não admitirem voluntariamente a mentira, mas odiá-la e amar a verdade.
Glauco — É importante.
Sócrates — Não apenas é importante, meu amigo, mas é forçoso que aquele que ama alguém ame tudo o que se assemelha e liga ao objeto do seu amor.
[487 b-e] Adimanto interfere dizendo que as pessoas podem ir se desorientando pouco a pouco em cada questão, de forma que no fim da discussão entendam praticamente tudo errado. E que por isso muitos dos filósofos se tornam extravagantes ou até perversos, considerados inúteis aos governos das cidades.
[488] Sócrates responde dando um exemplo que pode ocorrer num navio: Se um navio tiver um comandante medíocre que chegou ao seu posto sem grandes competências, este pode se deixar levar por marinheiros que não entendem de navegação. Os marinheiros então poderão disputar entre si ou mesmo forçar o comandante à uma ação desastrosa para a embarcação e todos que estão nela. E continua:
“...Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro piloto, nem sequer suspeitam de que deve estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar, com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação, não pensam que seja possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte da pilotagem.”
Sócrates e Adimanto então começam a discutir as possíveis causas da corrupção da natureza filosófica.
[491 e] Sócrates — Podemos também afirmar, Adimanto, que as almas (psiquês) mais bem-dotadas, influenciadas por uma má educação, se tornam más no mais alto grau. Ou julgas que os grandes crimes e a pior perversidade provêm de uma medíocre e não de uma excelente natureza? E poderá uma alma vulgar* realizar grandes coisas, seja para o bem, seja para o mal?
Adimanto — Não. Penso igual a ti.
* A psiquê vulgar certamente se refere à pessoa que cresce sem recursos, principalmente no que se refere à educação, ou seja, sem acesso à educação.
Na sequência os interlocutores discutem como os sofistas sistematizaram meios de influenciar as pessoas sem se importar com o que é justo, sem diferenciar o belo do feio etc. Sócrates cita que aqueles que recebiam a "educação" dos sofistas eram submersos e arrastados por censuras e louvores exagerados, ou seja, pela oratória e pela retórica, táticas de persuasão. Os sofistas então são entendidos como estudiosos falsos (corruptos) pois agiam como mercenários especializados em provocar e amansar pessoas através de abordagens superficiais mas geralmente chamativas. Assim estes sofistas modelavam multidões e buscavam castigar aqueles que desmentiam seus discursos, seja com multas ou com pena de morte.
Sócrates — Depois de termos compreendido tudo isto, diz-me: é possível que a turba admita e conceba que o belo em si mesmo existe, uno e distinto da multidão das coisas belas e que a essência das coisas é simples, uma e indivisível?
Adimanto — De forma alguma.
Sócrates — Por conseguinte, é impossível que o povo seja filósofo.
Adimanto — Impossível.
Sócrates — É impossível, também, que esses sofistas que se misturam com o povo, vendidos a ele, deixem de lisonjear-lhe o gosto.
Adimanto — É claro.
Sócrates — Percebes assim que eu tinha razão quando afirma que os elementos que compõem a temperamento filosófico de uma pessoa, ao serem deteriorados por uma má educação, fazem essa pessoa afastar-se da sua vocação, tanto quanto as riquezas.
Adimanto — Reconheço que tinha razão.
Sócrates — Assim é, meu grande amigo, em toda a sua extensão, a corrupção que perverte as melhores naturezas, aliás bem raras, como observamos. É de homens assim que saem não apenas os que causam os maiores males às cidades e aos cidadãos, mas também os que lhes proporcionam o maior bem quando seguem o caminho certo; mas um temperamento medíocre nunca faz nada de grande a favor ou em detrimento de alguém, mero cidadão ou cidade.
[496 b-e] Sócrates — Então, Adimanto, é por demais baixo o número dos que podem lidar dignamente com a filosofia: talvez alguns nobres espíritos aprimorados por uma boa educação, isoladas do mundo, que, afastados de quaisquer influências corruptoras, permanecem fiéis à sua natureza e vocação; ou alguma grande alma, nascida numa pequena cidade, que despreze os cargos públicos; talvez ainda algum raro e feliz caráter que abandone, para se entregar à filosofia, outra profissão que considere inferior. Outras, enfim, parecem contidos pelo mesmo freio que mantém preso à filosofia a nosso amigo Teages. Embora tudo conspire para afastá-lo da filosofia, as enfermidades que o incapacitam para a vida política o obrigam a filosofar. Quanto a mim, não convém que eu fale do meu daemon (espírito, guia) familiar e pressaga que me adverte interiormente, pois é duvidosa que se possa encontrar outro exemplo no passado. Mas, entre este pequeno grupo, aqueles que se tornaram filósofas e provaram as delícias proporcionadas pela posse da sabedoria, convencidas da insensatez do restante dos homens,aqueles que sabem que não possuem aliados com quem passam cantar para ir em socorro da justiça sem se perder, mas que, ao contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes, recusando-se a participar das injustiças dos outros e incapaz de resistir sozinho a esses seres selvagens, pereceriam antes de ter servido a pátria e os amigos, inúteis a si mesmos e aos outros. Levados por essas reflexões, ficam inativos e ocupam-se dos seus negócios; semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto a vento ergue turbilhões de pó e chuva, fica feliz se encontra um muro atrás do qual possa se abrigar, os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro isentos de injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sorridentes e tranqüilos e com a consola de uma bela esperança.
Adimanto — Na verdade, não sairão deste mundo sem ter realizado grandes obras.
O diálogo apresentado do livro 1 ao 6 da "República" indica que poucos indivíduos podem ser filósofos porque para isso precisam deixar em segundo plano os prazeres sensoriais e os gostos particulares, unindo seus sentimentos à razão e à busca pela idéia "una" que não é iludida pela geração, pelas distorções e corrupções. Esta idéia é o bem, a verdadeira beleza (kalos), e por Una, devemos entender imutável e válida para todos, ou seja, universal. Logicamente não existe bem universal que seja meramente individual ou particular: ele é coletivo, por isso Platão explica (no livro 1 desta obra) que a finalidade de todas as profissões (tekhnes) e de toda episteme é servir. O diálogo mostra que a única "profissão" que destoa disso é a do mercenário: este usa/ prioriza "a técnica de ganhar dinheiro", de lucrar.
A "técnica" ou conhecimento (episteme) do filósofo assim apresenta-se centrada no ser humano, especialmente em sua psiquê e na ética (justiça, moderação, coragem, beleza psíquica emocional e bem universal) e por causa destes pré-requisitos poucos podem ser governantes. Ao delinear tais exigências para a filosofia e para a política, estes são alguns dos argumentos de Platão/ Sócrates que podem parecer "elitistas". Porém se considerarmos que os governantes filósofos realmente prezem pelo bem universal/ coletivo, servindo à toda cidade/ estado e regulando a classe mercantil para que esta não tome o poder, não há nada de elitista nisso. O elitismo surge quando grupos da classe que prioriza riquezas materiais e prazeres sensoriais tomam o poder, seja de uma cidade, estado ou nação maior.
Além da dificuldade de se encontrar pessoas que priorizem a ética ante os demais assuntos, para se começar a implantar as ideias de Platão certamente outro desafio seria colocar em prática uma educação centrada nos saberes humanos e na ética como o autor propôs.
[498-501] Na sequência, Sócrates critica a educação dos jovens de sua época, explicando que eles mal chegam a aprender a dialética, que para o filósofo envolve a arte da maiêutica, o diálogo que conduz o despertar a virtude, a noção do bem, enfim a ética e seu valor universal. Desta forma, enquanto os jovens filósofos não receberem uma educação filosófica/ ética e enquanto as classes dominantes na política e nos tribunais estiverem envolvidas com disputas mesquinhas e invejosas, não haverá governo nem estado perfeito. Esta classe formada pelos governadores e pelos sofistas desprezavam as propostas dos verdadeiros filósofos. Sócrates diz para Adimanto não acusar a multidão pela dificuldade da verdadeira filosofia ser propagada, pois esta é corrompida por pessoas que se consideram filósofos, educadores ou construtores de conhecimento, mas que na verdade agem como os interesseiros mencionados ao longo do diálogo.
Os verdadeiros filósofos, ou seja, os indivíduos que se pautam pelo bem/ beleza, temperança, justiça e demais virtudes (de valor universal, ético) escreveriam leis justas, adaptando-as conforme surgisse necessidades etc.
[505] Sócrates: (...) Na verdade, ouviste-me falar várias vezes dessa ciência; agora, porém, ou te esqueceste ou pensas em me causar novos embaraços. E inclina-me para esta última opinião, pois me ouviste muitas vezes afirmar que a idéia do bem é o mais alto dos conhecimentos, aquela de que a justiça e as outras virtudes tiram a sua utilidade e as suas vantagens. Não ignoras, agora, que é isto o que vai dizer, acrescentando que não conhecemos suficientemente esta idéia. Ora, se não a conhecemos, embora conheçamos o melhor possível todo o resto, sabes que estes conhecimentos não nos valerão de nada sem ela, da mesma forma que a passe de um objeto sem a do bem. Com efeito, julgas vantajoso possuir muitas coisas, se não forem boas, ou conhecer tudo, com exceção do bem, e não conhecer nada de belo nem de bom?
Adimanto — Não, por Zeus, não acho.
O conhecimento sem o bem não traz vantagens reais, pois acaba sendo usado para encobrir mentiras ou para fins egoístas (como citado nos exemplos anteriores dos sofistas, dos governantes corruptos entre outros). Se todas as virtudes são oriundas do bem, qualquer conhecimento sem o bem é incompleto e não traz a verdade e o que é mais belo à tona. Na sequência, Sócrates compara o bem com o Sol.
[507-508] Sócrates — A visão pode estar situada nos olhos, e estes podem ser usados para enxergar; a cor, da mesma maneira, pode estar nos objetos. Contudo, se a isso não for acrescentado um terceiro elemento, a vista nada verá e as cores não serão percebidas.
Adimanto — De que elemento estás falando?
Sócrates— Aquele que denominas luz.
Adimanto — Tens razão.
Sócrates — Logo, o sentido da visão e a faculdade de serviço estão unidos por um laço incomparavelmente mais precioso do que aquele que estabelece as outras uniões, desde que a luz não seja uma coisa desprezível.
Adimanto— De maneira nenhuma ela é desprezível.
Sócrates — Pois é o Sol que eu chamo de filho do bem, que o bem engendrou à sua própria semelhança. Aquilo que o bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e aos seus objetos, o Sol o é no campo da visível, em relação à vista e aos seus objetos.
(...) Sócrates — Creio que admitirás que o Sol fornece às coisas visíveis não apenas a capacidade de serem vistas, mas também a criação, o crescimento e a nutrição, apesar de ele mesmo não ser criação.
Adimanto — Efetivamente, não o é.
Sócrates— Admite também que as coisas cognoscíveis não recebem do bem apenas a sua inteligibilidade, mas também retiram dele a sua existência e a sua essência, apesar de o bem não ser a essência, mas estar muita acima desta em dignidade e poder.
Assim como o Sol permite que a visão funcione e com que a vida exista na Terra, o Bem permite que os processos mentais alcançáveis (conhecimentos e sentimentos) sejam reconhecidos e sustenta tais coisas. O Bem então seria a verdade por trás de todas as coisas de modo similar (ou igual) à Deus.
(...) Sócrates — Considera, então, que existem dois reis, reinando um sobre o campo do cognoscível e o outro, do visível: não diga do céu, com receio de que penses que brinco com as palavras. Mas consegues imaginar estes dois gêneros, o visível e o cognoscível?
Glauco — Consigo.
Sócrates — Agora, pega uma linha cortada em dois segmentos desiguais, representando um o gênero visível, o outro o cognoscível, e corta de novo cada segmento respeitando a mesma proporção; terás então, classificando as divisões obtidas conforme o seu grau relativo de clareza ou de obscuridade, no mundo visível, um primeiro segmento, a das imagens. Denomino imagens primeiramente às sombras, depois aos reflexos que se vêem nas águas ou na superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e a todas as representações semelhantes. Compreendes?
Glauco — Lógico que sim.
Sócrates — Considera agora que o segundo segmento corresponde aos objetos que essas imagens representam, ou seja, os animais que nos cercam, as plantas e todas as obras de arte.
Glauco — Estou considerando.
Sócrates — Concordas também em dizer que, no que concerne à verdade e ao seu contrário, a divisão foi feita de tal modo que a imagem está para o objeto que reproduz como a opinião está para a ciência?
Glauco — Concordo plenamente.
Sócrates — Vê agora como deve ser dividido o mundo cognoscível.
Glauco — Como?
Sócrates — Na primeira parte desse segmento, a alma (psique), utilizando as imagens dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses, seguindo um caminho que a leva, não a um princípio, mas a uma conclusão. No segundo segmento, a alma parte da hipótese para chegar ao princípio absoluto, sem lançar mão das imagens, como no caso anterior, e desenvolve a sua análise servindo-se unicamente das idéias.
No “reino visível” (que é um reino sensorial) as imagens são meras representações bidimensionais (indiretas) de corpos tridimensionais. A sombra sendo a mais rústica (uma mera silhueta sem cor) é a mais imprecisa/ imperfeita do reino visível, seguida pelas imagens refletidas em superfícies lisas e reluzentes, que possuem cores. No reino visível, a forma mais perfeita são as “originais” dos corpos, vistas diretamente: possuem além da cor, volume, movimento etc.
Já no reino cognoscível, as imagens (e certamente tudo capturado pelos sentidos) são meras representações do mundo exterior ao pensamento e outros processos psíquicos (da alma, da mente). As imagens na mente humana não trazem informações completas sobre uma pesquisa, estudo ou investigação em si - elas requerem raciocínio, intuição, entendimento etc. Por esta razão recorrer a elas é um processo mais imperfeito e indireto do que o pensamento, a reflexão, as ideias etc. As ideias (eidos) para Platão não eram meras opiniões, tratavam-se de algo mais importante e mais real do que as experiências sensoriais. Com a comparação de Sócrates neste diálogo, nota-se que as ideias não têm uma mediação. Neste quadro comparativo a ideia/ o eidos não é uma mera representação indireta das coisas que são - ela é o elemento mais direto e verdadeiro que relaciona-se com a psique.
Muitas traduções do texto, indicam que o entendimento é o primeiro a resolver dúvidas e investigações, embora talvez fosse mais correto afirmar que as ideias do conceito platônico ocupem tal posição. O intelecto é o segundo, a fé a terceira e por último a especulação. Isto parece relacionar-se com a teoria tripartite da alma (psique) de Platão, pois as duas atividades mais elevadas são mais psíquicas, ou mentais. Interessante notar também, que antes destas explicações, Sócrates cita o exemplo do Sol relacionando-o com o bem. Isto indica que o eidos também relaciona-se com o bem como é mostrado no capítulo seguinte.
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