Esta é a continuação da síntese e observações sobre a obra "A República" de Platão;
Após falar de um sistema de ensino que teria como base formar “novos cidadãos” íntegros onde os líderes (homens e mulheres filósofos) seriam educados desde cedo, começando com música e ginástica, apartados de sua cidade para evitar costumes locais, Sócrates pergunta à Glauco em qual ponto do diálogo eles se encontravam anteriormente.
Glauco então diz: (...) Depois de teres esgotado o que diz respeito ao Estado, dizias quase o mesmo que agora, afirmando que achavas bom o Estado que acabavas de descrever e o homem que lhe era semelhante, e isso, ao que tudo indica, apesar de teres a capacidade de nos falar de um Estado e de um homem ainda mais belos. No entanto, tu acrescentaste que as outras formas de governo são falhas, uma vez que aquela é boa. Dessas outras formas, ao que me lembro, afirmaste haver quatro espécies dignas de atenção e das quais importava ver os defeitos, assim como os dos homens que lhes são semelhantes, com o fito de que, depois de tê-los analisado e reconhecido qual o melhor e qual o pior, estivéssemos aptos a julgar se o melhor é o mais feliz, e o pior, o mais infeliz, ou se não é assim. Então, como eu indaguei quais seriam as quatro formas de governo, Polemarco e Adimanto interromperam-nos, e aí iniciaste a discussão que nos conduziu até este ponto.
Sócrates: Lembras-te disso com muita clareza.
(...) Glauco: Desejo saber quais são os quatro governos de que falavas.
[544] Sócrates: É fácil satisfazer-te, pois que os governos a que me refiro são conhecidos. O primeiro e muito elogiado é o de Creta e da Lacedemônia; o segundo, que só se louva em segundo lugar, chama-se oligarquia. Trata-se de um governo repleto de vícios vários. Oposto a este vem, em seguida, a democracia. Por fim, vem a soberba tirania, contrária a todos os outros e que é a quarta e a última doença do Estado. Conheces acaso outro governo que se possa ordenar numa classe bem distinta? As monarquias hereditárias, os principados venais e governos que se lhes assemelham não são, em dada medida, senão formas intermediárias e encontram-se tanto entre os bárbaros como entre os gregos.
Glauco — Realmente dizem que os há muitos e estranhos.
Sócrates — Sabes que há tantas espécies de caráter como formas de governo? Ou pensas que essas formas provêm dos carvalhos e da rocha, e não dos costumes dos cidadãos, que arrastam todo o resto para o lado para que pendem?
Glauco — Não podem originar-se senão daí.
Sócrates — Portanto, se existem cinco espécies de cidades, o caráter da alma, nos particulares*, será, igualmente, em número de cinco.
(*a palavra no texto de Platão é "idioton", que significava privado. Entende-se que ainda não era utilizada de forma pejorativa e que só com o passar dos anos, o termo passou a ser utilizado para indivíduo ignorante, sem estudo e/ ou que não participa da vida pública.)
Interessante notar que até aqui, o texto de Platão menciona um 1º tipo de governo que seria elogiado e aparentemente funcionou tanto em Creta como na Lacedemônia (a menos que ele estivesse dizendo que são 2 tipos de governos diferentes entre si, o que os tradutores parecem rejeitar). O 2º tipo de governo seria a oligarquia, onde Platão já identifica muitos problemas/ vícios. O 3º, a democracia, e o 4º, a tirania, seriam respectivamente piores.
Em seguida os tradutores do texto indicam que a aristocracia seria o governo ideal mencionado pelo autor, porém isto contradiz a obra "O Político", onde este tipo de governo não seria o ideal de Platão, e sim, uma mera oligarquia mais organizada/ com leis, e inferior ao "governo do(s) filósofo(s)".
Sócrates: Isto posto, deveremos revistar os caracteres inferiores: Em primeiro lugar, o governo que ama a vitória e a honra, baseado no exemplo da Lacedemônia; em segundo o oligárquico, e posteriormente o democrático e o tirânico? Depois de reconhecermos qual o mais injusto, oporemos este ao mais justo e poderemos aí terminar o nosso exame e ver como a pura justiça e a pura injustiça agem, respectivamente, no que diz respeito à felicidade ou à infelicidade do indivíduo (...)
Neste trecho do diálogo, Sócrates cita somente o governo da Lacedemônia como o governo que ama a honra e a vitória (entende-se a "timocracia"), sem mencionar o de Creta. Isto poderia indicar que os governos de Creta e a Lacedemônia realmente eram diferentes entre si. Poderia ser o governo cretense, o modelo ideal dos filósofos?
Sócrates então teoriza como seria a decadência da liderança de um estado/ nação/ sociedade ideal (o governo dos filósofos, seja ele o cretense ou, a "aristocracia" ao qual o autor voltaria atrás em "O Político"): Supostamente inspirado pela musa, o filósofo diz que tal governo não duraria para sempre, pois seria difícil manter a prática da educação ideal mencionada anteriormente no diálogo (pautada nas artes musicais, na matemática, na geometria, na astronomia/ astrologia e na filosofia/ ética). Com isso haveria uma deficiência na formação de filósofos e o governo acabaria decaindo em uma timocracia quando a classe de governantes se reproduzisse sem respeitar ciclos cósmicos e uma lógica matemática... Nestes momentos nasceriam uma prole que desejaria coisas das outras classes e se misturariam com estas buscando satisfação própria / individualista.
Esta teoria certamente influenciou gerações, pois séculos depois de Platão escrever suas obras, até a renascença, estudiosos se basearam nos filósofos gregos ao citarem a relação da música com a astronomia e a teoria da música das esferas. Apesar de relacionar astronomia com espiritualidade (afinal a astrologia era unida à tal ciência) também vale lembrar que Platão combate o charlatanismo supersticioso nos livros 2 e 3 da "República".
A timocracia então ainda reteria algumas das boas características estruturais do governo ideal dos filósofos, como por exemplo a vida compartilhada das classes guardiãs/ guerreiras/ governantes. Porém carecendo da filosofia (do amor pelo valor universal do bem, da justiça ...) , começaria a priorizar a honra, os títulos e as campanhas bélicas. Assim, com a timocracia, se iniciariam as enfermidades do estado e falando dos conflitos surgidos deste processo, Sócrates começa uma observação crítica do surgimento dos tipos de governos seguintes e de seus indivíduos (idioton) dominantes: a oligarquia (aparentemente uma plutocracia) e os oligarcas:
[548] Sócrates — Tais homens serão cobiçosos de riquezas, com os cidadãos dos Estados oligárquicos; adorarão com paixão, às ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados, nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem muito bem lhes apetecer.
Glauco — Eis aí uma grande verdade.
Sócrates— Serão apegados às suas riquezas porque as veneram e não as possuem às claras, e, por outro lado, gastadores com os bens dos outros, para satisfazerem as suas paixões. Se Fartarão dos prazeres em segredo e, como crianças aos olhares do pai, fugirão aos olhares da lei, em conseqüência de uma educação não baseada na persuasão, mas na violência, em que se desprezou a verdadeira Musa, a da dialética e da filosofia, e se deu mais importância à ginástica do que à música.
[... 550] Adimanto — Que espécie de governo entendes por oligarquia?
Sócrates — O governo fundamentado no
recenseamento da propriedade, em que os ricos mandam e onde o pobre não
participa no poder.
(...) Sócrates — A partir disso, a sua avidez pelo ganho progride rapidamente e quanto mais amor têm pela riqueza menos o têm pela virtude. Em verdade, o que há de diferente entre a riqueza e a virtude não é que, colocadas cada uma num prato de uma balança, se inclinam sempre uma direções contrárias?
Adimanto — Com toda certeza.
Sócrates — Concluo, então, que, quando a riqueza e os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são menos estimados.
[552-557] Sócrates — A liberdade que a cada um é dada de dispor de todos os seus bens ou de adquirir os dos outros, e, depois,de tudo se desfazer, permanecer na cidade sem exercer nenhuma função, nem de comerciante, nem de artesão, nem de cavaleiro, nem de soldado, sem outro título a não ser o de pobre e indigente.
Adimanto — É verdade, a oligarquia é a primeira a ser atingida por esse mal.
Sócrates — Não se pode evitar esta desordem nos governos deste gênero; do contrário, uns não seriam excessivamente ricos e outros não estariam na mais completa miséria.
Sócrates— Pois bem. Não é por efeito da insaciável cobiça do indivíduo de possuir os bens e de tornar-se tão rico quanto possível que se passa da oligarquia à democracia?
Adimanto — Como dizes?
Sócrates — Os chefes, neste regime, devem a sua autoridade aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusar-se-ão, suponho, a fazer uma lei para reprimir a libertinagem dos jovens e a dissipação de seu patrimônio, visto que têm a intenção de comprá-lo ou de o conseguirem pela usura, para se tornarem ainda mais ricos e poderosos.
[557-564] Aqui Sócrates sugere que a democracia surge de um sistema onde os ricos dominavam a sociedade (oligarquia). Os ricos que governam/ mandam na sociedade preferem alugar seu dinheiro (usura é um tipo de empréstimo com juros) para aqueles que gastam seu patrimônio ao invés de pensar em leis para evitar gastanças com luxo e prazeres individualistas. Assim os oligarcas prejudicam os indivíduos com temperança que buscam gastar o dinheiro com melhorias das cidades e favorecem a libertinagem e os gananciosos. Espalhando-se a usura, os mais ricos enriquecem cobrando seus crescentes juros, aumentando o número de endividados, e consequentemente, o número de mendigos. Ele segue dizendo que era necessário aplicar uma lei que fizesse aquele que “empresta” o dinheiro, corresse o risco de perder o dinheiro. Pois com a “usura” cobrava-se juros de quem tem menos dinheiro e era mantido um ciclo vicioso que empobrecia cada vez mais gente. Por fim, quando a oligarquia gerava a revolta dos mais pobres, surgia a democracia.
Após expulsar a maioria dos ricos, deixando o nível de riquezas de toda variedade das pessoas que formam a sociedade em níveis mais parecidos entre si, ou seja, deixando em um nível menos desigual, a democracia seria o sistema com maior liberdade. Sendo o sistema com maior liberdade, possivelmente a democracia seria o momento ideal de propor uma constituição ou uma nova forma de governo.
(...) Sócrates — O mesmo mal que, tendo se desenvolvido na oligarquia, causou a sua ruína, desenvolve-se aqui com mais amplitude e força, devido ao desregramento geral, e reduz a democracia à escravidão...
O autor vê o desregramento, ou seja, a liberdade sem responsabilidade, como uma das características básicas da democracia e isso acabaria dando espaço aos atritos entre diferentes crenças, classes e raças. Com os governantes se tornando fracos, alguns governados que agissem como governantes seriam louvados e governantes que agissem como governados seriam defendidos. (similar ao discurso “menos estado, menos impostos”, esses “governados” venerados devem ser pessoas que adquiriram algum poder, possivelmente poder financeiro, mas podendo ser outro também, como o poder religioso, por exemplo). A partir do desregramento e dos atritos surgiria a necessidade de uma centralização do poder, ou seja, a tirania.
[565-569] Sócrates é bastante crítico em relação à tirania e ao tirano. Ele se refere a um sistema centralizador (possivelmente absolutista) praticamente descrevendo o tirano como um imperador, pois é um sistema onde a liberdade é muito diminuída, ou mesmo perdida, e o tirano elimina vários de seus opositores enquanto pode.
Por fim, o filósofo demonstrou as características que se tornam evidentes em tiranias e "timocracias" típicas dos indivíduos belicosos como soldados, generais (etc) e as que se propagam em oligarquias e democracias dominadas pelos indivíduos mais negociantes e mercantis, como comerciantes e artesãos. Esses tipos de indivíduos (de particulares, idioton) se mostraram incapazes de governar a cidade/ estado com justiça de acordo com Platão. Talvez a partir de discussões políticas como as levantadas pelo autor, o termo idiotes e os correlacionados a este, passaram a ser gradualmente utilizados como ofensa. Vale lembrar que o filósofo mostrado por Platão, não é voltado à vida particular, pois tem uma episteme (conhecimento) voltado para o bem de sua alma (psiquê) e para o bem universal, voltado ao coletivo, à cidade/ estado.
Entende-se então que o primeiro grupo de indivíduos tende a buscar a glória, as honrarias, os títulos, geralmente através da exploração e da guerra. O segundo tende a buscar diversos tipos de riquezas materiais e luxo: dinheiro, prazeres sensoriais exagerados ou grosseiros, terras e diversos bens. Daí a insinuação de que uma liderança ideal deveria vir dos amantes do saber/ da sabedoria: Filo (amigo) Sofia (saber, sabedoria). Pois o saber citado por Sócrates não era indiferente ao todo, nem egoísta: Era a busca por algo maior, a busca pelo mais completo (uno, imutável) e, assim, pelo Bem como valor universal: Bom para toda a sociedade, toda civilização... E, quem sabe (porque não?), bom também para toda a vida "não humana", seja animal, vegetal ou mesmo espiritual.
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