Platão e o "Estrangeiro"

O personagem "Estrangeiro" aparece em poucos diálogos escritos por Platão. Certamente muitos o consideram um personagem fictício, porém ele parece um marco entre os textos de Platão classificados como de sua "fase intermediária" e de sua "fase madura/ final'. Estes textos da fase madura são onde Platão desenvolve melhor sua teoria, abordando e expondo temas mais complexos como podemos ver nos diálogos Filebo (do Prazer e da Ética), Teeteto (do Conhecimento), Sofista (do Ser), Político (da Realeza) e Parmênides (das Formas). O Estrangeiro está em 2 destes diálogos: Político e Sofista

O primeiro diálogo aborda uma versão modificada do "mito da era de ouro" e o "deus timoneiro do universo", cita que o cosmos corpóreo é imperfeito porque não herda todas características de seu criador, indica que o estudo do incorpóreo (cognoscível) é mais importante do que estudar os corpos/ o sensorial porque abrange o estudo das virtudes, do imutável e/ou das eidos (enfim, da ética), além de algumas sutis alterações na teoria sobre o legislador/ governante ideal em comparação às idéias apresentadas no diálogo "Politheia" (A República), o segundo diálogo (Sofista) começa abordando sobre a classe tão criticada por Platão, mas acaba discutindo bastante o Ser

Fica claro que Platão busca e trabalha uma realidade superior, que serve de parâmetro para boa parte de sua obra; O Ser relaciona-se com a essência das coisas mencionada ocasionalmente em seus textos e também, mais diretamente com sua ontologia, mesmo porque apesar de utilizado também com o significado de "existir" o ser na língua grega vem (também) da palavra "ontos". Esta realidade mais perfeita ou excelente relaciona-se com a imutabilidade (não corruptível) e com algo uno, ou seja, unido, completo, de certo modo, universal/ mais perfeito. É daí que entende-se que a construção de conhecimento proposta por Platão não só é psíquica (a realidade cognoscível é mais perfeita do que a sensorial, pois é onde se alcança as virtudes como a moderação, a coragem, a justiça e o bem/belo), mas também deve ser colocada em prática (materialmente e psiquicamente/ eticamente) à serviço do coletivo, no caso, da cidade/ estado. Porém o estudo do ser é um dos mais profundos e complexos, possivelmente fazendo dele também, um dos mais incomuns, ao lado do estudo sobre a unidade (visto na obra Parmênides), pois ambos trabalham o conceito de eidos (ideia/ forma) de Platão. Estudar tudo que envolve a ideia/ forma proposta por Platão, é uma construção de conhecimento puramente racional/ cognoscível, portanto filosófica, ou seja, para além da limitação sensorial. Sendo puramente racional ele é automaticamente psíquico e ético, pois ninguém pode pegar um pedaço de ética e estudá-lo com métodos sensoriais e reprodutibilidade sensorial (isso seria absurdo). 

Tais estudos de Platão não se opõem totalmente, mas se afastam nitidamente de filósofos naturalistas gregos como Leucipo, Demóstenes, Heráclito e Protágoras que certamente priorizaram o perceptível sensorialmente. Apesar das semelhanças com Parmênides de Eleia, o fundador da filosofia ocidental também diferencia seu trabalho deste filósofo. Certamente houve similaridades da obra de Platão com a filosofia pitagórica, mas o corpo escrito de tal filosofia foi predominantemente perdido. Sócrates certamente foi uma de suas fontes, embora ainda existam pessoas que duvidam da existência deste filósofo, como se não houvessem pessoas que vivessem da tradição oral... 

No texto "Sofista", o Estrangeiro traz ao diálogo uma escola de idealistas (amigos das ideias), praticamente desconhecida na história. E falando em estrangeiros, não só os pitagóricos (e sua transmigração das almas) apresentavam possíveis conexões com culturas estrangeiras, como Anaxágoras era um "mestiço greco-persa" (O Império Persa Aquemênida era enorme, se estendendo das fronteiras leste da "Grécia" até o oeste da "Índia"). É válido notar que a terra natal de Anaxágoras (na verdade a Babilônia sob domínio Persa) estava prestes a desenvolver o número 0 (zero) possivelmente pela primeira vez na história, apesar de ainda não ser o número "zero" como conhecemos hoje, que foi desenvolvido na "Índia" entre 5 e 9 séculos depois. O zero é um marco da matemática que indica o início (ou mais precisamente a facilitação) do uso teórico desta ciência/ disciplina, para além do uso prático e comercial/ mercantil. Tanto é assim que Platão traz questões como o que há entre o finito e o infinito/ entre o uno e o múltiplo: o enumerável, o passível de medição que possivelmente se associa com a média não só numérica, mas também filosófica, de serventia ética. Tais usos teóricos da matemática não são empíricos no sentido original da palavra: não são necessariamente mensuráveis materialmente nem reprodutíveis corporalmente. Ainda assim, a matemática teórica explica muita coisa: seja com ou sem o uso de fórmulas ela possibilita a construção de conhecimento (seja filosófico, ou científico...); Pelo que sei da história da Grécia, na época de Platão haviam dois tipos de numeração nas cidades/ estado helênicas: Uma baseada em múltiplos de 5, similar aos algarismo romanos, e outra, a jônica, que era uma numeração apoiada em múltiplos de 9... Mesmo com as limitações de sua época possivelmente sem o "número zero", Platão se empenhou no uso filosófico da matemática, principalmente em suas obras "finais" como Filebos, Político e Parmênides

Não acho que a interpretação dos períodos das obras de Platão deva ser levado à risca, afinal o filósofo é um indivíduo e não três diferentes entre si - mudanças no estilo de sua escrita ou de temas abordados devem ter sido graduais e sutis. Neste período "final" então, onde as obras "Teeteto" e "Sofista" também parecem se enquadrar, Platão aprofunda suas investigações racionais sobre a verdade e a excelência, a busca por perfeição e uma possível realidade superior/ mais perfeita/ ética, psíquica (cognoscível)/ espiritual, divina ("daimonica", possivelmente referente ao hiperouranos etc); É no período destas obras que Platão apresenta o personagem "estrangeiro" em seus diálogos.

Poderia então o Estrangeiro ser um personagem real, o qual Platão optou por não revelar seu nome? Não só muitos gregos de seu tempo poderiam ter dificuldades de pronunciar um nome estrangeiro (dependendo de onde ele vem, e de quão esquisito ele soasse), mas também poderia haver um menosprezo caso o filósofo fundador da Academia alegasse que baseou partes essenciais de seu conhecimento nas ideias de um estrangeiro. 

A única menção de um estrangeiro no círculo de Sócrates e Platão que encontrei foi na obra Autobiografia de um Iogue de Paramahansa Yogananda: 
"Aristoxenus, o músico, narra a seguinte história sobre os indianos. Um destes homens encontrou Sócrates em Atenas e perguntou qual era o escopo de sua filosofia: - Uma investigação dos fenômenos humanos - respondeu Sócrates. Com isso o hindu explodiu de riso: - Como pode um homem investigar os fenômenos humanos quando ignora os divinos?" 
Em seguida Yogananda alega entender que o ideal grego, bem como as demais filosofias ocidentais são centrados no ser humano... 
Isso é só parcialmente verdade, primeiramente porque Aristoxenus era pupilo de Aristóteles e parecia seguir pouco ou nada da filosofia socrática/ platônica, então, sendo assim, poderia apresentar uma visão excessivamente crítica e/ ou imprecisa de Sócrates. Em segundo lugar, apesar de Platão tratar a psiquê humana e suas relações com a sociedade (nas obras "O Banquete" e "A República"), o filósofo mostra seu mestre Sócrates, em diálogo com Górgias, Pólo e Cálicles, já comparando a lei dos homens com a lei natural. Nestas 3 obras então, Platão já indica uma justiça que extrapola os limites humanos, possibilitando a interpretação de uma realidade superior e/ ou divina. Além disto, o filósofo ateniense refuta a teoria de Protágoras que afirmava que o homem é a medida de todas as coisas e mostra Sócrates em diálogo com Fedro, claramente buscando o divino e tratando de temas místicos/ transcendentes como a inspiração pelas ninfas, as profetizas da "Grécia" antiga, os estados alterados da mente (mania) e o "hiper ouranos" (claro que "x" leitores da obra Fedro negarão tal fato). Além disto, se Sócrates tratou pouco sobre o transcendente/ o divino e temas correlacionados, Platão trata mais, principalmente em obras como Sofista (ou do Ser). Este ser de Platão não só é o conceito de ser/ existir, mas indica a relação com algo imutável que realmente é além dos ciclos biológicos de nascimento e morte, e, portanto, indica relação com o transcendente/ o divino. 

Inclusive o autor faz tal abordagem de maneira muito mais racional e pautada pela ética, do que as verborragias teológicas das igrejas após o cristianismo "primitivo"; Platão não prega dogmas, por isso evita trazer uma supremacia divina sobre a vida humana, como é mostrado na "República", onde o autor confronta a superstição (termo oriundo de "super theos oinos", o super medo dos deuses), mas indica que a psiquê humana é feita para aprimorar-se e aprimorar seu entorno com serventia e ética através das virtudes ou excelências citadas anteriormente. A alma (psiquê) que interioriza as virtudes e põe em prática os valores universais que fazem bem a todos, alcança o divino, juntando-se a ele.
Por fim, eu trouxe este breve texto onde Yogananda cita Eusébio (de Cesaréia ou outro?) citando Aristoxenus, para levantar a questão: Poderia o estrangeiro citado por Platão ser um "sábio hindu", ou um filósofo influenciado por um destes sábios?

A definição de um ser imutável e uno parecia exclusividade da escola de Eleia entre as polis gregas, até Platão construir a filosofia ocidental apoiando-se no ombro destes e de outros filósofos. Platão relaciona tal definição com o divino e com o "Theos", seja ele o Demiurgo (arquiteto), Nous (a mente divina), Zeus ou Apolo (esse último considero mais improvável). Poderiam os filósofos da escola de Eleia, ou mesmo Platão, terem sido influenciados pela ideia hindu de um todo, ou Brahman onipresente em algum nível?

Sei que existem discussões e divergências entre filósofos e historiadores que debatem se Platão e outros filósofos da Grécia antiga/ clássica foram autores originais (de trabalhos puramente helênicos) ou se partiram de obras estrangeiras, sejam egípcias, "babilônicas", persas ou mesmo hindus. Historiadores recentes como Francis A. Yates ressaltam a influência sincrética e possivelmente hermética (greco-egípica-judaica) sobre os seguidores de Platão, particularmente do médio platonismo dos séculos 1 e 2, enquanto estudiosos dos últimos 4 séculos do Império Romano, como Eusébio de Cesaréia, chegaram a afirmar que Platão obteve conhecimento dos povos hebraicos ou foi inspirado por Deus. (não que  Eusébio aceitasse todo o corpo da obra platônica: ele aceitou só o que interpretou como convergente com textos hebraicos) 

Também sei que há aqueles que duvidam da historicidade de Sócrates e também os que menosprezam a ética "socrática/ platônica". Há outros que afirmam que Platão escondeu alguns ensinamentos orais e que Aristóteles teria revelado tais ensinamentos ou completado sua obra... Enfim, há uma série de interpretações e opiniões sobre o corpo da obra de Platão.

Sobre a originalidade grega ou suas possíveis referências, particularmente desprezo as visões unilaterais que afirmam que a filosofia helênica é pura e intocada por outras culturas, assim como discordo que sejam puramente adaptações de povos "vizinhos" mais antigos. 

Sobre Aristóteles continuar ou completar a obra de Platão, eu ainda tenho dúvidas. É verdade que ainda não li as obras aristotélicas, mas as poucas sínteses e observações sobre o autor indicam que ele contrariou seus antecessores (ou mestres) em alguns pontos-chave da filosofia "socrática"/ platônica. Aristóteles também afirma que Platão dá um ensinamento oral diferente do que ele mostra em  Timeu, sobre a relação entre o Uno e o bem. Pode ser que Platão reservou palestras ou conhecimentos sobre o bem, devido ao fato destes argumentos possivelmente serem muito rechaçados em sua época, mas creio que terei uma opinião mais embasada sobre isso após ler Timeu e a 7ª carta de Platão

Então faço a pergunta se o "estrangeiro" realmente não foi um conhecido de Platão influenciado por hindus, mas sei que é mais por curiosidade, pois considero pouco ou nada relevante a nacionalidade das pessoas. 

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