Sobre uma Educação pautada na vivência e na relação com o Ambiente

Escrevo este humilde texto a pedido da jornalista, educadora e escritora, Dora Incontri, após eu ter observado alguma semelhança entre as "ideias e práticas pedagógicas" de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918) e a construção de conhecimento dos povos indígenas do Brasil. Tentarei demonstrar algumas destas semelhanças à seguir: 

Barsanulfo, professor, jornalista e político mineiro, fundou o colégio Allan Kardec e ministrou aulas utilizando práticas pedagógicas centradas nos alunos, estimulando nestes, a liberdade e a vontade de conhecer. Desta prática, as aulas passeio marcaram memória dos estudantes do colégio, pois segundo os próprios alunos, as crianças adoravam sair da escola para passear e aprender. Entre os indivíduos que estudaram no colégio, Novelino e Germano, contam que Eurípedes considerava as aulas passeio fundamentais ao processo de ensino aprendizagem, pois eram oportunidades de conhecimento, curiosidade, socialização, observação, conversas e debates. 

 Além da utilização do meio ambiente e da cidade, no caso, o local onde se vive, para educar os alunos, a abolição dos castigos e a consideração da possível realidade espiritual, são alguns elementos de naturalidade no ensino que remetem à um estilo de vida indígena, claro que com suas devidas diferenças. O sistema educacional de Barsanulfo mostrou seu diálogo com a educação e cultura européia por suas devidas razões, mas também rompeu significantemente com o modelo dominante de sua época que era rigidamente disciplinar com enfoque na formação para a sociedade dominada pelo sistema sócio econômico liberal que estava começando a se industrializar. 

Os indígenas em seu contato milenar com a natureza desenvolveram não só um modo de vida livre das pressões psicológicas típicas dos sistemas sócio econômicos modernos predominantemente europeus e estadunidenses, mas também construíram conhecimento com base na observação, experiência e vivência. Artigos acadêmicos indicam que os regimes tradicionais de conhecimento indígenas orientam modos de vida amplamente e minuciosamente conectados com as dinâmicas ambientais. Esta conexão é enfatizada pelo princípio de interdependência arraigado nos saberes e práticas que envolvem as relações entre seres humanos, ambientes e seres não humanos. Esse tipo de conexão com o ambiente propiciou e propicia níveis de percepção e de reflexão muito refinados sobre processos de mudanças e de transformações ambientais. 

Portanto os indígenas também utilizam o meio ambiente para construir conhecimento, embora tal construção tenha características de uma especialização em determinados biomas onde cada povo vive. Isto difere das "aulas passeio" ministradas por Eurípedes Barsanulfo somente no aspecto do estilo de vida indígena não contar com as tecnologias e normas sociais de raízes predominantemente européias. 

Além disto, várias, para não dizer todas, culturas indígenas possuíam uma prática espiritual que era parte de sua visão de mundo, ou seja, de suas cosmovisões. Vale lembrar que os seres não humanos citados por indígenas não são apenas animais, plantas e minerais, mas também seres espirituais, embora haja diferenças entre as várias culturas indígenas. 

Mesmo mantidos por tradições passadas através das gerações oralmente de modo geral, tais conhecimentos não eram apartados de seus estilos de vida nem de seus conhecimentos: faziam parte destes. Tirar-lhes estes elementos de suas vidas para adaptá-los aos sistemas sócio-econômicos de ideologia capitalista, não geram apenas conflitos inter-geracionais entre os povos indígenas, mas também lhes expõem às pressões psicológicas de nossa sociedade. 

A partir dos anos 2000, com o avanço da crise ambiental que aflige o planeta, as preocupações dos cientistas se voltaram para aquilo que foi classificado como mudanças climáticas e seus efeitos globais. No início, os espaços de discussão foram ocupados por cientistas e especialistas das ciências naturais, para somente depois as ciências sociais e humanas, adentrarem nesses debates. Isto ocorreu primeiramente a partir da sociologia e da geografia humana, até que então a antropologia focada nestas mudanças climáticas trouxe outras possibilidades para o debate ao considerar os conhecimentos, narrativas, ontologias e cosmovisões de povos indígenas e tradicionais sobre as transformações ambientais que estão ocorrendo nos seus territórios. 

A experiência pedagógica de Barsanulfo infelizmente foi de curta duração e mesmo se houveram algumas outras experiências com características semelhantes, elas tiveram pouca oportunidade de dialogarem entre si, pois o sistema educacional dominante no Brasil e nos demais países de cultura européia (ou influenciada por esta) é hegemonicamente adaptado ao sistema sócio econômico como eu já mencionei. Resumidamente o sistema educacional adaptado aos sistemas liberal e neoliberal, desde a época de Eurípedes Barsanulfo, até este início de século 21, deu enfoque na formação profissional, qualificando os estudantes para o mercado de trabalho e a realidade industrial ou empresarial. Com isto, tal sistema deixou em segundo plano as questões sociais, as questões históricas, as questões ambientais e até as questões humanas, sejam estas últimas, questões culturais, filosóficas ou psicológicas. 

Ainda que o texto não tenha intenção de ressaltar a importância do conhecimento indígena para lidar com a "crise da mudança climática", achei interessante mencionar tal fato. Isto porquê a questão trás a importância de se romper com, ou ao menos, de controlar, o modelo dominante de construção de conhecimento eurocêntrico não só da educação de base, mas também da narrativa acadêmica/ científica que por tanto tempo desprezou (e ainda despreza, apesar de alguns cientistas começarem o diálogo) as culturas indígenas e suas respectivas epistemologias. 

Defender tais epistemologias (a proposta por educadores como Eurípedes Barsanulfo e as das etnias indígenas) faz-se necessário não só para preservar o meio ambiente, mas também para preservar a diversidade das culturas incluindo suas práticas espirituais. Tal defesa não é fazer proselitismo, nem pseudociência - é defender uma construção de conhecimento pautada pelas relações éticas das sociedades em relação umas às outras e em relação ao meio ambiente, ou como diriam os indígenas, em relação ao seres não humanos. Defender tais epistemologias é reviver a importância da filosofia: do diálogo e da ética para as relações mencionadas, pois ética trata de valores universais e estes valores buscam o bem não de certos indivíduos ou de meros grupos, mas buscam o bem do coletivo, da civilização humana e do meio onde ela vive. 

Por fim, o que trago aqui não é só minha opinião: Eu me apoiei no conteúdo de aulas de psicopedagogia e de pedagogia espírita das quais não tenho todas as fontes e também utilizei o artigo "Percepções locais sobre transformações ambientais na região do Oiapoque: reflexões a partir da experiência de formação de pesquisadores indígena" de Igor Alexandre Badolato Scaramuzzi, Rita Becker Lewkowicz, Rosélis Remor de Souza Mazurek e Vinícius Cosmos Benvegnú. 

Para quem interessar, também existem vídeos sobre o tema em canais na internet de ativistas indigenistas e de líderes indígenas, que trazem este tipo de questionamento da epistemologia eurocêntrica/ estadunidense tão adaptada aos sistemas liberais e neoliberais e sua respectiva ideologia capitalista centrada na extração, consumo e acúmulo de recursos materiais. 

Este texto foi originalmente publicado em: https://blogabpe.org/2024/11/18/a-pratica-de-euripedes-barsanulfo-entre-a-educacao-colonial-e-a-indigena/

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...