Pode-se dizer que neste ano de 2025, vivemos um momento de crise social, psicológica e ética, ou talvez, um período de crise que se arrasta há vários anos, mas só foi recentemente escancarada: aumento da utilização da internet e de mídias "sociais" para produção e/ ou consumo de conteúdo de violência ou mentiras, protestos por variados países (revoluções coloridas, "black lives matter", revoltas mapuches, sociais/ trabalhistas etc), crise de saúde mental com aumento de consumo de opioides, alta de suicídios, afastamento em massa do ambiente de trabalho, precarização da mão de obra, entre tantos outros problemas. É difícil separar de maneira definitiva os problemas sociais dos econômicos, dos éticos e dos psicológicos e isso ocorre por um fato que me parece ainda muito ignorado: tudo o que é estudado pelas "ciências humanas" é inseparável da filosofia.
Filosofia? Para que serve isso? Para explicar sobre filosofia em si, é bom lembrarmos dos seus "períodos de destaque" na história do ocidente:
Não é muito claro quando a filosofia começa a surgir no ocidente, mas temos algumas evidências históricas das obras de filósofos naturalistas gregos que viveram entre os séculos 7 a.C. e 6 a.C., também chamados de "pré socráticos"; Tais filósofos levantavam uma série de questionamentos num momento de crescimento das cidades gregas, porém nem tudo eram "flores": havia insatisfação popular, revoltas, guerras e muita ganância. Entre esse progresso e essa turbulência, no século 5 a.C. surgiu um filósofo que trouxe a ética para o centro das discussões e da construção de conhecimento: Seu nome era Sócrates e, pelo fato de não ter deixado obra escrita, há quem duvide de sua existência. Porém é certo que seu principal pupilo existiu pois ele deixou o primeiro corpo de obras coeso na história do ocidente: Platão de certa forma é o fundador do que se chama de filosofia ocidental hoje em dia; Ele não só registrou os ensinamentos de seu mestre ateniense Sócrates, como bebeu de outras fontes como do filósofo greco-persa Anaxágoras, do greco "itálico" Parmênides, dos pitagóricos, cujo o suposto Pitágoras teria estudado outras culturas (egípcia, babilônica etc) e talvez de mais alguns outros filósofos. Platão propôs uma construção de conhecimento alicerçada na presunção da ignorância antes de se iniciar qualquer investigação ou estudo. Seu método se dava pelo diálogo que aliado a tal presunção, mostrava-se equitativo e respeitoso, porém crítico em um sentido construtivo. Sua finalidade era a melhoria de todas as coisas, principalmente daquelas que ele considerava que eram (verdadeiras, ou mais importantes): o cognoscível, a psiquê e portanto, as virtudes ou excelências como a justiça, a bondade, a coragem, a moderação etc. As gerações posteriores a Platão tiveram dificuldades e/ ou discordâncias em relação a alguns de seus ensinamentos e assim sua obra foi pouco colocada em prática apesar de preservada.
Com a ascensão de Roma sobre os gregos entre os séculos 3 e 1 a.C. a filosofia grega (não só a platônica) começa a sofrer altos e baixos devido a oscilação entre aceitação e perseguição por parte dos imperadores romanos. Entre os séculos 1 e 2 d.C. surge o "médio platonismo" em diálogo com outros sistemas filosóficos e espirituais como o cristianismo e pouco tempo depois, os imperadores romanos adotam o cristianismo como religião de estado no final do séc 4 d.C. O platonismo juntamente com outras filosofias e religiões acaba praticamente "varrido" do ocidente com a formação e ascensão da igreja católica na Europa por volta do século 5 d.C. e o "continente" entra na "Era das Trevas".
A filosofia praticamente só ressurge na Europa no fim do século 11 com a construção das universidades católicas talvez em reação ao contato com a cultura árabe que possuía madraças onde se estudava tanto filosofia como religião. Porém os europeus medievais deram ênfase nos estudos das obras de Aristóteles, e os conteúdos de Platão permaneceram timidamente esparsos e adaptados a uma teologia católica introduzida por (Santo) Augustine no início da era das trevas.
Com as crises da igreja católica, causadas principalmente pelas contradições (múltiplos papas, afastamento dos ensinamentos éticos cristãos...) e vícios (excesso de luxo, poder, crimes etc) de seus líderes, as críticas vieram de duas frentes: de católicos dissidentes como os cátaros, Wycliffe, os lollards, Jan Hus, os hussitas (entre outros) e de camponeses e trabalhadores insatisfeitos com a pobreza e a opressão que sofriam. Porém essas revoltas e dissidências dos séculos 12, 13 e 14 foram predominantemente esmagadas por alianças entre a igreja e aristocratas ou burgueses e este foi o "início do fim" da era medieval: após a igreja católica romana (do ocidente) ter aparentemente superado seus opositores e questionadores, a igreja católica ortodoxa (do oriente) busca a ajuda dos ocidentais. Os otomanos estavam tomando todo o decadente Império (Romano) Bizantino que era a principal sede da igreja católica ortodoxa e os concílios (reuniões negociando a união) entre as igrejas do ocidente e do oriente foram feitos, mas fracassaram.
Apesar do fracasso, os concílios também serviram para que filósofos bizantinos (Manuel Crisoloras e Gemisto Plethon, por exemplo) que guardavam grande conhecimento da filosofia grega, passassem a ensinar tais obras nos ducados/ estados da península itálica na primeira metade do século 15 - Possivelmente esse processo de divulgação foi facilitado pela "invenção" dos tipos móveis (a imprensa fundada entre 1440 e 1450) de Gutemberg. Além disto, tratados de paz foram feitos entre os estados itálicos por volta de 1454 e 1494, certamente também por temor à ameaça otomana, e esse ambiente deve ter consolidado ou assegurado o florescer dos movimentos intelectuais: Os estudos da filosofia grega estavam sendo retomados na Europa; principalmente das obras de Platão, Zenão, Epicuro e de autores do médio platonismo. Os estudos destas obras filosóficas serviram para combater argumentos obsoletos e falaciosos da igreja católica ainda muito poderosa apesar de dividida em duas. Em paralelo a isso, o judaísmo místico passa a ser abertamente estudado por alguns destes filósofos, dando origem a um sincretismo religioso certamente afrontoso ao poder da igreja - este florescer de novas ideias sobre o ser humano, sua história e sua espiritualidade e de novos questionamentos sobre (falta d)a ética e sobre a epistemologia dominante na Europa parece ser o início do movimento conhecido como humanismo. Nos estados itálicos vários humanistas, alguns ocupando cargos na burocracia ligada à própria igreja católica, outros financiados por políticos e banqueiros da região, se tornaram conhecidos por divulgar as obras clássicas da filosofia platônica, aristotélica, estoica, epicurista e do médio platonismo: Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Ambrogio Traversari, Nicolau de Cusa, Lorenzo Valla, Marsílio Ficino e Giovani Pico foram alguns deles e seus questionamentos abriram espaço para outros posteriores, que viriam a reformar ou separar a igreja, criando o protestantismo.
Deste ponto em diante certamente a filosofia despertou o interesse de alguns burgueses, mesmo porque dissidentes da igreja naturalmente procurariam aliados fora do clero: seja nas aristocracias ou nas burguesias e isso parece estar de acordo com a gradual substituição da economia feudal, pela mercantil. Também nesta mesma época, navegadores itálicos como o genovês Cristóvão Colombo (1451-1506), o florentino Américo Vespucci (1451-1512) e o veneziano Giovanni Caboto (1460-1498), iniciam a exploração naval pelo globo à serviço da Espanha, de Portugal e da Inglaterra (seja pelo interesse pelas especiarias da "Índia" ou devido à divulgação de obras clássicas como as de Eratóstenes e Crates de Mallus) e a arte surge como uma área de estudo rigorosa aliada à matemática, perceptível nas obras de artistas como Da Vinci e Rafael, que mostravam alto refinamento do uso da perspectiva e da volumetria (luz e sombra) marcando um interesse humano pela tridimensionalidade e pelo espaço. Infelizmente o interesse pelo "espaço" e seus respectivos recursos naturais juntamente com as navegações, serviram a ganância tanto das classes aristocráticas (reis etc) como das classes mercantis (burgueses) e acabaram resultando em diversas violências contra nativos da América e da África.
Nos anos seguintes, a filosofia foi ganhando espaço na Europa com altos e baixos: Copérnico, Kepler e Galileu estiveram entre os famosos filósofos renascentistas devido ao seu estudo da natureza e hoje são considerados precursores da ciência moderna; Alguns destes filósofos (e outros como Giordano Bruno) estudavam não só o espaço e suas leis naturais, mas também a psiquê humana, a ética e a espiritualidade. Porém nesta época praticamente não havia psicologia e a única espiritualidade disponível em maior parte da Europa fora das igrejas era o neoplatonismo e o misticismo judaico - esse sincretismo mencionado anteriormente deve ter dado origem ao movimento Rosacruz que atingiu seu ápice entre 1614 e 1617.
Porém é com René Descartes no século 17 que um tema parece dividir a filosofia: como se dá a relação entre psiquê (mente ou alma) e corpo? A reação às obras de Descartes foi diversa, mas a visão empirista foi se tornando dominante principalmente a partir da Inglaterra; Essa preferência pela filosofia natural, ou seja, o estudo da natureza e do espaço estava crescendo entre britânicos enquanto o movimento Rosacruz que tinha alguns (ou muitos) intelectuais declinava. Talvez este declínio tenha relação com os seguintes fatos: Apesar do florescer da filosofia, a renascença foi o maior período de inquisições e caça às bruxas: durante o século 16 na península ibérica, os monarcas e a igreja romana perseguiram os judeus (aproximadamente no mesmo período em que o misticismo judaico foi "aberto"), enquanto no século 17 no Império Germânico, na Grã Bretanha e até na Escandinávia, vários grupos e famílias de camponeses, principalmente mulheres foram injustamente julgadas e executadas. Embora a maioria destas execuções tenham sido ordenadas por sacerdotes da igreja que se debatia para manter o poder ne Europa, na Grã Bretanha, as mais famosas das matanças foram lideradas por aristocratas: o rei James "VI e I" que chegou a escrever uma obra como "lidar com demônios" e o "Witchfinder General" auto intitulado membro do parlamento inglês (há controvérsias sobre isso) que escreveu obras alegando "como identificar bruxas".
O movimento intelectual que começa a surgir a partir deste momento pode ser entendido como uma versão menos mística do rosacrucianismo e voltada a um aspecto humano mais racional-naturalista do que espiritual: O
iluminismo passa a ser fomentado entre as "elites intelectuais" da Europa criticando a religião de modo geral e "cutucando em algum nível" o poder das aristocracias... Enfim, a filosofia natural que começou a crescer neste período passou a priorizar a experiência sensorial (empírica) ante a investigação mais racional (cognitiva, reflexiva) de Descartes, iniciando um lento processo de divisão da filosofia que viria a se consolidar por volta da primeira metade do século 19 com o surgimento do
positivismo e a criação da palavra "cientista"; Sobre a história da relação "mente-corpo" eu já abordei em outros textos:
https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/11/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.html
Essa filosofia natural centrada na investigação empírica surge na mesma região (Inglaterra) e época do liberalismo (transição do século 17 ao 18). Aqui não estou dizendo que estava tudo conectado, mas sim indicando as típicas correntes de pensamento dos intelectuais europeus "iluministas", principalmente dos britânicos/ ingleses, mas também marcadamente dos franceses que cunharam o termo "laissez faire" ("deixe ser", denotando um mercantilismo desregulado). Este também é o período inicial do "racismo científico" (vide algumas ideias de Petty sobre os africanos subsaarianos e de Linaeus sobre as "raças" humanas) e o período de intensificação da escravização: Com o banimento dos jesuítas pelas coroas da Espanha e de Portugal, houve uma substituição massiva de mão de obra indígena por negros escravizados levados para a América. Longe de suas nações, os negros tinham mais dificuldades de se comunicarem entre si e de organizarem revoltas contra seus escravizadores e isso aumentou a produtividade não de modo incidental como alguns contam por aí... Esta escolha feita pelo governo português por exemplo, aumentou os lucros da produção de arroz e de algodão na colônia do Grão Pará e Maranhão em cerca de 3000 a 4000%. Isso certamente é um indicador que os negros eram mais forçados e/ ou violentamente pressionados do que os indígenas catequizados pelos jesuítas no trabalho do cultivo de tais produtos.
Mas qual a relação entre a as mudanças na filosofia seguida pela expansão da filosofia natural e as políticas comerciais europeias? Numa análise fria e reducionista elas não devem ter relação entre si, mas considerando quem determina como se constrói conhecimento, quem determina o que é verdade e quem tem direito ao estudo e à liberdade, é possível ver que a ideologia dominante nas elites europeias era de superioridade de seu próprio povo ante nativos da América e África - Uma superioridade racial, intelectual e de direitos não só comerciais, mas de propriedade sobre terras, bens e até sobre outros humanos! Embora houvessem alguns progressos sociais/ políticos ocorrendo na Europa, como o lento surgimento de ideias democráticas, as mudanças mencionadas anteriormente (expansão da filosofia natural e da economia liberal laissez faire) "coincidem" com a intensificação do mercantilismo: já não bastava só explorar a terra utilizando mão de obra escravizada: O escravo tinha que ser alguém não reconhecido como humano - algo biológico, mas sem alma, sem chances de lutar e sem direito de expressar sua cultura, sem direito de viver a cosmovisão de sua sociedade ou de se integrar à sociedade eurocêntrica. Claro, que isso não se deve só à elite intelectual e econômica europeia do século 18, mas também à posição das igrejas que permitiam a escravização dos negros negando-lhes até a opção de se converterem ao cristianismo.
Analisando este período da história, peço para que o leitor note como o "desenvolvimento" da filosofia europeia moderna priorizando tecnicidades e biologismo e se afastando de questões psíquicas, morais e éticas (ciência) não fazia um enfrentamento real ao que havia de mais desumano nas igrejas: suas contradições em relação aos ensinamentos de amor ao próximo (do fundador do "cristianismo") e o poderio religioso discriminatório e opressor. Quando surgem o
positivismo e o termo
cientista então, mencionados anteriormente, o racismo científico já estava enraizado na epistemologia europeia: De pré suposição materialista niilista (o homem era um corpo sem alma) a ciência racista da Europa do século 19 desembocou em absurdos como as ideias de
cranoscopia,
drapetomania e
darwinismo social! Essas ideias absurdas da ciência eu expliquei no texto
https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/12/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.htmlAssim os pressupostos da ciência, que não passam de mera visão de mundo, não garantiram a ética nas relações humanas, pelo contrário, se escondendo atrás de uma suposta "neutralidade", foram até coniventes com as atrocidades mencionadas e também explicadas mais sucintamente neste outro texto:
Voltemos ao nosso século 21 então: porque a psicologia está sendo engolida pelas áreas médicas?
Primeiramente é digno de nota, que para isso ocorrer é preciso alguma aceitação dentro da própria psicologia seja como área profissional ou como área acadêmica/ de estudos e construção de conhecimento. E porque existe tal aceitação? Por uma série de motivos não muito difíceis de entender, pois são todos perceptíveis para quem é da psicologia: Tomarei como exemplo minha vivência na área, já que dificilmente conseguiria emplacar um trabalho de pesquisa sobre tal tema logo no bacharelado; Durante o curso eu acompanhei opiniões de psicólogos nas redes sociais e notei que um possível motivo para que alguns estudiosos e profissionais da área buscassem maior rigor referente à prática da profissão, era a existência e propagação de terapias alternativas (algumas de eficácia dúbia) e a desregulação e permissividade do Conselho de Psicologia em relação a quem pode oferecer psicoterapia no Brasil. Além disto, quando comecei o curso de psicologia, logo no primeiro semestre, eu e os demais noventa e poucos colegas de turma (e possivelmente várias ou todas outras turmas de psicologia da faculdade em questão) fomos ensinados que ciência é o campo de estudo que se baseia no rigor metodológico, que busca compreender e explicar os fenômenos da natureza observável... Esse rigor supostamente é investigar o perceptível sensorialmente e conseguir reproduzir o fenômeno estudado, ou seja, o rigor é o método empírico - O que contradiz a psicoterapia ao menos em parte já que o paciente pode eventualmente omitir informações sobre si mesmo e o psicoterapeuta, ao se utilizar do diálogo, trabalha mais com a racionalização e com reflexões do que com reprodutibilidade. Talvez a reprodutibilidade possa ser alcançada parcialmente em estudos coletivos de pacientes, mas é praticamente impossível de ser alcançada em casos psicológicos individualmente e essa contradição não foi explicada em aula alguma!
Também mostra-se importante questionar: que professores passaram tal conteúdo e/ ou reafirmaram tais regras para se construir conhecimento? Na faculdade onde estudei, recebemos esse conteúdo sobre o que é ciência e quais são seus pressupostos e métodos, via um professor de direito (não sei porque ele deu aula sobre tal tema no curso de psicologia) e também de dois professores da psicologia comportamentalista (behaviorista). Faz sentido que os behavioristas reproduzam esse discurso, pois era o que um ou mais fundadores desta abordagem da psicologia defendia. Porém há 2 problemas em propagar tal informação como uma verdade absoluta que serve para toda a psicologia: O primeiro é reduzir toda a área a essa visão de mundo de que é possível estudar o ser humano e sua psiquê (memórias, valores individuais, sentimentos, pensamentos etc) se pautando com ênfase no método empírico, pois isto exclui todas as abordagens fenomenológicas e a psicologia analítica que parte de uma base psicanalítica; O segundo problema de impor tal visão de ser humano e de construção de conhecimento é que isso se configura como um biologismo: Anuncia a certeza de que o ser humano é meramente biológico (sem provas definitivas) e com isso automaticamente dá poder à narrativa dominante nas áreas médicas, tais como a neurologia e a psiquiatria. Note que elevar esse pressuposto biologista que é um paradigma materialista como se fosse uma verdade absoluta na psicologia, não se trata de um diálogo verdadeiramente interdisciplinar entre a área em questão e a medicina, muito menos, se trata de uma abertura ao estudo transdisciplinar. Se trata de elevar a medicina e a biologia como áreas superiores à psicologia, reduzindo esta última praticamente à condição de uma sub área da medicina!
Com a alegação que a ciência é só o estudo do observável e do reproduzível, cria-se um impasse ou uma exclusão, isto porque a psicoterapia é centrada no diálogo com o paciente e os relatos deste são a base da construção de conhecimento sobre o tratamento psicoterapêutico! O verdadeiro estudo interdisciplinar deve considerar os aspectos psíquicos, sociais, biológicos até os existenciais e espirituais do ser humano. Considerar não é dar um sorriso diante o paciente e depois tratar tais aspectos como banalidades, mentiras ou até mesmo como meros processos psicopatológicos. O estudo interdisciplinar da psicologia deve considerar os aspectos existenciais e espirituais como possibilidade destes últimos serem tão reais quanto os aspectos biopsicossociais! Não se trata de ser religioso nem de admitir teorias religiosas na psicologia, na psiquiatria nem na neurologia; se trata de não impor visões de mundo sobre o paciente e seus relatos, quando estes envolvem os temas em questão!
A mescla irresponsável de teorias religiosas, místicas e afins deve ser devidamente combatida, com análise e possível refutação pautada pela ética como finalidade e não meramente pautada por uma pré suposição/ paradigma ou pelo mero método de investigação e de construção de conhecimento.
A ética pressupõe valores universais, ou seja, que fazem bem à toda a humanidade a nível coletivo, mas ainda é praticamente uma "área" de estudo da filosofia e eu nem tentaria impor que seja diferente disto; Afinal a ciência "mainstream", ou seja, a maioria dos cientistas e "acadêmicos" se apoiam no pressuposto "filosófico" materialista e consequentemente niilista, o que automaticamente classifica a ética como uma ideia impalpável ou até mesmo relativa. Até aí "tudo bem", se as demais áreas da ciência (física, biologia, química etc) não realiza estudos interseccionados com a filosofia; porém assumir tal postura na psicologia é contradizer a história da própria área.
Se as demais áreas da ciência se posicionarem como estudos estritamente materialistas, será preciso questionar: A ciência abandonou a ética? Afinal o argumento de que há neutralidade na ciência é obsoleto e análises históricas já mostram que essa ideia é falsa.
Ou a ciência aceita autoridade da filosofia para que se paute pela ética? Não parece haver um consenso do que exatamente é ciência hoje, mas imagino que a maioria dos cientistas não aceitariam a autoridade da filosofia, mesmo que esta se prove aberta ao diálogo transdisciplinar e com uma finalidade ética.
Se for feita a primeira escolha então (a de abandonar a ética), não é de se espantar: já citei as atrocidades da física, da química e da medicina (principalmente psiquiatria) ao longo da história em outros textos e tal escolha só provaria que a ciência não colabora com o desenvolvimento de uma humanidade mais ética, justa e equitativa.
Porém a psicologia deve permanecer inseparável da filosofia e isso não é defender só as abordagens fenomenológicas da área: é defender sua coerência proposta desde Wilhelm Wundt no século 19.
Não é preciso estabelecer o pressuposto filosófico de Wundt como um paradigma da psicologia, mas é urgente manter o aspecto filosófico de nossa área - ele serve para preservarmos um diálogo verdadeiramente equitativo não só com os pacientes mas também com os tratamentos integrativos e com os estudos multidisciplinares. Psicologia é ciência, mas também é filosofia! E todas as ciências humanas deveriam ser assim. Só assim manteremos uma epistemologia ética e inclusiva que não exclua cosmovisões!