O mal trato à criança não é algo supérfluo. Não é algo passageiro, que terminada a infância, a criança cresce e fica bem então "todos são felizes para sempre". Este mal trato que varia da recusa em dar afeto básico (seja carinho, atenção, lidar com paciência etc) até diversas violências (golpes físicos geralmente sem a criança entender porque está apanhando) tem seu impacto seja por causa que excede a capacidade da criança entender a opressão que sofreu ou porque traumatiza deixando sofrimentos ou limitações psicoemocionais.
Citei alguns casos neste texto de 2021: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2021/08/reflexoes-sobre-importancia-da-inocencia.html, onde possivelmente as crianças mencionadas crescerão (algumas já devem ser adolescentes enquanto escrevo este texto) sem referência de boas emoções e expressões de bons sentimentos! Sem terem sentido a segurança básica de um pai e/ ou de uma mãe em que podiam confiar e receber carinho ou ao menos uma atenção sem violência ou sem desprezo.
Estes maltratos aos quais me refiro não são eventuais - são frequentes e dominantes na vida de variadas crianças que viveram e vivem próximas de mim. Sendo dominantes, quais serão os parâmetros de sentimentos e emoções que elas terão após crescer? Como essas crianças poderão tratar alguém bem se nem sabem o que é isso?
Infelizmente estes casos parecem comuns e escrachadamente subnotificados mesmo porque seria muito difícil fazer uma pesquisa precisa com uma amostragem significante explicitando o cotidiano e os detalhes das relações destas crianças com seus cuidadores. Questionários podem ser feitos e aplicados em grandes públicos, mas um acompanhamento com levantamento de informações sobre a criação das crianças seria muito difícil. E como seriam ou serão as respostas de questionários sobre este tema? Certamente omitirão muitas das violências que mencionei, afinal quem responderia que trata suas crianças como estorvo na maior parte do tempo? Ou quem responderia que espanca ou estupra uma criança? Ninguém.
Este é um problema social que certamente deixa marcas na sociedade. E quando vemos pessoas apoiarem ou naturalizarem a violência no dia a dia, seja em qualquer setor da sociedade, deve haver uma ligação com a criação permeada de indiferença e/ ou de violência. Isto denota a necessidade e a importância de uma educação humana abrangente ao mesmo tempo que mostra o quão longe estamos de sermos uma civilização ética.
Seres humanos que desprezam ou torturam crianças certamente estão cagando e andando para falta de direitos básicos, para conquistas sociais, ou mesmo para uma política coerente e uma polícia que cumpra seu papel de defender a população. Ela acha a violência normal porque não aprendeu a gostar de ninguém ou só tem a violência como parâmetro de vida.
Porque candidatos que promovem o autoritarismo e a violência ganham eleições? Porque muitos acham normal a polícia matar trabalhadores sem prova alguma de que tenham cometido um crime? Porque acham normal um pastor pedir dinheiro, enriquecer e ignorar completamente os ensinamentos da própria religião? Porque acham normal um punhado de empresários terem fortunas enquanto muitos não tem nem o suficiente para se abrigar ou para comer? Porque achar normal crianças morrerem numa guerra?
Temos muitos problemas na civilização humana e enquanto aqueles que são os mais dependentes e indefesos forem desprezados ou mal tratados, os avanços éticos e sociais serão MUITO lentos...
Sentimentos e emoções são necessidades humanas desde a tenra infância - se uma criança não tem acesso aos bons sentimentos e emoções ela não se torna um robô, um réptil ou um inseto - ela NÃO se torna NEUTRA e MUITO MENOS FORTE. Força mental não é violência nem indiferença! Força mental é ter autocontole e saber conviver com respeito: é não se deixar ser dominado por sentimentos negativos nem por indiferença; é lidar sim com sentimentos negativos, mas também viver os bons sentimentos e expressá-los por meio de emoções saudáveis.
Eu já tinha alguma noção disto há anos e minha formação em psicologia confirmou minhas suspeitas anteriores de que, ao passar por tais situações indiferença prolongada e/ ou de violência intensa, a criança cresce transtornada, seja com depressão, ansiedade, ou com transtornos de personalidade como por exemplo, o limítrofe (borderline) onde a pessoa tem grandes dificuldades para identificar uma amizade verdadeira e para saber os limites das relações humanas conforme cada ambiente e a realidade de cada pessoa. Uma psiquê torturada desde a infância não se desenvolve de modo saudável porque ela é marcada com sofrimento profundo enraizado em sua história de vida.
Para piorar, acompanhando profissionais de saúde mental nas redes, vejo um amplo abandono das abordagens de base mais humana da psicologia (fenomenológicas, filosóficas) em prol das abordagens "científicas". E qual seria o problema disto? Nenhum se a ciência de fato se propusesse a estudar os sentimentos de maneira ética, ou seja, com diálogo em pé de igualdade com os pacientes e pessoas com sofrimento psicoemocional ou transtornos. Esta igualdade é altamente negada, seja de modo velado ou aberto e isso ocorre porque a ciência está repleta de profissionais medíocres. Mediocridade em lidar com o ser humano que sofre não é mera falta de técnica ou de conhecimento, é principalmente falta de empatia, falta de assumir a própria ignorância/ de deixar de lado pré suposições! É falta de diálogo respeitoso e equitativo e falta de uma finalidade ética que busque o bem do paciente e do maior número de pessoas possível - o bem coletivo não de um mero grupo de pessoas, mas o bem de pessoas com as mais diversas culturas e cosmovisões.
Só nestes 4 primeiros meses de 2025 eu vi três psicólogos pregando suas visões de mundo como se fossem a ciência em si, ou seja, como uma verdadeira construção de conhecimento que visa o bem estar psíquico do ser humano... Sendo dois destes psicólogos, supostos divulgadores científicos, com muitas dezenas de milhares de seguidores na internet. Estes dois, apesar de prováveis diferenças ente si, praticamente afirmam coisas do tipo "a ciência provou que Deus é uma invenção humana" (ou outras banalidades deste nível), mas... A ciência tem esta capacidade? E tem essa finalidade?
Um destes "psicólogos" espalha há anos o cientificismo, atacando diversas religiões e até espiritualidades independentes (sem religião) e não, ele não critica, ou raramente ataca, os comportamentos antiéticos de líderes enriquecidos de grandes religiões.
Para meu desprazer, o terceiro "psicólogo" (ao menos, espero que seja menos influente) veio com o velho discurso biologista: afirmou em uma entrevista para um canal/ site de psicologia, que a carga biológica é dominante no comportamento humano. Voltou um pouco atrás depois, afirmando que há um meio termo entre comportamento de origem genética e de origem social, para depois defender que a promiscuidade masculina é predominantemente biológica porque o homem ao longo da história lutou por várias parceiras sexuais etc...
Note que ele cita que há um máximo de 50% de dominância de comportamento social no ser humano, sendo o restante de origem biológica... Ele ignora fatores humanos existenciais como busca por sentido e a espiritualidade, mas vamos considerar que ele só quis estudar uma pequena faixa do comportamento humano - assim é importante questionar qual é a finalidade deste estudo "comportamental" que submete o ser humano ao domínio das áreas da biologia? Primeiro vale notar que ele submete a psicologia às áreas biológicas, sejam a genética, a neurologia e/ ou a psiquiatria. Estas áreas já têm prestígio o suficiente na academia então qual é a serventia dessa "explanação"? Em segundo lugar, quais evidências mensuráveis este "cientista" do comportamento tem de que o homem lutou por várias parceiras sexuais ao longo da história? Não existiram sociedades matriarcais na Terra? Ele só fez uma comparação superficial do homem com outros mamíferos e não citou quais são estas espécies nem quais são as semelhanças ou diferenças entre elas e o ser humano! Ele não citou em que época esse comportamento masculino ocorreu certamente porque deduziu que ocorreu na "pré história", mas em qual período dos cerca de 200.000 anos de homo sapiens isto ocorreu? Quantos e quais agrupamentos humanos tiveram uma dominância de homens poligâmicos? Ou ele quis dizer, que líderes machos da maioria das sociedades, sejam elas tribais ou urbanas, tinham múltiplas parceiras sexuais sem existir o caso contrário (de líderes mulheres) ao longo de todos os 200.000 anos do homo sapiens?? Que estudo biológico prova definitivamente que o desejo sexual é mais incontrolável no homem do que na mulher? Oras, se foi analisado o comportamento externalizado de uma grande amostragem de homens (o que eu duvido), o estudo em si foi mais social do que biológico. Sendo comportamento externo/ observável, o estudo deveria levar em conta a criação familiar de cada homem, seus valores, se tais homens tentaram ou não se autocontrolar, quais influências sociais que eles recebem - de amigos, de parentes ou de mídias etc.
Tendo em vista todas essas informações ignoradas pelo "cientista" do comportamento, nota-se que há pouquíssima mensurabilidade em suas deduções. Um "estudo" que reduz ou ignora a vasta gama de fatores sociais, psíquicos e existenciais, é mera opinião de viés simplista que reduz o ser humano ao seu aspecto biológico!
Em terceiro lugar, há uma finalidade coerente com a ética neste "estudo científico" de baixa mensurabilidade e apoiado em lacunas da história pré escrita, sobre comportamento humano? É um estudo que visa o bem do ser humano a nível coletivo, respeitando a diversidade de culturas e cosmovisões? Levou em consideração a vasta e complexa rede de fatores historicamente psicossociais?
Não é o que parece!
Vivemos numa sociedade ainda permeada por injustiça, indiferença e desigualdade - para que um profissional da "saúde mental" discursa publicamente sobre uma teoria de viés biologista?? Normalizando, ou correndo o risco de normalizar comportamentos como a promiscuidade masculina, que geram conflitos em relações humanas (sejam sociais ou familiares) e que frequentemente também geram sofrimento psicoemocional.
Por fim, este texto pode parecer um desabafo (e é isso também), mas é um questionamento empático sobre os rumos do ser humano e um questionamento ético e epistemológico sobre as áreas que estudam a saúde mental e o comportamento humano.
Espero que estes questionamentos sejam úteis ou benéficos... embora eu não espere nenhum alcance significativo com este texto.
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