Breves observações sobre Teeteto (Da episteme, do conhecimento)

Embora tido como um dos escritos da última fase de Platão (em seu estágio idoso), a obra trata do diálogo de Sócrates com o jovem Teeteto (Theaitétos) que teria ocorrido algum tempo após o diálogo com Lisis. Sócrates inicia o diálogo sobre o que é o conhecimento deixando Teeteto falar e depois, estabelecendo bases ou padrões teóricos que tratam de conceitos, de certa forma, contrários ou críticos aos materialistas (aos que "só acreditam na existência daquilo que eles são capazes de segurar com as duas mãos"): 

"Sócrates diz: (…) diremos, logo de início, segundo penso, que jamais alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se manteve igual a Si mesma. Não é verdade? 

Teeteto — Exato. 

Sócrates — Em segundo lugar, uma coisa a que nada se acrescente e de que nada se tire, não aumentará nem desaparecerá, porém continuará sempre igual. 

Teeteto — Incontestavelmente. 

Sócrates — E não poderemos apresentar mais um postulado, seria o terceiro, nos seguintes termos: que não existia antes, não poderia ter existido sem formar-se ou ter sido formado? 

Teeteto — É também o que eu penso. 

Sócrates — (…) o principio de que pende tudo o que acabamos de expor é que só há movimento e que, fora disso, nada existe, havendo duas espécies de movimento, ambas de número infinito: uma de força ativa e outra de força passiva. Da união de ambas e da fricção recíproca nasce prole de número infinito porém sempre aos pares: um dos termos é objeto da sensação; o outro, a própria sensação. Damos as sensações vários nomes, tais como: visões, audições, olfações, frio e quente, e também prazeres, dores, desejos, temor e muitos outros. Infinitas são as anônimas; numerosíssimas as que têm nome. Por sua vez, o gênero dos sensíveis tem cognatos correspondentes a cada uma dessas sensações: para as inúmeras visões, cores de perder a conta; para as audições, os sons em igual variedade, e para as outras sensações, outros tantos objetos sensíveis, que lhes são aparentados.

…Sócrates continua: Ainda há a possibilidade, me parece, de sermos um para o outro alguma coisa, ele e eu, ou que venhamos a ser algo em virtude dessa correlação, ligados reciprocamente, não a qualquer outra existência nem mesmo a nós próprios. Só resta essa relação de reciprocidade. Por isso mesmo, se se disser que alguma coisa existe ou devém, será preciso acrescentar que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação a alguma coisa. 

[157e] ... Não descuidemos de um ponto que essa teoria (de Protágoras) é falha. Ainda não falamos dos sonhos, das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem das alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião unânime é que todos esses casos concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, uma vez que em tais casos as nossas sensações certamente se revelam de todo o ponto falsas, e muito longe de ser verdadeira está a afirmação de que todas as coisas que aparecem ao indivíduo também são*, nada, pelo contrário, existe tal como nos aparece.   

*O autor também critica o "vir a ser contínuo" de Heráclito neste trecho.

(…) Sócrates — Queres saber, Teodoro, o que me admira em teu amigo Protágoras? 

Teodoro — Que será? 

 Sócrates — De modo geral, agrada-me sua doutrina, de que tudo o que aparece para alguém, existe para essa pessoa. Só o começo de sua proposição é que me surpreende, por ele não dizer logo no início de sua obra, A Verdade, que a medida de todas as coisas é o porco ou o cinocéfalo ou qualquer outro animal mais esquisito ainda, porém capaz de sensações. Seria o melhor prefácio para um discurso a um tempo brilhante e desdenhoso, com mostrar-nos que, se o admiramos como a uma divindade por causa de sua sabedoria, em matéria de discernimento ele não bate nem os girinos, quanto mais um ser humano. 

Como diremos, Teodoro? Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação; se as impressões de alguém não encontram melhor juiz senão ele mesmo, e se ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras ou falsas, formando, ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em todos os casos serão justas e verdadeiras: de que jeito, amigo, Protágoras terá sido sábio, a ponto de passar por digno de ensinar os outros e de receber salários astronômicos, e por que razão teremos nós de ser ignorantes e de freqüentar suas aulas, se cada um for a medida de sua própria sabedoria? Não nos assiste o direito de afirmar que tudo isso na boca de Protágoras não passava de frase para armar o efeito? No que me diz respeito e à minha arte de parteiro, nem me refiro ao ridículo que provocamos, o que, aliás, se poderia tornar extensivo a toda a arte da conversação. Pois analisar e procurar refutar as fantasias e opiniões de outras pessoas, dado que todas sejam certas para cada um de nós, não será o cúmulo da sensaboria e da tolice, se A Verdade de Protágoras for realmente verdadeira e se ele não estava pilheriando, quando doutrinava dos penetrais sagrados do seu livro? 

Sócrates continua a crítica à teoria de Protágoras: Pois vou ver se consigo explicar melhor meu pensamento. O que perguntamos foi se um indivíduo que aprendeu alguma coisa e dela ainda se recorda, pode deixar de conhecê-la; e depois de demonstrar que quem vê determinado objeto e, logo a seguir, fecha os olhos, deixando, assim, de vê-lo sem deixar de lembrar-se dele, concluímos que ele juntamente se recorda e não conhece, o que é impossível. A este modo, liquidamos o mito de Protágoras e também o teu (Teeteto), visto considerares idênticos conhecimento e sensação. 

Sócrates então passa a descrever os que pertencem ao seu círculo, ou seja os filósofos: Estes sofrem variadas dificuldades e zombarias porque não se apegam às banalidades que a maioria das pessoas se apegam, como riquezas materiais, honrarias, ancestralidade familiar, discursos de bajulação e de jactância. Sócrates então continua: 

[176c] (…) Porém no caso, amigo, de conseguir ele (o filósofo) arrastar alguém para as alturas em que se encontra e de induzir este outro a sair das perguntas: Em que te ofendi? ou Em que me ofendeste? para considerar a justiça ou a injustiça em si mesmas e procurar saber em que uma difere da outra ou de tudo o mais, desistindo de aplicar-se a temas como o de saber se é feliz o Rei ou quem for possuidor de montões de ouro, para estudar a realeza em geral ou a felicidade e a desgraça do homem em universal, em que consistem e de que modo convém à natureza humana adquirir uma e fugir da outra: quando aquele indivíduo de alma pequenina, afiada e chicanista se vê obrigado a responder a todas essas questões, então, é sua a vez de sofrer o mesmo castigo: sente vertigens na altura a que se viu guindado, e por falta de hábito de sondar com a vista o abismo fica com medo, atrapalha-se todo e mal consegue balbuciar, tornando-se objeto de galhofa não apenas das raparigas trácias ou das pessoas incultas em geral, pois todos estes são incapazes de notar o ridículo da situação, como de quantos receberam educação contrária à dos escravos. Eis aí, Teodoro, a condição desses dois tipos. Um, educado realmente com liberdade e lazer (ócio), a quem dás o nome de filósofo, não merece ser vituperado por fazer figura simplória e revelar-se imprestável quando se vê às voltas com alguma ocupação servil, como, por exemplo, não saber amarrar os cobertores na hora de viajar nem temperar alimentos ou preparar discursos bajulatórios. O outro é capaz de fazer tudo isso com rapidez e perfeição, porém não saberá arranjar o manto no ombro direito como o faz o homem livre, e muito menos, apanhando a música do discurso, entoar condignamente o hino da verdadeira vida dos deuses e dos varões bem-aventurados (venturosos). 

Teodoro — Se conseguisses, Sócrates, convencer todo o mundo da verdade do que disseste como fizeste comigo, haveria mais paz e menos males entre os homens. 

Sócrates — É certo, Teodoro. Porém não é possível eliminar os males — forçoso é haver sempre o que se oponha ao bem — nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável circularem nesta região, pelo meio da natureza perecível. Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a verdade, meu excelente amigo, é que não é fácil convencer ninguém de que as razões consideradas válidas pela maioria para fugir do vício e procurar a virtude não são as que levam um a cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não passa de história de velhas, como se diz." 

Sócrates então explica que os argumentos da teoria relativista e sensorial de Protágoras, ao afirmarem que "o homem é a medida de todas as coisas" (e que não há uma verdade universal nem absoluta; somente há verdades que cada um percebe) não discerniriam o conhecimento de um médico perante um leigo sobre um determinado sintoma, nem o conhecimento de um cozinheiro diante um cliente sobre como preparar o sabor dos alimentos, nem de um músico ante um outro profissional em relação a como tocar um instrumento ou compor uma música etc. Se a verdade só existisse para cada ser humano que a percebesse, então não haveria como construir conhecimento.

Assim, Sócrates indica que teorias como a de Protágoras são exageradas/ uma grande distorção dos fatos: Apoiada na ideia de que o que é percebido sensorialmente pelo homem é a verdade, esta teoria sensorial e materialista mostra-se relativista, pois tudo o que cada ser vivo percebe individualmente seria a verdade absoluta (e portanto nada seria tal verdade), não havendo uma verdade comum/ universal. De acordo com tais argumentos, tudo seria relativo a cada ser, e assim, não haveria um conhecimento verdadeiro, só a percepção de cada ser poderia ser considerada "conhecimento".

Após refutar a teoria de Protágoras, Sócrates também investiga a teoria dos melissos (Parmênides) de que tudo é um, estático, imóvel (aparentemente o contrário da teoria de Protágoras). Para isso, ele e Teeteto analisam e descrevem o que são os sentidos e por onde eles ocorrem. Entende-se que os sentidos, apesar de captarem imagens, sons, cheiros e sabores, não fazem o processo de identificação, medição, comparação do que é similar ou diferente entre si etc. Estas últimas habilidades são feitas pela alma, ou seja, pela mente (psique), certamente no processo denominado de cognição, séculos após Platão escrever suas obras. É pela atividade da mente, que comparamos sensações passadas com as presentes e especulamos sobre o futuro em busca da verdade. Assim ambos separam a sensação (a percepção através dos sentidos) do conhecimento.

 

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