Humanizar requer desmercantilizar

Reflexões atuais sobre a ideologia capitalista

Em meio a termos técnicos e argumentos pró-acúmulo de capital, a economia tomada por ideologias financistas e capitalistas, segue ditando regras indiretamente para as sociedades; Além de reforçar a utilização do dinheiro para o maior número de atividades possíveis (e impossíveis), tais ideologias contém "receitas" de como se adquirir mais e mais dinheiro, sempre como prioridade, acima de questões sociais e humanas. E adquirir mais e mais dinheiro infinitamente é impossível porque a quantidade de dinheiro em circulação é limitada por um conceito chamado lastro. O lastro é um tipo de limite de produção do dinheiro baseado em um suposto elo deste com um recurso natural palpável das nações (houve uma época que o dinheiro foi vinculado ao ouro, outra época ao petróleo, mas não há regra bem definida). Este elo é só suposto e não pode ser provado nem rastreado com precisão e clareza por causa de uma série de falcatruas feitas por quem define estas regras de produção do dinheiro a nível mundial: Os bilionários e/ ou trilionários.

Tais absurdos, através de uma tecnicidade, da manipulação de terminologias e do intelectualismo, se disfarçam de ciências, e assim, invadem os campos do saber, desvirtuando-os... Ou mais especificamente, desumanizando-os. 

Para mais detalhes sobre como ocorrem distorções no valor do dinheiro, comercialização de ações e propagação da ideologia financeira, leiam este texto: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/01/a-ideologia-financeira-quais-os.html 

No que se refere às questões humanas, é importante indicar os impactos nestes assuntos: Ao esconder a importância de questões sociais e humanas na economia e na política (na legislação, jurisdição, direitos etc), as ideologias financistas/ capitalistas, invadem a cultura do ser humano em níveis coletivo e individual. Discursos "meritocráticos", culpabilização dos pobres por sua respectiva pobreza e idolatria de multimilionários acompanham paralelamente a linguagem rebuscada e tecnicista da economia tomada pelas ideologias capitalistas e afins, além de dificultar o entendimento do mercado financeiro e suas contradições. Estas ideologias estão por trás dos sistemas (sócio)econômicos predominantes nas nações, como por exemplo, estão por trás do liberalismo, do neoliberalismo e (em menor grau) do socialismo... 

Além disto, a cultura das sociedades humanas caracterizada por predominâncias de gostos musicais, alimentos/ pratos típicos, vestimentas, linguagem, entre outros elementos, acaba toda permeada pela objetificação, pela lucratividade e pelo imediatismo; É uma consequência lógica da incitação à busca incessante por dinheiro, status e enfim, por riquezas e prazeres materiais. Incitar sociedades, ou seja, enormes grupos de pessoas, a tais atitudes e comportamentos é bem perigoso, porque é uma propagação de egoísmo/ individualismo. 

Oras, se há a propagação de imediatismo (pressa para fazer tudo, perda rápida de interesse/ impaciência, busca por momentos de fama em redes sociais etc) e da objetificação (super valorização da aparência/ culto ao corpo, exibicionismo em redes sociais, hipersexualização, desprezo pelos sentimentos e pela subjetividade dos seres humanos etc), o que sobra da cultura humana? Como ficam as vestimentas e o modo de se vestir? Como ficam as músicas, suas mensagens e as preferências musicais? Como ficam os alimentos e a alimentação? Como fica o meio ambiente?

Se há idolatria de multimilionários, propagação de meritocracia e da busca incessante por dinheiro, como ficam as identidades sociais? Como as pessoas se percebem dentro da sociedade/ do coletivo? Como ficam os agrupamentos das pessoas (as antigas tribos sociais)? Não assumem rivalidades? Não passam a se fechar em grupos que se atacam mutuamente? Não passam a ignorar tudo o que não for próximo deles? 

Todos estes aspectos das culturas humanas a nível coletivo esteve sendo e ainda está sendo invadido por uma ideologia financista e capitalista desde a revolução industrial. E se intensificou entre os anos 50 (pós guerras) e os anos 80 (quando as mega corporações começaram a influenciar severamente os governos ocidentais). E vem se intensificando novamente, desde a difusão ou "febre" das redes sociais, iniciada "pelo Facebook" no fim da 1ª década deste século 21. Hoje temos outras redes sociais (algumas do mesmo dono) e todas elas adotaram um modelo de algoritmo que prioriza a capitalização (dos conteúdos na internet) e o lucro (deles mesmos). 

Para piorar, este impacto não se limita ao nível cultural/ social/ ambiental, pois é claro que, se afeta as sociedades como coletivos, também afeta seus membros, os indivíduos e suas respectivas subjetividades, suas psiquês (pensamentos, sentimentos, valores...), comportamentos etc. Aqui entra a importância de se defender a saúde emocional e mental das pessoas! Sentimentos, valores, sentido existencial, capacidade e ritmo de aprendizagem conforme a utilização de seu raciocínio, memórias etc. Como defender todos estes aspectos psicológicos/ emocionais e sociais diante massivas propagandas típicas do sistema dominante? Diante todas as falácias desumanizadoras mencionadas? 

De fato, muitas pessoas se adaptam ao estilo de vida desumanizado e frenético dos sistemas de ideologia capitalista, ainda que sofrendo seus impactos nocivos e possíveis sequelas sejam psicoemocionais, físicas ou ambas. 

Mas quantos destes indivíduos que se adaptam, não escolheriam outro estilo de vida e/ ou outro sistema socioeconômico? Um sistema que dita as regras da sociedade, seja das nações ou de toda civilização, através da economia, da política, da religião, da mídia de massa e de outras forças repressoras. Alternativas de ideologias que ditam regras dos sistemas sociais e econômicos praticamente nunca foram ofertadas: Elas foram impostas ao longo da história através de elites intelectuais e econômicas ou através de líderes políticos, religiosos e militares. Como já citei, por trás dos sistemas econômicos/ sociais, existe(m) ideologia(s)... e toda ideologia tem alguma(s) prioridade(s) e/ ou intencionalidade.

Há quem aposte em revoluções sociais em busca de mudanças, porém não é a violência que gera progresso. A reação violenta pode ter servido em momentos da história onde não haviam outras alternativas disponíveis... Mas alegar que a revolução violenta é a única solução para a sociedade progredir ou para implementar um sistema mais justo e equitativo é um reducionismo ou uma falácia. 

Um Resumo Histórico

Eu costumo citar que o feudalismo europeu dominado pelo poder religioso católico, começou a ruir devido a classes sociais intermediárias da era medieval, das quais pouco se falam. Resumidamente, os burgos e seus habitantes (burgueses) surgiram devido a necessidade inevitável da obtenção de determinados produtos por determinadas sociedades por volta do século 13 e isto muita gente sabe. Então o mercado não pôde ser impedido pela igreja naquela época: Veneza, Gênova, Florença, ligas ou guildas germânicas e bálticas conseguiram se libertar relativamente do poderio religioso e aristocrático, gradualmente enriquecendo e formando uma 3ª classe poderosa nas nações ocidentais: a burguesia. Só que o dinheiro em si não toma decisões, assim como o mercador (burguês, no caso) que enriquece, não necessariamente se desenvolve intelectualmente ou empaticamente. 

Os pensadores que começaram a espalhar severas críticas aos 2 maiores poderes medievais (nobreza e igreja), apontando suas mentiras, opressões e violências, eram filósofos. E não eram naturalistas, mas sim, pensadores muito mais voltados às questões de moral e ética, seja religiosa ou temporal: Após um período de teólogos críticos à corrupção na igreja e nas aristocracias (entre o final do século 14 e meados do século 15), os humanistas passaram a fomentar mais liberdade, baseando-se em escritos da Grécia Clássica, questionando os poderosos da 2ª metade do século 15 e de todo o século 16. Na Europa então, os humanistas que defenderam um governo e uma espiritualidade mais comprometida com o progresso e com a ética, voltaram a propagar as obras de Platão (e Sócrates), enquanto os que criticavam mais a repressão e a hipocrisia das igrejas, se apoiavam em obras gregas não espiritualistas, como as de filósofos estoicos e epicuristas. Este período em que a filosofia ganhou mais autonomia diante as igrejas, foi o mesmo período em que as artes passaram a ser mais difundidas pela Europa: A renascença. Ocorreram conflitos? Revoltas e guerras? Perseguições e execuções? Sim! Mas não foram as ações violentas que modificaram leis, constituições, nem influenciaram valores individuais e coletivos. Mesmo porque a violência fez muito mais vítimas entre os revoltosos e denunciantes, do que entre os opressores e denunciados (as forças do "status quo"). Foi a fomentação de saberes voltados às questões éticas a nível não só individual, mas principalmente coletivo! 

A etimologia da palavra revolução remete à "re-evoluir", ou seja, voltar a evoluir, certamente indicando que se trata de um processo de evolução, mas não só um processo gradual e estável ou tranquilo, mas também um processo de quebra com tradições impeditivas, rompimento com sistemas injustos e denúncia de ideologias falaciosas e nocivas. De fato, elites que se consolidam no poder, dificilmente abrem a mão de seus vastos privilégios e os vastos grupos de pessoas que ficam e condições de vida precárias e perigosas precisam de uma reparação - de uma oportunidade para reconstruirem suas vidas. Neste ponto urgente é que geralmente surge um movimento para se arrancar o poder de tais elites tão nocivas para a sociedade. 

Ainda no início da renascença, o movimento dos filósofos humanistas foi seguido pela divisão (ou "reforma") da igreja católica, justamente por causa deste tipo de situação. A reforma atraiu as baixas classes sociais germânicas e quebrou o poder religioso católico dando origem às igrejas cristãs protestantes. Porém a burguesia vinha crescendo sem oferecer solução para as multidões de camponeses empobrecidos das nações europeias. Os 3 movimentos críticos de teólogos e filósofos, tinham escancarado as mentiras, a opressão e a ganância de líderes da religião católica e das aristocracias, mas as revoltas das classes mais pobres geralmente acabavam esmagadas (revolta camponesa/ lollard da Inglaterra de 1381) ou traídas por parcelas mais enriquecidas (guerras hussitas de 1420-1434 e guerra dos camponeses germânicos de 1524-1525). 

Nota-se que praticamente em todos os casos, as classes mais enriquecidas têm o maior poder bélico, ou poder de repressão em mãos. Naquela época de mudança de sistema sócio econômico, ocorreu uma certa mudança ideológica, mesmo inexistindo o acesso à informação para a maioria das pessoas. A classe letrada crescia timidamente, pois a imprensa desenvolvida por Gutenberg de fato ajudou os humanistas e os protestantes, mas não alcançou a maioria da população européia que ainda era camponesa. Com uma nova classe social ganhando poder através do mercado (a burguesia), o feudalismo foi substituído pelo mercantilismo, ou seja, trocou-se um sistema social/econômico baseado em ideologias centradas em lealdade e autoridade, por um sistema de ideologia mais utilitária e acumuladora. Talvez nesta época nenhum dos sistemas se sobressaísse como melhor para civilização, pois havia algum equilíbrio de poder: Esta 3ª classe (de burgueses) passou a rivalizar com as duas anteriores (as aristocracias/ nobreza e o clero católico) em busca de poder. Os principais recursos para ascensão dos burgueses então podem ser resumidos superficialmente em dois: Alianças com o "novo" clero protestante e utilização de mão de obra mais barata do que a camponesa... Ou seja, a mão de obra escravizada. Porém, possivelmente por causa da vaga difusão da ética entre os filósofos europeus, as elites preferiram poupar povos de seu próprio continente... Todas as 3 classes poderosas, incluindo todas igrejas cristãs passaram a usufruir dos povos escravizados da América ou da África, em busca de mais riqueza e poder, e é claro, muitas outras rebeliões, guerras e alguns movimentos revolucionários ocorreram "cá e lá" nos séculos seguintes até a revolução industrial. Mas estes temas eu abordei em outro texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/01/para-quem-serve-e-o-que-e-capitalismo.html 

As igrejas perderam mais um pouco de sua influência com a revolução científica (e filosófica), que ocorreu entre 1640 e 1700, e as demais classes (nobreza e burguesia) assumem a proeminência do poder e das guerras espalhando-se da Europa para o resto do mundo. Embora houvesse um árduo e lento progresso ético ocorrendo nas civilizações, os grupos de indivíduos das elites, em sua busca incessante por riquezas, obviamente seguiram insensíveis aos preconceitos, opressões e violências, ou em alguns casos, até mesmo fomentaram movimentos desumanizadores.

O desenvolver da filosofia e as revoluções mudaram o sistema sócio econômico, substituindo o mercantilismo pelo liberalismo, porém as duas classes proeminentes da elite do ocidente, a grosso modo, basicamente só mudaram seus nomes para classe política (governantes, legisladores e juízes) e classe econômica (grandes empresários e suas corporações). Os interesses e conflitos destes grupos chegaram em seu ápice entre as duas guerras mundiais do início do século 20. Do fim deste período em diante se espalham as mídias de massa (rádio, tv, jornal etc), e muito dos interesses das elites multimilionárias e insaciáveis passaram a se aproveitar destes meios para tentar manipular as sociedades. 

A guerra fria entre o socialismo e o liberalismo é vencida pelo último, que para sobreviver às crises e continuar a predar a sociedade e o meio ambiente, ganha uma "nova roupagem" sob o nome de neo-liberalismo

De volta à atualidade 

Após os anos 2000 o acesso à internet cresceu de modo exponencial: de uma pequena parcela de classes médias e altas, inúmeras pessoas passaram a adquirir acesso à internet através de computadores e principalmente de celulares. Não são itens exatamente baratos, mas as massas adquirem se adaptando aos discursos manipuladores. Tais recursos poderiam ser usados para a difusão de informações como a consciência social e a humanização, mas também há dificuldades neste meio: Grandes empresas da internet dificultam a difusão de bons conteúdos priorizando os mais lucrativos. (já mencionei isto no início deste texto)

Ao longo de todo o período mencionado, nem as classes militares, supostamente responsáveis pela segurança dos cidadãos de suas nações, e nem as classes sociais mais baixas foram instruídas de modo a entender a realidade que os cercam. Não recebem uma educação de conscientização social, muito menos uma educação humanizadora ou empática. A primeira classe, a militar, não é instruída por motivos óbvios: ela é mantida por elites para obedecer sem questionar e para reprimir possíveis manifestações que questionam ou expõem injustiças. A segunda classe não é bem instruída sobre a sociedade/ o meio onde vivem, para que possa servir o mercado questionando menos, ou seja, para servir sob condições difíceis ou mesmo degradantes, seus líderes, os empresários multimilionários e suas corporações. 

Há chance de uma revolução conflitiva vencer tais injustiças e forças opressoras? Eu duvido. Me resta apostar na educação e, talvez, quem sabe, na divulgação de informações - exposição dos podres do sistema, sua ideologia precificadora (capitalista) e suas várias instituições, sejam públicas e principalmente privadas. A retórica capitalista é materialista, pois é objetificadora e tem que ser exposta, mesmo que não possamos ver frutos nesta geração nem nas próximas. 

Embora ainda seja uma ideologia (pressuposto) dominante nas ciências, o materialismo não contradiz o capitalismo, nem é eficaz para combatê-lo, pois a ideologia financeira é materialista/ niilista! O materialismo serve o capitalismo/ ao financismo. Ambos são ideologias niilistas e o niilismo é a pregação do nada. (Já expliquei em outros textos que o materialismo é niilista pelo fato de negar o conceito de mente, negar espiritualidades, subjetividades etc.)

Para se defender a saúde mental (psico-emocional) das pessoas, seus direitos e sua cultura (acesso às artes, espaços de valorização das culturas, liberdade de variadas práticas religiosas etc) é preciso ir bem além das ideologias materialistas/niilistas, pois é preciso difundir a importância da ética e de valores universais, como a empatia, a equidade e a solidariedade. A ética e os valores universais são idéias e portanto podem ser considerados parte de pressupostos idealistas, mas são ideias que precisam ser colocadas em prática e mantidas no convívio dos seres vivos.

 

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