Breves Observações sobre Laques (Da “Coragem”)

O diálogo entre Melésias, Lisímaco, Laques (um general ateniense), Sócrates e Nícias (um general e político ateniense) aborda a questão da “andreías”*, que significa coragem e virilidade, mais no sentido masculino. Certamente o fato de tal palavra ter tal significado e utilização fazia parte da cultura grega de modo geral, que priorizava e privilegiava os homens e oprimia a mulher. Ainda que Sócrates e Platão fossem mais abertos à inclusão da mulher nos círculos sociais/ acadêmicos, eles estavam inseridos no contexto histórico e não chegavam a abandonar ou contrariar a utilização de termos como este. 

*Esta palavra está relacionada ao termo "andros" que significa homem (masculino) e é empregada como prefixo ou sufixo em várias palavras e nomes na língua portuguesa: Alexandro (defensor de homens), Andrógino (homem-mulher, ou seja, meio termo entre ambos ou mistura de ambos), Andróide (similar ao homem) etc.

No início deste diálogo os generais Nícias e Laques têm diferentes opiniões sobre a demonstração de luta encouraçada que assistiram e se esta será útil de se ensinar às futuras gerações ou não. Sócrates é convidado a dar seu parecer, como se tivesse que decidir qual deles estaria certo. O filósofo então sugere que os seus interlocutores se pautem pelo conhecimento (episteme) e não pelo critério do maior número (de opiniões). Para isto Sócrates diz à Nícias, que não se deve prender-se ao meio (no caso a luta com couraça), mas sim ao objetivo, à finalidade. Aquele que oferece a informação do que é útil de se ensinar às futuras gerações então deve ser perito no tratamento (therapeían) do objeto em pauta/ em consideração e esse objeto é a alma (psiquê) dos jovens. 

Após mais algumas trocas de palavras, Sócrates sugere que pode ser mais produtivo abordar o que é a virtude, mas não ela como um todo, pois seria um assunto muito extenso - o filósofo sugere que o diálogo comece a partir da virtude mais útil para os guerreiros e para a batalha: a coragem (andreias). Laques então diz que é fácil definir o que é a coragem: é não abandonar seu posto em batalha e enfrentar o inimigo sem fugir. Sócrates então dá exemplos de exércitos de guerreiros que batem em retirada, mas voltam a combater os inimigos, e assim, obtém a vitória em batalha. Laques tenta argumentar que tais casos são de cavalaria e não de infantaria, ao que Sócrates rebate argumentando que a infantaria espartana (lacedemônia) também utiliza-se da retirada como estratégia de batalha para furar linhas de defesas adversárias. Sócrates completa dizendo que busca a definição de coragem em variadas situações e não só nas batalhas e guerras: na navegação, na doença, na pobreza e nos negócios do estado. Laques então supõe que a coragem possa ser um tipo de resistência (ou determinação) da alma (psiquê), ao que Sócrates responde que a coragem (andreias) sendo parte da virtude não pode ser tola, desprezível ou reprovável. Sócrates segue explicando que a resistência da psiquê (ou determinação) pode se manifestar em comportamentos bons, mas também nos nocivos e errôneos, o que a descaracteriza como coragem ou qualquer outra parte da virtude. 

Sócrates então convida Nicias para dar seu parecer sobre a coragem e este então diz que é uma espécie de conhecimento (episteme). Sócrates pergunta que tipo de conhecimento seria a coragem, ao que Nícias responde que trata-se do saber o que é temível e o que inspira confiança ou audácia. Laques acha a opinião de Nicias absurda e diz que não há sabedoria (sofia) na coragem. Nicias então tenta desvincular o conhecimento de sua visão da coragem sem desvincular o “saber”, ao que Laques insinua que desta forma só os “manteis” (adivinhos, profetas, praticantes de magia divinatória) saberiam o que enfrentar e o que temer. Nicias então contra argumenta dizendo que não considera os praticantes de adivinhação detentores de tal saber. Laques diz que desta forma só os deuses teriam a coragem e diz achar que Nícias está só inventando argumentos para esconder que não sabe de nada sobre o assunto. Sócrates diz que é importante não vincular a coragem aos animais, pois estes não possuem sabedoria - não sabem de coisa alguma. Laques então pergunta à Nícias se os animais poderiam ser considerados corajosos, ao que o general responde que não, pois também não considera as crianças corajosas, pois elas nada sabem. Crianças e animais então poderiam ser temerárias, o que é diferente de ser corajoso, explica Nícias. Laques e Nícias “trocam farpas” e Sócrates diz para o primeiro não se irritar, pois o velho general e político ateniense “anda com Damom, um amigo de sofistas” e que são mestres neste tipo de argumentação (que inclui prolixidade e provocações). Sócrates então pergunta à Nícias se a coragem como os demais conhecimentos não se limita só ao futuro, abrangendo também presente e passado. Pois o conhecimento somente do futuro de um determinado tema, seria só um terço de um conhecimento. O general concorda que a coragem também trata do presente e do passado como os demais conhecimentos. Sócrates então diz que, a coragem sendo também uma virtude, trataria de saber tudo o que deve-se temer e tudo que inspira confiança e audácia, tanto no passado, como no presente e no futuro. Porém isto estaria mais simpático ao todo da virtude do que uma parte da virtude. Nícias então alega que disse o suficiente sobre o tema e que se algo não foi suficiente poderá ser corrigido posteriormente. 

Quando é sugerido que Sócrates passe a instruir os filhos dos generais, o filósofo argumenta que nem ele, nem os demais deveriam ser escolhidos para tal tarefa, pois todos fracassaram em entender o que é “andreias” (“coragem”). Sócrates sugere que todos busquem saber o que é a coragem, ao que Lisímaco responde convidando-o para planejar ir à escola no dia seguinte. 

Sócrates responde: “Lisímaco, não deixarei de ir à tua casa amanhã, queira o Deus.* 

*Esta é um tipo de fala polêmica que surge nos diálogos de Sócrates. A religião popular grega era politeísta, embora religiões como a órfica possam ser interpretadas de modo diferente da “mitologia” centrada nos poemas de Homero e Hesíodo. Muitos estudiosos interpretam o deus de Sócrates e de Platão como se fosse Zeus ou Apolo, mas a verdade é que isto não é um fato óbvio e talvez nem seja preciso. Alguns tradutores utilizam o termo “Deus” com maiúscula, outros utilizam com a inicial minúscula. 

Em Filebo, fica claro que o Deus dos filósofos (Sócrates e Platão) é “nous”, a inteligência divina. Isto pode ter relação com nous, “a mente cósmica apresentada por Anaxágoras”, ou também com o conceito de “uno” de Parmênides

 

 

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