Observações sobre Filebo (Do Prazer e da Ética)

Filebo (Do Prazer e da Ética) 

Esta obra de Platão leva o nome do personagem que acreditava que o bem era o prazer. Para Filebos, uma vida onde prioriza-se os prazeres seria o ideal, a vida perfeita, o verdadeiro bem. Sócrates discorda alegando a importância da mente: Da Inteligência, da Sabedoria e do Conhecimento para se alcançar o verdadeiro Bem. Filebo deixa a discussão seguir entre seu colega Protarco e Sócrates.

16b-17a "Sócrates – Meninos, o caminho recomendado por Filebo não existe. Não há nem pode haver caminho mais belo do que o que eu sempre amei, mas que perco muito freqüentemente, ficando sempre na maior perplexidade. 

Protarco – Qual é? Basta que o menciones. 

Sócrates – Indicá-lo é fácil; difícil acima de tudo é percorrê-lo. Foi graças a esse método que se descobriu tudo o que se diz a respeito às artes. Considera o seguinte. 

Protarco – Podes falar. 

Sócrates – Até onde o compreendo, trata-se de um dádiva dos deuses para os homens, jogada aqui para baixo por intermediário de algum Prometeu, juntamente com um fogo de muito brilho*. Os antigos, que eram melhores do que nós e viviam mais perto dos deuses, nos conservaram essa tradição: que tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito. Uma vez que tudo está coordenado dessa maneira, precisamos procurar em todas coisas sua idéia peculiar, pois sem dúvida nenhuma a encontraremos. Depois dessa primeira idéia, teremos de procurar mais duas, se houver duas, ou mais três, ou qualquer outro número, procedendo assim com todas, até chegarmos a saber não apenas que a unidade primitiva é una e múltipla e infinita, como também quantas espécies ela contém. Não devemos aplicar a pluralidade a idéia do infinito sem primeiro precisar quantos números ela abrange, desde o infinito até à unidade; só então soltaremos a unidade de cada coisa, para que se perca livremente no infinito. Conforme disse, foram os deuses que nos mimosearam com essa arte de investigar e aprender e de nos instruirmos uns com os outros. Mas os sábios de nosso tempo assentam ao acaso o uno e o múltiplo com mais pressa ou lentidão do que fora necessário, saltando indevidamente da unidade para o infinito, com o que lhes escapam os números intermediários. Esse, o caráter fundamental que permite distinguir se em nossas discussões procedemos dialeticamente ou eristicamente."

*Sócrates refere-se ao mito onde o titã, filho de Iapetus, teria dado o fogo da inteligência, ou da psiquê (alma) à vida humana. Com a frase seguinte, é possível que ele esteja indicando que os povos mais antigos conheciam mais meios de se comunicar com o divino, ou com os “deuses” em comparação com o povo de seu tempo (século 4 a.C.). As/ os oráculos, por exemplo, existiam desde muito antes de Sócrates. 

Sócrates critica os filósofos que ensinam erroneamente sobre o uno e o múltiplo. Neste caso ele pode estar criticando classes além dos sofistas: Embora Sócrates e Platão tenham aceitado ideias de Parmênides e sua escola, a aceitação teria sido somente parcial: Para Platão, a ideia de Uno/ do monismo (de Parmênides) não explica todas as coisas pois tende a indicar que tudo é imutável. Já a crítica aos que afirmam que tudo é múltiplo / infinito pode ser uma crítica ao outro extremo, talvez a escola relativista de Protágoras. 

É possível entender que a dialética é a discussão para investigar e aprender através da medição, enumeração, comparação etc. Já a erística, vem da palavra Éris (deusa da discórdia) e é o discutir pelo discutir ou a mera disputa onde não se prioriza o aprendizado nem a investigação. 

Sócrates diz que é importante que não caiam em discursos distorcidos sobre o que é uno e o que é múltiplo e que é importante enumerar os prazeres e saberes para iniciar a discussão. Ele segue explicando que conhecer o uno/finito e o múltiplo/infinito não basta para entender e praticar uma ciência ou técnica: O músico não toca instrumentos só porque sabe quantas notas musicais existem, nem alguém aprende a falar porque sabe que existem inúmeros sons na natureza. É preciso entender as qualidades dos elementos estudados, suas combinações, resultados, contextos etc. Seus interlocutores reclamam, não entendendo o porquê explicar tais coisas, então Sócrates decide definir o bem como ponto de partida: 

20d "Sócrates – É de necessidade forçosa que a natureza do bem seja perfeita? Ou será imperfeita? 

Protarco – Terá de ser o que há de mais perfeito, Sócrates. 

Sócrates – E agora, o bem é suficiente? 

Protarco – Como não? Nesse particular, exatamente, é que ele ultrapassa tudo o mais. 

Sócrates – Como também devemos afirmar, segundo penso, com absoluta convicção, que todo ser dotado de discernimento o procura e se esforça por adquiri-lo em definitivo, sem preocupar-se de nada destituído de qualquer conexão com o bem. 

Protarco – Contra isso não há objeção possível."

Sócrates a seguir mostra através do diálogo, dois tipos de vida extremos: O primeiro vive apenas dos prazeres sem os atributos da mente (como memória, inteligência, opinião etc), portanto não saberá discernir o que é prazer, não se lembrará dos prazeres, nem preverá ou planejará prazer algum, O segundo vive apenas da razão, saber e memória, sem prazer algum e se tornaria insensível e indiferente a tudo. Em seguida Sócrates propõe um terceiro modo de viver que seria a mescla do prazer com a inteligência e o saber. Protarco concorda que os 2 primeiros modelos de vida não são desejáveis nem suficientes. 

Sócrates continua: "E daí não se concluirá, também, com evidência meridiana, que nenhum dos dois participa do bem? Pois, do contrário, também seriam suficientes, perfeitos e desejáveis por parte das plantas e dos animais capazes de viver semelhante vida o tempo todo. E se algum de nós preferisse outra condição, sua escolha seria contrária à natureza do que é verdadeiramente desejável, e efeito involuntário da ignorância ou de alguma “anánke ouk eudaímonos”*. 

Protarco – Parece mesmo, que tudo se passa dessa maneira."

*Esta última sentença de Sócrates é traduzida como fatalidade perniciosa por Carlos Alberto Nunes do grupo de discussão Acrópole e como necessidade infeliz por Edson Bini, tradutor da coleção Platão - Diálogos (IV) da Edipro. Lembrando que: anánke é necessidade, ouk é uma negação (não ou sem) e eudaímonos vem de eus (bom, nobre) daímonos (divindade, espírito ou espiritual).

22c-23a "Sócrates – Nesse caso, considero cabalmente demonstrado que a deusa de Filebo não pode ser confundida com o bem. 

Filebo – Nem tua “nous”*, Sócrates, se identificará com o bem, pois está sujeita às mesmas objeções."

*Edson Bini traduz “nous” como conhecimento e Carlos A. Nunes, como inteligência

"Sócrates – Com a minha, Filebo, é possível que isto aconteça; porém não com a inteligência (nous) ao mesmo tempo divina e verdadeira. Com essa, entendo que as coisas se passam de outro modo. Não disputo o primeiro prêmio para a inteligência, no que entende com aquela vida mista (vida comum); quanto ao segundo, precisamos ver e examinar o que será preciso fazer. Talvez eu e tu pudéssemos defender a tese de que a verdadeira causa dessa vida mista seja, respectivamente, a inteligência ou o prazer, e assim nenhum dos dois viria a ser o bem em si mesmo, restando a possibilidade de aceitarmos um deles como causa do bem. Sobre esse ponto, sou inclinado a sustentar contra Filebo que, seja qual for o elemento presente nessa vida mista que a deixa boa e desejável, não será o prazer, mas a inteligência o que com ele apresenta com mais semelhança e afinidade. Com base nestes raciocínios, podemos afirmar que, em verdade, o prazer não tem direito nem ao segundo prêmio, como está longe de merecer o terceiro, se confiardes agora em minha inteligência. 

Protarco – Em verdade, Sócrates, quer parecer-me que jogaste ao chão o prazer; foi derrubado pelo teu último argumento: sucumbiu na disputa pelo primeiro prêmio. Quanto à inteligência, precisamos reconhecer sua superioridade nisto de não haver disputado a vitória; se o fizesse, teria sofrido igual revés. Mas, se o prazer for privado também do segundo prêmio, cairá bastante no conceito de seus aficcionados, que nem mesmo encontrariam nele sua beleza primitiva."

Sócrates afirma notoriamente que há uma inteligência (nous) que é divina e verdadeira, destacando-a de sua inteligência, ou seja, da inteligência humana. Ele não diz que a inteligência humana / o conhecimento humano, certamente voltado à vida comum, seja o sinônimo do bem. Por isto, em outros textos, Platão sugere que se busque a ideia do Bem, pois ela não está na realidade meramente sensorial e sim em uma realidade ideal alcançável e passível de ser colocada em prática.

A seguir, Sócrates segue dialogando sobre o infinito, o finito, o meio termo entre estes 2 gêneros ou classes de elementos e sua causa/ origem. 

23c "Sócrates – Dissemos que Deus revelou nas coisas existentes um elemento finito e outro infinito. Protarco – Perfeitamente."

23d-24b "Sócrates – Formemos com esses elementos duas classes, vindo a ser a terceira o resultado da mistura de ambas. Mas receio muito que me torne por demais ridículo com essa divisão por espécies e com a maneira de enumerá-las. 

Protarco – Que queres dizer com isso, meu caro? 

Sócrates – Tudo indica que vou precisar de um quarto gênero. 

Protarco – Dize qual seja. 

Sócrates – Considera a causa da mistura recíproca dos dois primeiros e acrescenta-a ao conjunto dos três, para formamos o quarto gênero. 

Protarco – E não viríamos, depois, a necessidade de um quinto, como fator de sua separação? 

Sócrates – Talvez; porém não agora, segundo creio. Todavia, se for preciso, hás de permitir que eu saia à procura de mais esse. 

Protarco – Por que não? 

 Sócrates – Para começar, desses quatro separemos três, e depois de anotar que dois deles são altamente dissociados, e de reduzi-los à unidade, observemos como cada um deles pode ser ao mesmo tempo uno e múltiplo. 

Protarco – Se me explicasses esse ponto com maior clareza, decerto me fora possível acompanhar-te. 

Sócrates – O que eu digo é que os dois gêneros por mim propostos são os mencionados há pouco, a saber: o finito e o infinito. Primeiro vou tentar demonstrar-te que, em certo sentido, o infinito é múltiplo. O limitado pode esperar um pouco mais. 

Protarco – Que espere, por que não? 

 Sócrates – Presta atenção. Além de difícil, é bastante controverso o que te convido a considerar; e contudo, considera-o. Começa experimentando se és capaz de determinar limite no mais quente e no mais frio, e se o mais e o menos que residem nesses gêneros não os impedem de ter fim enquanto residirem neles; pois, uma vez chegados ao fim, o mais e o menos também deixarão de existir. (...) – Porém sempre haverá, é o que afirmamos, mais e menos no que for mais quente e mais frio. 

 Protarco - Sem dúvida. 

Sócrates – Assim, nosso argumento demonstra que esses dois gêneros não tem fim; e não tendo fim, de todo jeito serão infinitos."

25c-e "Sócrates – Acrescenta-lhes, também o mais seco e o mais úmido, o mais e o menos, o mais rápido e o mais lento, o maior e o menor e tudo o mais que há instantes incluímos numa só classe definida pelos conceitos do mais e do menos. 

 Protarco – Referes-te à classe do infinito? 

Sócrates – Exato. Agora mistura-a com a família do finito.

Protarco – Que família?

Sócrates – A do finito, que há pouquinho deveríamos ter reduzido à unidade, tal como fizemos com a do infinito, mas deixamos de fazê-lo. Talvez o consigamos agora, se da reunião das duas surgir a que procuramos.

Protarco – A que classe te referes e como será isso?

Sócrates – A do igual e do duplo e toda classe que põe termo à diferença natural dos contrários e enseja harmonia e proporção entre seus elementos, introduzindo-lhes número.

Protarco – Compreendo. Ao que pareces, queres dizer que de cada mistura desses elementos nascem certas gerações."

Interessante notar que entre o finito (uno) e o infinito (múltiplo), Sócrates identificou uma classe intermediária. Esta classe seria passível de medição, enumeração e quantificação, portanto certamente os números maiores que 0 (zero) e menores que infinito, se enquadrem nela. Poderiam ser estes argumentos do diálogo “Filebo” de origem (ou influência) pitagórica? Parece uma possibilidade.

 25e "Sócrates – Não será o caso das doenças, em que a mistura acertada desses elementos produz a saúde.

Protarco – Perfeitamente.

Sócrates – E no agudo e no grave, no veloz e no lento, todos eles infinitos, não se dará a mesma coisa: com deixar limitados esses elementos não darão forma perfeita a toda a música.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – E com se associarem ao calor, ao frio, não lhes tira o excesso e o infinito, substituindo-os por medida e proporção?

Protarco – Como não?

Sócrates – Essa é a origem das estações e de tudo o que há de belo: a mistura do limitado com o ilimitado.

Sócrates – Deixo de mencionar um milhão mais de coisas, tal como a beleza e força com saúde, e também na alma, uma infinidade de qualidades excelentes. Vendo a divindade, meu caro Filebo, a arrogância e toda sorte de maldades que se originam do fato de carecerem de limites os prazeres e a gula, estabeleceu a lei e a ordem, dotadas de limite. Pretendes que ela estraga a alma; pois eu digo justamente o contrário: é o que a conserva. E tu, Protarco, como te parece?

Protarco – De inteiro acordo contigo, Sócrates.

Sócrates – Se bem observaste, aí estão as três classes a que me referi.

Protarco – Parece que compreendi. Uma delas, creio, classificas como infinita; a Segunda; como o limite das coisas existentes; porém não aprendi muito bem o que entendes pela terceira.

Sócrates – É assim mesmo. Com respeito ao terceiro, bastará aceitares que eu incluo nessa rubrica, como unidade, todos os produtos dos dois primeiros, tudo o que nasce para o ser, por efeito da medida e do limite."

26e-27b "Sócrates – Mas também dissemos que, além desses três gêneros, havia a considerar um quarto. Ajuda-me a pensar. Vê se te parece necessário que tudo o que devém, só se forme em virtude de determinada causa.

Protarco – Sem dúvida; pois, sem isso não poderia formar-se.

(...) Sócrates – E agora: todas as coisas geradas e tudo de onde elas provêm não nos forneceram os três primeiros gêneros?

Protarco - Isso mesmo.

Sócrates – E o artesão (demiurgo) que produz essas coisas, a causa, declaramos ser o quarto, pois demonstramos à saciedade que difere dos outros.

Protarco – Difere, sem dúvida.

Sócrates – E agora, depois de havermos distinguido os quatro gêneros, só seria de vantagem enumerá-los por ordem, para mais fácil memorização deles todos."

Sócrates conclui que a vida equilibrada entre inteligência e prazer pertence ao terceiro gênero, ou seja, do misto entre finito e infinito. A causa desta mistura ou deste “terceiro gênero”, o “quarto” gênero citado por Sócrates, que alguns autores traduzem como artesão (de demiurgo), seria a mente/ inteligência cósmica. Assim, Platão, relaciona os conceitos de uno (dos filósofos Parmênides, Xenófanes etc) e de infinito, com a força criadora, o Demiurgo e/ou Nous, a inteligência divina/ mente cósmica, certamente fazendo o elo entre estes gêneros, que um dos mestres de Sócrates, Anaxágoras, não havia feito. Alguns estudiosos, como por exemplo, o filólogo Paul Friedländer, consideram que estes assuntos diferentes do prazer, abordados por Platão neste texto (Filebo), pertencem à área da ontologia. Porém, vale lembrar que a finalidade da ontologia, mostrada na obra Fédon (96 b-e, 97 a-e, 98 a-b), é discutir a melhor maneira das coisas serem.

XV 27e-29a – "Sócrates – (...) Como fica teu tipo de vida, Filebo, de prazer puro, sem mistura alguma? Em qual dos gêneros enumerados ela se enquadraria corretamente? Mas, antes de te explicares, responde-me ao seguinte. 

Filebo – Podes falar. 

Sócrates – A dor e o prazer apresentam limites, ou serão suscetíveis de mais ou de menos? 

Filebo – Sim, Sócrates; são suscetíveis de mais; o prazer deixaria de ser todo o bem, se não fosse infinito por natureza, em grau e em quantidade. 

Sócrates – Como também a dor, Filebo, deixaria de ser todo o mal. Assim sendo, precisamos procurar algo fora da natureza do infinito que comunique aos prazeres uma parcela do bem. Concedo-te que essa qualquer coisa pertença à classe do infinito. Mas então, Protarco e Filebo, a inteligência, a sabedoria e o conhecimento, em que classe incluiremos, dentre as mencionadas há pouco, para não nos tornamos desatenciosos (sem devoção)? Não é pequeno o perigo em que incorremos, conforme resolvermos certo ou errado essa questão. 

Filebo – Colocas num pedestal muito elevado, Sócrates, tua divindade favorita (nous). 

Sócrates – O mesmo fazes com a tua companheira (hedonis). Mas a pergunta não pode ficar sem resposta."

"(...) Sócrates: Todos os sábios estão acordes – por isso mesmo com isso se engrandecem – em que, para nós, Nous (a inteligência, ou o entendimento) é a rainha do céu e da terra. E talvez tenham razão. Porém, caso queiras, investiguemos mais extensivamente a que gênero ela pertence. 

Protarco – Faze como entenderes, sem contar conosco, ó Sócrates, pois não é enfadonho. 

XVI – Sócrates – Muito bem. Então, principiemos com a seguinte pergunta. 

Protarco – Qual será? 

Sócrates – Para sabermos, Protarco, se no conjunto das coisas e nisto a que damos o nome de universo domina alguma força irracional e fortuita, ou seja o mero acaso ou o seu contrário, a mente, como diziam nossos antepassados, e uma sabedoria admirável que tudo coordena e dirige? 

Protarco – São duas assertivas, meu admirável Sócrates, que se destroem mutuamente. A que acabaste de enunciar se me afigura verdadeira blasfêmia. Mas, dizer que a mente determina tudo, é uma asserção digna do aspecto do universo, do sol, da lua, dos astros e de todo o circuito celeste, sem que, do meu lado, eu possa pensar ou manifestar-me a esse respeito por maneira diferente. 

Sócrates – Queres, então, que nos declaremos de acordo com os nossos maiores, sobre se passarem as coisas, realmente, dessa maneira, não nos limitando a repetir sem o menor risco de a opinião de terceiros, mas compartilhando com aqueles tanto a censura como o risco, sempre que algum sujeito petulante afirmar que não é assim e que não há ordem no universo? 

Protarco – Como não hei de querer?"

Sócrates então compara os elementos constituintes dos corpos (celestes e dos seres vivos) limitado às condições de sua época, por exemplo, quando se interpretava que haviam só 4 elementos (fogo, ar, água e terra) e não se conhecia os elementos químicos descobertos na era moderna. 

29e-30d (...) Sócrates – Aceita a mesma conclusão para o que chamamos universo (“kosmon”); é um corpo da mesma espécie do nosso, porque possui os mesmos elementos constituintes.

Tanto o corpo dos seres vivos como os planetas, estrelas e outros corpos celestes, são constituídos de cargas elétricas/ átomos, elétrons e suas sub partículas. Tais partículas microscópicas constituem somente um bilionésimo do átomo, sendo o restante, espaço vazio e campo eletromagnético. Mesmo sem saber destes detalhes, Sócrates (e/ ou Platão) identificou que o universo e os corpos dos seres vivos possuíam os mesmos elementos constituintes. 

Protarco – Certíssimo.

Sócrates – E agora: é desse corpo universal que o nosso se alimenta, ou é do nosso que o universo tira o de que necessita e recebe e conserva tudo o que há pouco mencionamos?

Protarco – É outra pergunta, Sócrates, que nem valia a pena formular.

(...) Sócrates – Afirmaremos que nosso corpo é dotado de psiquê*?

*Geralmente traduzido como alma, a psiquê de Platão inclui o conceito da mente com todos os seus “elementos” (cognição, memória, pensamento, sentimento, virtude etc) até o conceito que interliga tais “elementos” em uma unidade coesa equivalente a um espírito vivo/ essência imortal. Em outras obras Platão indica que a psique pode adoecer (em Górgias), mas não pode ser destruída (A República e Fedon) e que ela pode alcançar o “hiper ouranos” (além céus), a realidade divina, ao viver a virtude, o amor mais sublime, que é o amor a todas as almas, à justiça e ao Bem (Fedro). 

Protarco – É o que vamos dizer.

Sócrates – E de onde, ó amigo, a receberia, se o corpo do universo não fosse animado e não possuísse os mesmos elementos que o nosso, e, a todas as luzes, ainda mais belos?

Protarco – Impossível ser de outra forma, Sócrates.

Sócrates – Pois não podemos acreditar, Protarco, que desses quatro gêneros: o finito, o infinito, o misto e o gênero da causa, que, como 4º, se encontra em todas as coisas, essa causa que fornece uma alma a nosso corpo, dirige os exercícios físicos e cura os corpos quando estes adoecem, e forma mil outras combinações e as repara, seja, por isso, denominada sabedoria total multiforme, e que no conjunto do céu*, onde tudo isso se encontra em maior escala e sob forma mais bela e pura, não se tenha realizado a natureza mais bela e de maior preço.

[*holoi te ouranôi; também podendo ser traduzido como "em todo universo"]

Protarco – De fato, não faria o menor sentido.

Sócrates – A não ser assim, melhor faríamos seguindo outra opinião, à qual já nos referimos tantas vezes, sobre haver ilimitado (infinito) abundante  no universo, suficiente finito, além de uma causa nada desprezível (não má, nada insuficiente), que coordena e determina os anos, as estações e os meses, e que, com todo o direito, poderá ser denominada sabedoria e inteligência (sophía kaì noûs).

Protarco – Sim, com todo o direito. 

Sócrates – Certamente sem alma (psique), não pode haver (genoísthin) sabedoria nem inteligência. 

Protarco – De jeito nenhum.

Sócrates – Dirás, então, que na natureza de Zeus (Diós) há uma alma real (régia) e uma inteligência real formadas pelo poder da causa, bem como outros belos (ou bons, de kalos) atributos nas demais divindades, designados da maneira que melhor lhes aprouver. 

A última fala de Sócrates tem traduções que diferem um pouco entre si, certamente por ser mais complexa. A palavra "real" neste texto em grego é basilikon, referente à realeza, portanto a tradução de Edson Bini, que é régia, parece mais precisa do que a de Carlos A. Nunes. Outro detalhe é que o texto em grego parece iniciar com uma negação que não aparece nas versões em português. Talvez refira-se ao fato de Sócrates querer dizer que não há este fator régio nele e nos humanos no mundo sensorial. Também não há palavra equivalente a "divindades" no texto em grego, ao invés disto, há a palavra fílos (amigos). Talvez os tradutores entenderam que isto se referia aos "amigos" de "Diós", as divindades.

(...) Sócrates – Decerto, Protarco, não irás imaginar que eu desfiei todo esse discurso sem segundas intenções. Ele serve para reforçar o juízo há muito enunciado, de ser o mundo, sempre, governado pela inteligência.

Protarco – Com efeito.

Sócrates – Além do mais, ensejou resposta à minha pergunta, sobre pertencer a inteligência (nous) ao gênero do que dissemos ser a causa de tudo, uma das quatro por nós admitidas. Aí tens a resposta que te devíamos.

Sócrates conclui que, havendo uma causa e havendo ordem/ leis no universo, Nous (inteligência, entendimento) é a causa de tudo - rege todo o universo* (hóloi te ouranôi) que é sua criação, todos os movimentos cósmicos, astronômicos e as almas (psique) humanas. Além disto, sendo a causa de tudo, tem os mais belos e puros aspectos da alma, a mais nobre e admirável natureza.

31a Sócrates – A respeito de ambos, não nos esqueçamos de que a inteligência é aparentada com a causa e mais ou menos do mesmo gênero, enquanto o prazer é infinito em si mesmo e pertence ao gênero que não tem nem nunca terá em si e por si mesmo nem começo nem meio nem fim.

Certamente a inteligência é "mais ou menos" do mesmo gênero da causa, porque Sócrates identificou que ela é, de certa forma, transcendente. Há inteligência na causa de tudo, assim como há na vida, nos seres humanos, mas não em todas formas de vida na realidade sensorial. Pois a inteligência (nous) não é meramente sensorial, ela é psíquica, da mente/ da alma. O ser humano então, tem uma essência imortal e a capacidade de transcender através de sua psique (alma), como mostrado em outras obras de Platão (ver Fedon, Fedro etc).


 

Um comentário:

  1. A partir deste texto, é possível entender que o "zero" e o "infinito" teriam sido unidos pela causa, formando o enumerável. Isso porque o zero quando sozinho parece representar inexistência, mas à direita de outros números ele representa dezena, centena, milhares etc... Então, de certa forma, ele representa o múltiplo também e conecta-se ao infinito. Os números de 1 a 9, seguindo esta lógica, representariam o finito, e já surgem unidos ao 0 (zero) em um sistema. Assim, os números parecem uma representação da lei natural que também é criação da mente divina, Nous, ou o arquiteto/ demiurgo, portanto, os números também são uma representação da lei divina...

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