A Filosofia ocidental surge de um diálogo entre o racional, o mítico e o místico

Filosofia e Construção do Conhecimento 

Considera-se que a filosofia ocidental surge por volta do século 4 a.C. com Sócrates, e principalmente, com Platão, este último que sistematizou a "amizade com o saber" dialogando com outros autores anteriores. 

Apesar de racional, a construção de conhecimento da filosofia ocidental mostrou-se aberta à outras formas de consciência, como a dos mitos (mítica), e a dos sinais/ inspirações e transes (mística). 

Tal postura de abertura, necessária na filosofia, é a "presunção da ignorância" proposta por Sócrates e Platão. A consciência a que me refiro aqui não é meramente a percepção sensorial do indivíduo no presente: é mais abrangente, cobrindo percepção, interpretação e (modo de) ação do indivíduo em relação ao objeto e ao ambiente. 

Esta grande abertura da filosofia não é meramente permissiva a ponto de acolher mentiras ou argumentos nocivos aos indivíduos e às sociedades, pois tem uma postura crítica alicerçada na ética proposta por Platão. Os mitos por exemplo, são muitas vezes reinterpretados por Sócrates/ Platão, pautando-se na questão ética e seus conceitos de valores universais, ou mais precisamente, no conceito de virtude. Na verdade a ética é um ponto tão importante na filosofia ocidental em seu cerne, que ao examinar as obras platônicas é possível perceber como ela permeia todas as investigações, estudos e áreas. 

Em "Político", Platão sugere que não deve-se medir (estudar) o maior e o menor só em sua relação recíproca, mas também em relação ao estabelecimento do que está na medida. Este estabelecimento do que está na medida não é somente matemático, nem simplesmente sensorial - é o que é devido, apropriado ou oportuno ao tema estudado em questão. Isto certamente não contradiz a proposta das tekhnes (artes, ou profissões), nem contradiz a ideia (eidos) de kalos tão pautada por Platão: o bom e o belo. A descrição das tekhnes e suas finalidades, assim como a ideia central do Bem/belo, na filosofia de Platão, são ambas mostradas na obra A República (Politheia) e estão em acordo com o que Platão propõe como área de estudo e objetivo de um professor das "coisas que são"* na obra Fédon, onde trata da psiquê (alma). O professor de ontologia deve estudar/ buscar/ demonstrar a melhor maneira das coisas serem - trata-se de uma ideia de progresso, de buscar melhoria contínua, pautada pela ética (eidos de kalos). 

*(professor de ontos, ou seja, de ontologia)

Platão indica que nem a matemática está apartada desta ética, quando em Filebo, explica que o misto do finito com infinito, ou seja, o enumerável, foi gerado pela causa, que é "nous". Nous é traduzido como inteligência ou como conhecimento, mas não refere-se a algo meramente mortal: no próprio diálogo Filebo, é mostrado que Nous é a inteligência divina, o que faz sentido: pois é a causa que uniu o finito com o infinito e talvez, possa ser interpretado também como o que uniu o "Uno" com o "múltiplo". Ao explicar a origem do que é passível de medição, o enumerável, Platão põe a matemática como (parte da) lei divina, pois foi Nous, a mente divina que criou este conceito a partir do finito com infinito ou do uno com o múltiplo. Certamente era isso que Sócrates esperava de Anaxágoras ao citar sua decepção com o filósofo "professor de ontos" no diálogo Fédon. A matemática sendo de origem divina, faz parte não só da lei divina mas também da natural, pois a encontramos nas causas e efeitos de uma série de fenômenos no universo... Isto está de acordo com que Sócrates explica à Cálicles, no diálogo Górgias: a lei natural é divina (são a mesma lei) e a lei dos homens deveria se basear nesta. 

A explicação matemática de Platão, ao mostrar como a mente divina (Nous, possível sinônimo de Demiurgo e do "Theon" de Sócrates conforme indicado no diálogo Filebo...) cria tudo a partir da mistura do finito com o infinito, indica uma harmonia e plenitude. Os textos de Platão também indicam que as coisas são boas quando governada por Deus (Theon), como por exemplo, no "mito da era de ouro", citado em Político. É possível concluir que Deus criou tudo assim porque é adequado, moderado, bom, portanto a eidos (ideia/ forma) mais sublime é kalos (o bem/ belo). E o que há de mais amável é o bem, conforme mostrado no Banquete. Assim, de acordo com o fundador da filosofia ocidental então, o bem está diretamente ligado a lei natural, a lei divina, a Deus e toda sua criação! 

Nota-se que Platão construiu toda a filosofia como um corpo coeso que conversou com seus "pares", pois além de dialogar com seu mestre Sócrates, dialogou com alguns filósofos anteriores/ pré socráticos, como Parmênides (que desenvolveu sua teoria sobre o Uno), Heráclito e/ ou Protágoras que discorriam sobre o múltiplo/ a relatividade, com Anaxágoras que propagou o conceito de Nous e possivelmente com Pitágoras e sua matemática/ geometria. 

Como citado,o Bem é o mais sublime dos eidos explicados por Platão. Mas o que é eidos? Porque não há tradução exata desta palavra para vários outros idiomas diferentes do grego da época de Platão? O que importa é o conceito explicado pelo filósofo: Eidos é ideia, não meramente abstrata, porque é real. Mas como provar? Platão, nos indica o caminho no diálogo entre Sócrates e Menon (o outro nome do texto "Menon" é: "da Virtude"): 

 Sócrates diz que a forma (skhema) é o que está presente em todas coisas que são (ton onton) e precede a cor. Menon, insatisfeito com a fala do filósofo, a considera tola, pois diz que há seres que podem não saber o que é cor. Sócrates então pergunta a Menon se há algo chamado de fim (teleyten*), referindo-se a um limite, um extremo, uma coisa terminada ou consumada e o indagado responde que sim. 

*palavra que dá origem, por exemplo, à teleologia, o "estudo das finalidades"

Em seguida, Sócrates pergunta à Menon, se na geometria há superfície (epipedon) e sólido (sthereon), ao que Menon também concorda. 

O filósofo então diz que a skhema é o que limita o "sólido" (no sentido da geometria) embora esta palavra seja traduzida como forma por alguns autores como Edson Bini, ela também é traduzida como figura por tradutores como Maura Iglesias. 

É possível haver confusão, uma vez que os significado tenha poucas diferenças entre si, talvez ambíguas: o 1º termo, forma, refere-se mais às formas geométricas, ou, à silhuetas classificáveis por algum padrão geralmente (mas não necessariamente) perceptível pela visão. O 2º, figura, refere-se a qualquer imagem, objeto ou fenômeno perceptível pela visão. De um ponto de vista platônico, possivelmente essa "forma" (skhema) se assemelha à eidos (idéia/ forma), pois ambas estão presentes nas coisas que o filósofo explica que são (ton onton) em seus textos. O ser de Platão não é meramente o que é perceptível sensorialmente (o "material"), é sobretudo, o acessível pela cognição, o que pode ser conhecido (gnose), como por exemplo a "eidos de kalos" (a ideia do bem/ belo). 

Sócrates segue explicando que cor é uma espécie de emanação das formas, que se harmoniza com a visão e é perceptível. Esta última definição pode parecer imprecisa atualmente, mas não está errada: Vemos cores em todas formas/ objetos, quando estes emanam (mais precisamente, refletem) uma porção da luz que incide sobre eles. 

Reflexões entre os mitos e a racionalidade na obra de Platão

Numa possível interpretação das obras Filebo e Político, Cronos, conduzindo o movimento do universo como um timoneiro deve representar a divindade que "gerou" o ciclo dos números 1 a 9. Explico: Os números 1 ao 9 também podem representar o finito, que se tornariam infinitos apenas com a inserção do 0 (zero), pois assim torna-se possível as dezenas (números de 10 a 99), as centenas (de 100 a 999), os milhares etc. Esta peculiaridade faria do 0 (zero) o "nada" ou "negação" quando representado só isoladamente, e , quando representado à direita de qualquer outro número, ele introduz o infinito na numeração/ na matemática, porque dá continuidade à finita sequência dos números 1 a 9. Esta sequência que era finita, pode parecer continuar linear com a inserção do 0, mas também pode ser considerada cíclica, já que os números 1 a 9 praticamente se repetem, apenas inserindo uma casa "decimal" a "cada novo zero" (10, 100, 1000 etc). A nível de comparação (da matemática com a filosofia) assim seria o tempo no universo tridimensional que, ao menos aparentemente, nunca alcançaria o além, o eterno, Deus. A realidade tridimensional seria assim em relação a quadrimensional: o que percebemos como corpóreo no universo, não pode transcender a velocidade da luz, nem o tempo. Somente a psique/ alma poderia realizar tal feito... (que viagem, mas é uma tentativa de continuar o diálogo entre matemática, mito e cosmologia fomentado pela filosofia fundada por Platão) 

Afinal Deus, seja Nous ou qualquer outro nome, é espírito (ou a "psiquê cósmica") e, conforme explica Platão e várias religiões espiritualistas (druidismo céltico, hinduísmo, candomblé, orfismo grego etc), nós essencialmente somos espíritos imortais que eventualmente ou regularmente (r)encarnamos em corpos mortais. 

Esta geração do misto a partir do finito com infinito (como indicado em Filebo), seria gerar o tempo como percebemos na vida sensorial/ encarnada - gerar o enumerável, a realidade mensurável/ passível de medição. Assim, ele pouco ou nada diferiria de Chronos (o tempo): Chronos seria o mesmo que a divindade Cronos e ele "largaria o timão", numa espécie de renovação de um ciclo temporal e psíquico, onde todas almas completariam uma totalidade de encarnações no cosmos... Neste caso Cronos não pode ser o Theon Hegemon/ Nous. Ele complementaria um conceito "trínito" de Deus: representando os números de 1 a 9, estaria ao lado de Ouranos/ Urano, o ciclo, que por sua vez representaria o "0" e/ou infinito. Talvez por isso, há quem interprete* que em algumas artes Ouranos (Caelus) seja representado carregando o "círculo" do zodíaco - seria uma simbologia do zero e/ou do aether, o céu além do universo tridimensional. Este argumento parece mais uma viagem, mas se tratando da linguagem mítica, é uma possível explicação do inexplicável na linguagem humana - o surgimento do tempo, do universo etc. O ser humano existe limitado às condições tridimensionais, então a linguagem mítica foi a única forma de explicar algo mais complexo como uma realidade com mais dimensões do que a nossa! Seguindo esta explicação Cronos e Urano estariam "sob" Nous, a mente cósmica possível sinônimo de Theon/ Deus que criou ambos, resultando em toda a matemática/ lei divina e natural. 

*Por enquanto fico devendo o(s) nome(s) do(s) autor(es), que não me lembro se era(m) poeta(s) ou hermeneuta(s).

 Essa "trindade" trata de assuntos transcendentes - do tempo e do além, não acho que valha a pena compará-la com a "trindade" do hinduísmo (Brahma, Vishnu e Shiva - os aspectos de Brahman, o Todo), nem com as nornas (as "tecelãs do tempo e/ou do cosmo") dos mitos nórdicos, menos ainda com a trindade da igreja católica. Neste primeiro momento, ao menos, não considero tal comparação esclarecedora. 

O que vale notar é que tal complexa combinação das consciências ou das linguagens mística (transcendente), mítica (linguagem mitológica) e racional (matemática/ filosofia) é uma tentativa de continuar o que Platão (e seu mestre Sócrates) iniciaram: Uma construção de conhecimento que não nega saberes - Uma amizade com o saber... 

Este Theon (ou Zeus) Hegemon, que possivelmente é Nous, não é um Deus distante e frio, que apenas iniciou o processo de criação do universo. Ele criou a(s) eidos (ideia/forma), sendo a mais sublime o Bem/belo (kalos). Eidos são acessíveis só cognitivamente porque são mais reais, portanto mais psíquicos (da alma...) do que o "mundo sensível" (sensorial, corporal). 

Assim, a realidade sublime é acessada pela Psiquê (alma) e não pelo soma (corpo). Naturalmente percebemos o tempo (chronos) com nossa psiquê e só podemos transcendê-lo com a mesma. É com a alma que alcançamos o "Hiper Ouranos" ou o "aether", o "distante" céu luminoso sem o calor das chamas, o "além céus", que não por mera coincidência parece misturar os nomes do titã Hiperyon (além das eras) e da divindade Ouranos (Urano, o céu distante, o cosmo). É com nossa essência mais interior e verdadeira que transcendemos o espaço/ tempo. É com a ideia mais sublime (o bem/ belo) que alcançamos isto. 

Como já mencionado, o bem, é o que há de mais amável. Sendo uma ideia/forma (eidos), o Bem está ligado ao estágio sublime do amor, além do eros (paixão sensorial) e da filia (amizade). Este amor mais sublime é ágape, o amor a todas as almas, às suas criações que visam o bem e a lei natural e divina (que são uma só). Por isso Nous (Deus) ama: ele fez o Bem! Por isso transcendemos com o amor, buscando viver conforme a ideia (eidos) sublime, o Bem (kalos). 

 Conclusão ou "Considerações Finais"

Com a centralidade na ética (a virtude, a ideia do Bem), a proposta de Platão, assim como a de seu mestre Sócrates, era de construir conhecimento (episteme) através do diálogo, respeitando diferentes perspectivas da consciência humana. A filosofia por eles fundada, não restringia métodos escolhendo uma visão de mundo excluindo outras cosmovisões. Nas obras Teeteto e Protágoras, Platão indica como uma teoria centrada exclusivamente em experiências sensoriais era relativista e arbitrária: não permitia a busca por uma verdade, nem permitia uma construção de conhecimento universalizado. E isto não fazia da filosofia fundada por Platão algo aleatório ou sem método: além da pauta supra citada (ética, ideia do bem...) que envolve a busca pela virtude/ um valor universal, excluindo a priorização da retórica/ sofisma/ discurso meramente convincente e a busca pelos excessos de prazeres sensoriais ou pelo acúmulo de grandes fortunas materiais; havia a postura da presunção da ignorância como pré requisito para se investigar / estudar (pois onde há dúvida é possível a investigação) e a finalidade da melhoria das coisas que são, principalmente envolvendo a psiquê. O ser e o existir são verdadeiros portanto bons e (por exclusão) o "não ser" e o inexistir são falsos! Por isso Platão em sua teoria sobre ton onton (as coisas que são), ou ontologia, só discutia a possibilidade das coisas serem melhores. Ontologia não é tentar definir o que existe e o que não existe e por esta razão, a filosofia ocidental em sua origem (platônica) pautou a ideia do Bem! Porque o "mal" é mera ausência do bem - estuda-se o bem e já se entende tudo - inclusive o "mal" por exclusão. Esta centralidade no bem (e na ética, palavra que vem de ethos - caráter) certamente foi sendo deixada de lado no decorrer da história da filosofia.

Sócrates se apoiava na tradição oral para despertar a noção da virtude (do bem) nas pessoas. Seu método, a maiêutica, se deu através do diálogo. Quem nega saberes e formas de consciências de ser e de existir nega esta interação que desperta o bem nas pessoas - a construção do saber pautada no bem, na ética. Negar isto, é diabólico, notável certamente pela própria etimologia da palavra "dia bolos" (do grego: negar a interação de dois). A filosofia em sua origem é dialética porque é aberta ao diálogo: jamais nega a interação e o desenvolvimento mútuo. 

 Fontes:

Platão, Político 

Platão, Filebo 

Platão, Fedon 

Platão, Menon

Platão, O Banquete

Platão, A República 

Platão, Górgias 

Jean Gebser, The Ever Present Origin

 

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