A Filosofia ocidental surge de um diálogo entre o racional, o mítico e o místico

Filosofia e Construção do Conhecimento 

Considera-se que a filosofia ocidental surge por volta do século 4 a.C. com Sócrates, e principalmente, com Platão, este último que sistematizou a "amizade com o saber" dialogando com outros autores anteriores. 

Apesar de racional, a construção de conhecimento da filosofia ocidental mostrou-se aberta à outras formas de consciência, como a dos mitos (mítica), e a dos sinais/ inspirações e transes (mística). 

Tal postura de abertura, necessária na filosofia, é a "presunção da ignorância" proposta por Sócrates e Platão. A consciência a que me refiro aqui não é meramente a percepção sensorial do indivíduo no presente: é mais abrangente, cobrindo percepção, interpretação e (modo de) ação do indivíduo em relação ao objeto e ao ambiente. 

Esta grande abertura da filosofia não é meramente permissiva a ponto de acolher mentiras ou argumentos nocivos aos indivíduos e às sociedades, pois tem uma postura crítica alicerçada na ética proposta por Platão. Os mitos por exemplo, são muitas vezes reinterpretados por Sócrates/ Platão, pautando-se na questão ética e seus conceitos de valores universais, ou mais precisamente, no conceito de virtude. Na verdade a ética é um ponto tão importante na filosofia ocidental em seu cerne, que ao examinar as obras platônicas é possível perceber como ela permeia todas as investigações, estudos e áreas. 

Em "Político", Platão sugere que não deve-se medir (estudar) o maior e o menor só em sua relação recíproca, mas também em relação ao estabelecimento do que está na medida. Este estabelecimento do que está na medida não é somente matemático, nem simplesmente sensorial - é o que é devido, apropriado ou oportuno ao tema estudado em questão. Isto certamente não contradiz a proposta das tekhnes (artes, ou profissões), nem contradiz a ideia (eidos) de kalos tão pautada por Platão: o bom e o belo. A descrição das tekhnes e suas finalidades, assim como a ideia central do Bem/belo, na filosofia de Platão, são ambas mostradas na obra A República (Politheia) e estão em acordo com o que Platão propõe como área de estudo e objetivo de um professor das "coisas que são"* na obra Fédon, onde trata da psiquê (alma). O professor de ontologia deve estudar/ buscar/ demonstrar a melhor maneira das coisas serem - trata-se de uma ideia de progresso, de buscar melhoria contínua, pautada pela ética (eidos de kalos). 

*(professor de ontos, ou seja, de ontologia)

Platão indica que nem a matemática está apartada desta ética, quando em Filebo, explica que o misto do finito com infinito, ou seja, o enumerável, foi gerado pela causa, que é "nous". Nous é traduzido como inteligência ou como conhecimento, mas não refere-se a algo meramente mortal: no próprio diálogo Filebo, é mostrado que Nous é a inteligência divina, o que faz sentido: pois é a causa que uniu o finito com o infinito e talvez, possa ser interpretado também como o que uniu o "Uno" com o "múltiplo". Ao explicar a origem do que é passível de medição, o enumerável, Platão põe a matemática como (parte da) lei divina, pois foi Nous, a mente divina que criou este conceito a partir do finito com infinito ou do uno com o múltiplo. Certamente era isso que Sócrates esperava de Anaxágoras ao citar sua decepção com o filósofo "professor de ontos" no diálogo Fédon. A matemática sendo de origem divina, faz parte não só da lei divina mas também da natural, pois a encontramos nas causas e efeitos de uma série de fenômenos no universo... Isto está de acordo com que Sócrates explica à Cálicles, no diálogo Górgias: a lei natural é divina (são a mesma lei) e a lei dos homens deveria se basear nesta. 

A explicação matemática de Platão, ao mostrar como a mente divina (Nous, possível sinônimo de Demiurgo e do "Theon" de Sócrates conforme indicado no diálogo Filebo...) cria tudo a partir da mistura do finito com o infinito, indica uma harmonia e plenitude. Os textos de Platão também indicam que as coisas são boas quando governada por Deus (Theon), como por exemplo, no "mito da era de ouro", citado em Político. É possível concluir que Deus criou tudo assim porque é adequado, moderado, bom, portanto a eidos (ideia/ forma) mais sublime é kalos (o bem/ belo). E o que há de mais amável é o bem, conforme mostrado no Banquete. Assim, de acordo com o fundador da filosofia ocidental então, o bem está diretamente ligado a lei natural, a lei divina, a Deus e toda sua criação! 

Nota-se que Platão construiu toda a filosofia como um corpo coeso que conversou com seus "pares", pois além de dialogar com seu mestre Sócrates, dialogou com alguns filósofos anteriores/ pré socráticos, como Parmênides (que desenvolveu sua teoria sobre o Uno), Heráclito e/ ou Protágoras que discorriam sobre o múltiplo/ a relatividade, com Anaxágoras que propagou o conceito de Nous e possivelmente com Pitágoras e sua matemática/ geometria. 

Como citado,o Bem é o mais sublime dos eidos explicados por Platão. Mas o que é eidos? Porque não há tradução exata desta palavra para vários outros idiomas diferentes do grego da época de Platão? O que importa é o conceito explicado pelo filósofo: Eidos é ideia, não meramente abstrata, porque é real. Mas como provar? Platão, nos indica o caminho no diálogo entre Sócrates e Menon (o outro nome do texto "Menon" é: "da Virtude"): 

 Sócrates diz que a forma (skhema) é o que está presente em todas coisas que são (ton onton) e precede a cor. Menon, insatisfeito com a fala do filósofo, a considera tola, pois diz que há seres que podem não saber o que é cor. Sócrates então pergunta a Menon se há algo chamado de fim (teleyten*), referindo-se a um limite, um extremo, uma coisa terminada ou consumada e o indagado responde que sim. 

*palavra que dá origem, por exemplo, à teleologia, o "estudo das finalidades"

Em seguida, Sócrates pergunta à Menon, se na geometria há superfície (epipedon) e sólido (sthereon), ao que Menon também concorda. 

O filósofo então diz que a skhema é o que limita o "sólido" (no sentido da geometria) embora esta palavra seja traduzida como forma por alguns autores como Edson Bini, ela também é traduzida como figura por tradutores como Maura Iglesias. 

É possível haver confusão, uma vez que os significado tenha poucas diferenças entre si, talvez ambíguas: o 1º termo, forma, refere-se mais às formas geométricas, ou, à silhuetas classificáveis por algum padrão geralmente (mas não necessariamente) perceptível pela visão. O 2º, figura, refere-se a qualquer imagem, objeto ou fenômeno perceptível pela visão. De um ponto de vista platônico, possivelmente essa "forma" (skhema) se assemelha à eidos (idéia/ forma), pois ambas estão presentes nas coisas que o filósofo explica que são (ton onton) em seus textos. O ser de Platão não é meramente o que é perceptível sensorialmente (o "material"), é sobretudo, o acessível pela cognição, o que pode ser conhecido (gnose), como por exemplo a "eidos de kalos" (a ideia do bem/ belo). 

Sócrates segue explicando que cor é uma espécie de emanação das formas, que se harmoniza com a visão e é perceptível. Esta última definição pode parecer imprecisa atualmente, mas não está errada: Vemos cores em todas formas/ objetos, quando estes emanam (mais precisamente, refletem) uma porção da luz que incide sobre eles. 

Reflexões entre os mitos e a racionalidade na obra de Platão

Numa possível interpretação das obras Filebo e Político, Cronos, conduzindo o movimento do universo como um timoneiro deve representar a divindade que "gerou" o ciclo dos números 1 a 9. Explico: Os números 1 ao 9 também podem representar o finito, que se tornariam infinitos apenas com a inserção do 0 (zero), pois assim torna-se possível as dezenas (números de 10 a 99), as centenas (de 100 a 999), os milhares etc. Esta peculiaridade faria do 0 (zero) o "nada" ou "negação" quando representado só isoladamente, e , quando representado à direita de qualquer outro número, ele introduz o infinito na numeração/ na matemática, porque dá continuidade à finita sequência dos números 1 a 9. Esta sequência que era finita, pode parecer continuar linear com a inserção do 0, mas também pode ser considerada cíclica, já que os números 1 a 9 praticamente se repetem, apenas inserindo uma casa "decimal" a "cada novo zero" (10, 100, 1000 etc). A nível de comparação (da matemática com a filosofia) assim seria o tempo no universo tridimensional que, ao menos aparentemente, nunca alcançaria o além, o eterno, Deus. A realidade tridimensional seria assim em relação a quadrimensional: o que percebemos como corpóreo no universo, não pode transcender a velocidade da luz, nem o tempo. Somente a psique/ alma poderia realizar tal feito... (que viagem, mas é uma tentativa de continuar o diálogo entre matemática, mito e cosmologia fomentado pela filosofia fundada por Platão) 

Afinal Deus, seja Nous ou qualquer outro nome, é espírito (ou a "psiquê cósmica") e, conforme explica Platão e várias religiões espiritualistas (druidismo céltico, hinduísmo, candomblé, orfismo grego etc), nós essencialmente somos espíritos imortais que eventualmente ou regularmente (r)encarnamos em corpos mortais. 

Esta geração do misto a partir do finito com infinito (como indicado em Filebo), seria gerar o tempo como percebemos na vida sensorial/ encarnada - gerar o enumerável, a realidade mensurável/ passível de medição. Assim, ele pouco ou nada diferiria de Chronos (o tempo): Chronos seria o mesmo que a divindade Cronos e ele "largaria o timão", numa espécie de renovação de um ciclo temporal e psíquico, onde todas almas completariam uma totalidade de encarnações no cosmos... Neste caso Cronos não pode ser o Theon Hegemon/ Nous. Ele complementaria um conceito "trínito" de Deus: representando os números de 1 a 9, estaria ao lado de Ouranos/ Urano, o ciclo, que por sua vez representaria o "0" e/ou infinito. Talvez por isso, há quem interprete* que em algumas artes Ouranos (Caelus) seja representado carregando o "círculo" do zodíaco - seria uma simbologia do zero e/ou do aether, o céu além do universo tridimensional. Este argumento parece mais uma viagem, mas se tratando da linguagem mítica, é uma possível explicação do inexplicável na linguagem humana - o surgimento do tempo, do universo etc. O ser humano existe limitado às condições tridimensionais, então a linguagem mítica foi a única forma de explicar algo mais complexo como uma realidade com mais dimensões do que a nossa! Seguindo esta explicação Cronos e Urano estariam "sob" Nous, a mente cósmica possível sinônimo de Theon/ Deus que criou ambos, resultando em toda a matemática/ lei divina e natural. 

*Por enquanto fico devendo o(s) nome(s) do(s) autor(es), que não me lembro se era(m) poeta(s) ou hermeneuta(s).

 Essa "trindade" trata de assuntos transcendentes - do tempo e do além, não acho que valha a pena compará-la com a "trindade" do hinduísmo (Brahma, Vishnu e Shiva - os aspectos de Brahman, o Todo), nem com as nornas (as "tecelãs do tempo e/ou do cosmo") dos mitos nórdicos, menos ainda com a trindade da igreja católica. Neste primeiro momento, ao menos, não considero tal comparação esclarecedora. 

O que vale notar é que tal complexa combinação das consciências ou das linguagens mística (transcendente), mítica (linguagem mitológica) e racional (matemática/ filosofia) é uma tentativa de continuar o que Platão (e seu mestre Sócrates) iniciaram: Uma construção de conhecimento que não nega saberes - Uma amizade com o saber... 

Este Theon (ou Zeus) Hegemon, que possivelmente é Nous, não é um Deus distante e frio, que apenas iniciou o processo de criação do universo. Ele criou a(s) eidos (ideia/forma), sendo a mais sublime o Bem/belo (kalos). Eidos são acessíveis só cognitivamente porque são mais reais, portanto mais psíquicos (da alma...) do que o "mundo sensível" (sensorial, corporal). 

Assim, a realidade sublime é acessada pela Psiquê (alma) e não pelo soma (corpo). Naturalmente percebemos o tempo (chronos) com nossa psiquê e só podemos transcendê-lo com a mesma. É com a alma que alcançamos o "Hiper Ouranos" ou o "aether", o "distante" céu luminoso sem o calor das chamas, o "além céus", que não por mera coincidência parece misturar os nomes do titã Hiperyon (além das eras) e da divindade Ouranos (Urano, o céu distante, o cosmo). É com nossa essência mais interior e verdadeira que transcendemos o espaço/ tempo. É com a ideia mais sublime (o bem/ belo) que alcançamos isto. 

Como já mencionado, o bem, é o que há de mais amável. Sendo uma ideia/forma (eidos), o Bem está ligado ao estágio sublime do amor, além do eros (paixão sensorial) e da filia (amizade). Este amor mais sublime é ágape, o amor a todas as almas, às suas criações que visam o bem e a lei natural e divina (que são uma só). Por isso Nous (Deus) ama: ele fez o Bem! Por isso transcendemos com o amor, buscando viver conforme a ideia (eidos) sublime, o Bem (kalos). 

 Conclusão ou "Considerações Finais"

Com a centralidade na ética (a virtude, a ideia do Bem), a proposta de Platão, assim como a de seu mestre Sócrates, era de construir conhecimento (episteme) através do diálogo, respeitando diferentes perspectivas da consciência humana. A filosofia por eles fundada, não restringia métodos escolhendo uma visão de mundo excluindo outras cosmovisões. Nas obras Teeteto e Protágoras, Platão indica como uma teoria centrada exclusivamente em experiências sensoriais era relativista e arbitrária: não permitia a busca por uma verdade, nem permitia uma construção de conhecimento universalizado. E isto não fazia da filosofia fundada por Platão algo aleatório ou sem método: além da pauta supra citada (ética, ideia do bem...) que envolve a busca pela virtude/ um valor universal, excluindo a priorização da retórica/ sofisma/ discurso meramente convincente e a busca pelos excessos de prazeres sensoriais ou pelo acúmulo de grandes fortunas materiais; havia a postura da presunção da ignorância como pré requisito para se investigar / estudar (pois onde há dúvida é possível a investigação) e a finalidade da melhoria das coisas que são, principalmente envolvendo a psiquê. O ser e o existir são verdadeiros portanto bons e (por exclusão) o "não ser" e o inexistir são falsos! Por isso Platão em sua teoria sobre ton onton (as coisas que são), ou ontologia, só discutia a possibilidade das coisas serem melhores. Ontologia não é tentar definir o que existe e o que não existe e por esta razão, a filosofia ocidental em sua origem (platônica) pautou a ideia do Bem! Porque o "mal" é mera ausência do bem - estuda-se o bem e já se entende tudo - inclusive o "mal" por exclusão. Esta centralidade no bem (e na ética, palavra que vem de ethos - caráter) certamente foi sendo deixada de lado no decorrer da história da filosofia.

Sócrates se apoiava na tradição oral para despertar a noção da virtude (do bem) nas pessoas. Seu método, a maiêutica, se deu através do diálogo. Quem nega saberes e formas de consciências de ser e de existir nega esta interação que desperta o bem nas pessoas - a construção do saber pautada no bem, na ética. Negar isto, é diabólico, notável certamente pela própria etimologia da palavra "dia bolos" (do grego: negar a interação de dois). A filosofia em sua origem é dialética porque é aberta ao diálogo: jamais nega a interação e o desenvolvimento mútuo. 

 Fontes:

Platão, Político 

Platão, Filebo 

Platão, Fedon 

Platão, Menon

Platão, O Banquete

Platão, A República 

Platão, Górgias 

Jean Gebser, The Ever Present Origin

 

Observações sobre Filebo (Do Prazer e da Ética) Pt. 1

Filebo (Do Prazer e da Ética) 

Esta obra de Platão leva o nome do personagem que acreditava que o bem era o prazer. Para Filebos, uma vida onde prioriza-se os prazeres seria o ideal, a vida perfeita, o verdadeiro bem. Sócrates discorda alegando a importância da mente: Da Inteligência, da Sabedoria e do Conhecimento para se alcançar o verdadeiro Bem. Filebo deixa a discussão seguir entre seu colega Protarco e Sócrates.

16b-17a "Sócrates – Meninos, o caminho recomendado por Filebo não existe. Não há nem pode haver caminho mais belo do que o que eu sempre amei, mas que perco muito freqüentemente, ficando sempre na maior perplexidade. 

Protarco – Qual é? Basta que o menciones. 

Sócrates – Indicá-lo é fácil; difícil acima de tudo é percorrê-lo. Foi graças a esse método que se descobriu tudo o que se diz a respeito às artes. Considera o seguinte. 

Protarco – Podes falar. 

Sócrates – Até onde o compreendo, trata-se de um dádiva dos deuses para os homens, jogada aqui para baixo por intermediário de algum Prometeu, juntamente com um fogo de muito brilho*. Os antigos, que eram melhores do que nós e viviam mais perto dos deuses, nos conservaram essa tradição: que tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito. Uma vez que tudo está coordenado dessa maneira, precisamos procurar em todas coisas sua idéia peculiar, pois sem dúvida nenhuma a encontraremos. Depois dessa primeira idéia, teremos de procurar mais duas, se houver duas, ou mais três, ou qualquer outro número, procedendo assim com todas, até chegarmos a saber não apenas que a unidade primitiva é una e múltipla e infinita, como também quantas espécies ela contém. Não devemos aplicar a pluralidade a idéia do infinito sem primeiro precisar quantos números ela abrange, desde o infinito até à unidade; só então soltaremos a unidade de cada coisa, para que se perca livremente no infinito. Conforme disse, foram os deuses que nos mimosearam com essa arte de investigar e aprender e de nos instruirmos uns com os outros. Mas os sábios de nosso tempo assentam ao acaso o uno e o múltiplo com mais pressa ou lentidão do que fora necessário, saltando indevidamente da unidade para o infinito, com o que lhes escapam os números intermediários. Esse, o caráter fundamental que permite distinguir se em nossas discussões procedemos dialeticamente ou eristicamente."

*Sócrates refere-se ao mito onde o titã, filho de Iapetus, teria dado o fogo da inteligência, ou da psiquê (alma) à vida humana. Com a frase seguinte, é possível que ele esteja indicando que os povos mais antigos conheciam mais meios de se comunicar com o divino, ou com os “deuses” em comparação com o povo de seu tempo (século 4 a.C.). As/ os oráculos, por exemplo, existiam desde muito antes de Sócrates. 

Sócrates critica os filósofos que ensinam erroneamente sobre o uno e o múltiplo. Neste caso ele pode estar criticando classes além dos sofistas: Embora Sócrates e Platão tenham aceitado ideias de Parmênides e sua escola, a aceitação teria sido somente parcial: Para Platão, a ideia de Uno/ do monismo (de Parmênides) não explica todas as coisas pois tende a indicar que tudo é imutável. Já a crítica aos que afirmam que tudo é múltiplo / infinito pode ser uma crítica ao outro extremo, talvez a escola relativista de Protágoras. 

É possível entender que a dialética é a discussão para investigar e aprender através da medição, enumeração, comparação etc. Já a erística, vem da palavra Éris (deusa da discórdia) e é o discutir pelo discutir ou a mera disputa onde não se prioriza o aprendizado nem a investigação. 

Sócrates diz que é importante que não caiam em discursos distorcidos sobre o que é uno e o que é múltiplo e que é importante enumerar os prazeres e saberes para iniciar a discussão. Ele segue explicando que conhecer o uno/finito e o múltiplo/infinito não basta para entender e praticar uma ciência ou técnica: O músico não toca instrumentos só porque sabe quantas notas musicais existem, nem alguém aprende a falar porque sabe que existem inúmeros sons na natureza. É preciso entender as qualidades dos elementos estudados, suas combinações, resultados, contextos etc. Seus interlocutores reclamam, não entendendo o porquê explicar tais coisas, então Sócrates decide definir o bem como ponto de partida: 

20d "Sócrates – É de necessidade forçosa que a natureza do bem seja perfeita? Ou será imperfeita? 

Protarco – Terá de ser o que há de mais perfeito, Sócrates. 

Sócrates – E agora, o bem é suficiente? 

Protarco – Como não? Nesse particular, exatamente, é que ele ultrapassa tudo o mais. 

Sócrates – Como também devemos afirmar, segundo penso, com absoluta convicção, que todo ser dotado de discernimento o procura e se esforça por adquiri-lo em definitivo, sem preocupar-se de nada destituído de qualquer conexão com o bem. 

Protarco – Contra isso não há objeção possível."

Sócrates a seguir mostra através do diálogo, dois tipos de vida extremos: O primeiro vive apenas dos prazeres sem os atributos da mente (como memória, inteligência, opinião etc), portanto não saberá discernir o que é prazer, não se lembrará dos prazeres, nem preverá ou planejará prazer algum, O segundo vive apenas da razão, saber e memória, sem prazer algum e se tornaria insensível e indiferente a tudo. Em seguida Sócrates propõe um terceiro modo de viver que seria a mescla do prazer com a inteligência e o saber. Protarco concorda que os 2 primeiros modelos de vida não são desejáveis nem suficientes. 

Sócrates continua: "E daí não se concluirá, também, com evidência meridiana, que nenhum dos dois participa do bem? Pois, do contrário, também seriam suficientes, perfeitos e desejáveis por parte das plantas e dos animais capazes de viver semelhante vida o tempo todo. E se algum de nós preferisse outra condição, sua escolha seria contrária à natureza do que é verdadeiramente desejável, e efeito involuntário da ignorância ou de alguma “anánke ouk eudaímonos”*. 

Protarco – Parece mesmo, que tudo se passa dessa maneira."

*Esta última sentença de Sócrates é traduzida como fatalidade perniciosa por Carlos Alberto Nunes do grupo de discussão Acrópole e como necessidade infeliz por Edson Bini, tradutor da coleção Platão - Diálogos (IV) da Edipro. Lembrando que: anánke é necessidade, ouk é uma negação (não ou sem) e eudaímonos vem de eus (bom, nobre) daímonos (divindade, espírito ou espiritual).

22c-23a "Sócrates – Nesse caso, considero cabalmente demonstrado que a deusa de Filebo não pode ser confundida com o bem. 

Filebo – Nem tua “nous”*, Sócrates, se identificará com o bem, pois está sujeita às mesmas objeções."

*Edson Bini traduz “nous” como conhecimento e Carlos A. Nunes, como inteligência

"Sócrates – Com a minha, Filebo, é possível que isto aconteça; porém não com a inteligência (nous) ao mesmo tempo divina e verdadeira. Com essa, entendo que as coisas se passam de outro modo. Não disputo o primeiro prêmio para a inteligência, no que entende com aquela vida mista (vida comum); quanto ao segundo, precisamos ver e examinar o que será preciso fazer. Talvez eu e tu pudéssemos defender a tese de que a verdadeira causa dessa vida mista seja, respectivamente, a inteligência ou o prazer, e assim nenhum dos dois viria a ser o bem em si mesmo, restando a possibilidade de aceitarmos um deles como causa do bem. Sobre esse ponto, sou inclinado a sustentar contra Filebo que, seja qual for o elemento presente nessa vida mista que a deixa boa e desejável, não será o prazer, mas a inteligência o que com ele apresenta com mais semelhança e afinidade. Com base nestes raciocínios, podemos afirmar que, em verdade, o prazer não tem direito nem ao segundo prêmio, como está longe de merecer o terceiro, se confiardes agora em minha inteligência. 

Protarco – Em verdade, Sócrates, quer parecer-me que jogaste ao chão o prazer; foi derrubado pelo teu último argumento: sucumbiu na disputa pelo primeiro prêmio. Quanto à inteligência, precisamos reconhecer sua superioridade nisto de não haver disputado a vitória; se o fizesse, teria sofrido igual revés. Mas, se o prazer for privado também do segundo prêmio, cairá bastante no conceito de seus aficcionados, que nem mesmo encontrariam nele sua beleza primitiva."

Sócrates afirma notoriamente que há uma inteligência (nous) que é divina e verdadeira, destacando-a de sua inteligência, ou seja, da inteligência humana. Ele não diz que a inteligência humana / o conhecimento humano, certamente voltado à vida comum, seja o sinônimo do bem. Por isto, em outros textos, Platão sugere que se busque a ideia do Bem, pois ela não está na realidade meramente sensorial e sim em uma realidade ideal alcançável e passível de ser colocada em prática.

A seguir, Sócrates segue dialogando sobre o infinito, o finito, o meio termo entre estes 2 gêneros ou classes de elementos e sua causa/ origem. 

23c "Sócrates – Dissemos que Deus revelou nas coisas existentes um elemento finito e outro infinito. Protarco – Perfeitamente."

23d-24b "Sócrates – Formemos com esses elementos duas classes, vindo a ser a terceira o resultado da mistura de ambas. Mas receio muito que me torne por demais ridículo com essa divisão por espécies e com a maneira de enumerá-las. 

Protarco – Que queres dizer com isso, meu caro? 

Sócrates – Tudo indica que vou precisar de um quarto gênero. 

Protarco – Dize qual seja. 

Sócrates – Considera a causa da mistura recíproca dos dois primeiros e acrescenta-a ao conjunto dos três, para formamos o quarto gênero. 

Protarco – E não viríamos, depois, a necessidade de um quinto, como fator de sua separação? 

Sócrates – Talvez; porém não agora, segundo creio. Todavia, se for preciso, hás de permitir que eu saia à procura de mais esse. 

Protarco – Por que não? 

 Sócrates – Para começar, desses quatro separemos três, e depois de anotar que dois deles são altamente dissociados, e de reduzi-los à unidade, observemos como cada um deles pode ser ao mesmo tempo uno e múltiplo. 

Protarco – Se me explicasses esse ponto com maior clareza, decerto me fora possível acompanhar-te. 

Sócrates – O que eu digo é que os dois gêneros por mim propostos são os mencionados há pouco, a saber: o finito e o infinito. Primeiro vou tentar demonstrar-te que, em certo sentido, o infinito é múltiplo. O limitado pode esperar um pouco mais. 

Protarco – Que espere, por que não? 

 Sócrates – Presta atenção. Além de difícil, é bastante controverso o que te convido a considerar; e contudo, considera-o. Começa experimentando se és capaz de determinar limite no mais quente e no mais frio, e se o mais e o menos que residem nesses gêneros não os impedem de ter fim enquanto residirem neles; pois, uma vez chegados ao fim, o mais e o menos também deixarão de existir. (...) – Porém sempre haverá, é o que afirmamos, mais e menos no que for mais quente e mais frio. 

 Protarco - Sem dúvida. 

Sócrates – Assim, nosso argumento demonstra que esses dois gêneros não tem fim; e não tendo fim, de todo jeito serão infinitos."

25c-e "Sócrates – Acrescenta-lhes, também o mais seco e o mais úmido, o mais e o menos, o mais rápido e o mais lento, o maior e o menor e tudo o mais que há instantes incluímos numa só classe definida pelos conceitos do mais e do menos. 

 Protarco – Referes-te à classe do infinito? 

Sócrates – Exato. Agora mistura-a com a família do finito.

Protarco – Que família?

Sócrates – A do finito, que há pouquinho deveríamos ter reduzido à unidade, tal como fizemos com a do infinito, mas deixamos de fazê-lo. Talvez o consigamos agora, se da reunião das duas surgir a que procuramos.

Protarco – A que classe te referes e como será isso?

Sócrates – A do igual e do duplo e toda classe que põe termo à diferença natural dos contrários e enseja harmonia e proporção entre seus elementos, introduzindo-lhes número.

Protarco – Compreendo. Ao que pareces, queres dizer que de cada mistura desses elementos nascem certas gerações."

Interessante notar que entre o finito (uno) e o infinito (múltiplo), Sócrates identificou uma classe intermediária. Esta classe seria passível de medição, enumeração e quantificação, portanto certamente os números maiores que 0 (zero) e menores que infinito, se enquadrem nela. Poderiam ser estes argumentos do diálogo “Filebo” de origem (ou influência) pitagórica? Parece uma possibilidade.

 25e "Sócrates – Não será o caso das doenças, em que a mistura acertada desses elementos produz a saúde.

Protarco – Perfeitamente.

Sócrates – E no agudo e no grave, no veloz e no lento, todos eles infinitos, não se dará a mesma coisa: com deixar limitados esses elementos não darão forma perfeita a toda a música.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – E com se associarem ao calor, ao frio, não lhes tira o excesso e o infinito, substituindo-os por medida e proporção?

Protarco – Como não?

Sócrates – Essa é a origem das estações e de tudo o que há de belo: a mistura do limitado com o ilimitado.

Sócrates – Deixo de mencionar um milhão mais de coisas, tal como a beleza e força com saúde, e também na alma, uma infinidade de qualidades excelentes. Vendo a divindade, meu caro Filebo, a arrogância e toda sorte de maldades que se originam do fato de carecerem de limites os prazeres e a gula, estabeleceu a lei e a ordem, dotadas de limite. Pretendes que ela estraga a alma; pois eu digo justamente o contrário: é o que a conserva. E tu, Protarco, como te parece?

Protarco – De inteiro acordo contigo, Sócrates.

Sócrates – Se bem observaste, aí estão as três classes a que me referi.

Protarco – Parece que compreendi. Uma delas, creio, classificas como infinita; a Segunda; como o limite das coisas existentes; porém não aprendi muito bem o que entendes pela terceira.

Sócrates – É assim mesmo. Com respeito ao terceiro, bastará aceitares que eu incluo nessa rubrica, como unidade, todos os produtos dos dois primeiros, tudo o que nasce para o ser, por efeito da medida e do limite."

26e-27b "Sócrates – Mas também dissemos que, além desses três gêneros, havia a considerar um quarto. Ajuda-me a pensar. Vê se te parece necessário que tudo o que devém, só se forme em virtude de determinada causa.

Protarco – Sem dúvida; pois, sem isso não poderia formar-se.

(...) Sócrates – E agora: todas as coisas geradas e tudo de onde elas provêm não nos forneceram os três primeiros gêneros?

Protarco - Isso mesmo.

Sócrates – E o artesão (demiurgo) que produz essas coisas, a causa, declaramos ser o quarto, pois demonstramos à saciedade que difere dos outros.

Protarco – Difere, sem dúvida.

Sócrates – E agora, depois de havermos distinguido os quatro gêneros, só seria de vantagem enumerá-los por ordem, para mais fácil memorização deles todos."

Sócrates conclui que a vida equilibrada entre inteligência e prazer pertence ao terceiro gênero, ou seja, do misto entre finito e infinito. A causa desta mistura ou deste “terceiro gênero”, o “quarto” gênero citado por Sócrates, que alguns autores traduzem como artesão (de demiurgo), seria a mente/ inteligência cósmica. Assim, Platão, relaciona os conceitos de uno (dos filósofos Parmênides, Xenófanes etc) e de infinito, com a força criadora, o Demiurgo e/ou Nous, a inteligência divina/ mente cósmica, certamente fazendo o elo entre estes gêneros, que um dos mestres de Sócrates, Anaxágoras, não havia feito. Alguns estudiosos, como por exemplo, o filólogo Paul Friedländer, consideram que estes assuntos diferentes do prazer, abordados por Platão neste texto (Filebo), pertencem à área da ontologia. Porém, vale lembrar que a finalidade da ontologia, mostrada na obra Fédon (96 b-e, 97 a-e, 98 a-b), é discutir a melhor maneira das coisas serem.

XV 27e-29a – "Sócrates – (...) Como fica teu tipo de vida, Filebo, de prazer puro, sem mistura alguma? Em qual dos gêneros enumerados ela se enquadraria corretamente? Mas, antes de te explicares, responde-me ao seguinte. 

Filebo – Podes falar. 

Sócrates – A dor e o prazer apresentam limites, ou serão suscetíveis de mais ou de menos? 

Filebo – Sim, Sócrates; são suscetíveis de mais; o prazer deixaria de ser todo o bem, se não fosse infinito por natureza, em grau e em quantidade. 

Sócrates – Como também a dor, Filebo, deixaria de ser todo o mal. Assim sendo, precisamos procurar algo fora da natureza do infinito que comunique aos prazeres uma parcela do bem. Concedo-te que essa qualquer coisa pertença à classe do infinito. Mas então, Protarco e Filebo, a inteligência, a sabedoria e o conhecimento, em que classe incluiremos, dentre as mencionadas há pouco, para não nos tornamos desatenciosos (sem devoção)? Não é pequeno o perigo em que incorremos, conforme resolvermos certo ou errado essa questão. 

Filebo – Colocas num pedestal muito elevado, Sócrates, tua divindade favorita (nous). 

Sócrates – O mesmo fazes com a tua companheira (hedonis). Mas a pergunta não pode ficar sem resposta."

"(...) Sócrates: Todos os sábios estão acordes – por isso mesmo com isso se engrandecem – em que, para nós, Nous (a inteligência, ou o entendimento) é a rainha do céu e da terra. E talvez tenham razão. Porém, caso queiras, investiguemos mais extensivamente a que gênero ela pertence. 

Protarco – Faze como entenderes, sem contar conosco, ó Sócrates, pois não é enfadonho. 

XVI – Sócrates – Muito bem. Então, principiemos com a seguinte pergunta. 

Protarco – Qual será? 

Sócrates – Para sabermos, Protarco, se no conjunto das coisas e nisto a que damos o nome de universo domina alguma força irracional e fortuita, ou seja o mero acaso ou o seu contrário, a mente, como diziam nossos antepassados, e uma sabedoria admirável que tudo coordena e dirige? 

Protarco – São duas assertivas, meu admirável Sócrates, que se destroem mutuamente. A que acabaste de enunciar se me afigura verdadeira blasfêmia. Mas, dizer que a mente determina tudo, é uma asserção digna do aspecto do universo, do sol, da lua, dos astros e de todo o circuito celeste, sem que, do meu lado, eu possa pensar ou manifestar-me a esse respeito por maneira diferente. 

Sócrates – Queres, então, que nos declaremos de acordo com os nossos maiores, sobre se passarem as coisas, realmente, dessa maneira, não nos limitando a repetir sem o menor risco de a opinião de terceiros, mas compartilhando com aqueles tanto a censura como o risco, sempre que algum sujeito petulante afirmar que não é assim e que não há ordem no universo? 

Protarco – Como não hei de querer?"

Sócrates então compara os elementos constituintes dos corpos (celestes e dos seres vivos) limitado às condições de sua época, por exemplo, quando se interpretava que haviam só 4 elementos (fogo, ar, água e terra) e não se conhecia os elementos químicos descobertos na era moderna. 

29e-30d (...) Sócrates – Aceita a mesma conclusão para o que chamamos universo (“kosmon”); é um corpo da mesma espécie do nosso, porque possui os mesmos elementos constituintes.

Tanto o corpo dos seres vivos como os planetas, estrelas e outros corpos celestes, são constituídos de cargas elétricas/ átomos, elétrons e suas sub partículas. Tais partículas microscópicas constituem somente um bilionésimo do átomo, sendo o restante, espaço vazio e campo eletromagnético. Mesmo sem saber destes detalhes, Sócrates (e/ ou Platão) identificou que o universo e os corpos dos seres vivos possuíam os mesmos "elementos" constituintes. 

Protarco – Certíssimo.

Sócrates – E agora: é desse corpo universal que o nosso se alimenta, ou é do nosso que o universo tira o de que necessita e recebe e conserva tudo o que há pouco mencionamos?

Protarco – É outra pergunta, Sócrates, que nem valia a pena formular.

(...) Sócrates – Afirmaremos que nosso corpo é dotado de psiquê*?

*Geralmente traduzido como alma, a psiquê de Platão inclui o conceito da mente com todos os seus “elementos” (cognição, memória, pensamento, sentimento, virtude etc) até o conceito que interliga tais “elementos” em uma unidade coesa equivalente a um espírito vivo/ essência imortal. Em outras obras Platão indica que a psique pode adoecer (em Górgias), mas não pode ser destruída (A República e Fedon) e que ela pode alcançar o “hiper ouranos” (além céus), a realidade divina, ao viver a virtude, o amor mais sublime, que é o amor a todas as almas, à justiça e ao Bem (Fedro). 

Protarco – É o que vamos dizer.

Sócrates – E de onde, ó amigo, a receberia, se o corpo do universo não fosse animado e não possuísse os mesmos elementos que o nosso, e, a todas as luzes, ainda mais belos?

Protarco – Impossível ser de outra forma, Sócrates.

Sócrates – Pois não podemos acreditar, Protarco, que desses quatro gêneros: o finito, o infinito, o misto e o gênero da causa, que, como 4º, se encontra em todas as coisas, essa causa que fornece uma alma a nosso corpo, dirige os exercícios físicos e cura os corpos quando estes adoecem, e forma mil outras combinações e as repara, seja, por isso, denominada sabedoria total multiforme, e que no conjunto do céu*, onde tudo isso se encontra em maior escala e sob forma mais bela e pura, não se tenha realizado a natureza mais bela e de maior preço.

[*holoi te ouranôi; também podendo ser traduzido como "em todo universo"]

Protarco – De fato, não faria o menor sentido.

Sócrates – A não ser assim, melhor faríamos seguindo outra opinião, à qual já nos referimos tantas vezes, sobre haver ilimitado (infinito) abundante  no universo, suficiente finito, além de uma causa nada desprezível (não má, nada insuficiente), que coordena e determina os anos, as estações e os meses, e que, com todo o direito, poderá ser denominada sabedoria e inteligência (sophía kaì noûs).

Protarco – Sim, com todo o direito. 

Sócrates – Certamente sem alma (psique), não pode haver (genoísthin) sabedoria nem inteligência. 

Protarco – De jeito nenhum.

Sócrates – Dirás, então, que na natureza de Zeus (Diós) há uma alma real (régia) e uma inteligência real formadas pelo poder da causa, bem como outros belos (ou bons, de kalos) atributos nas demais divindades, designados da maneira que melhor lhes aprouver. 

A última fala de Sócrates tem traduções que diferem um pouco entre si, certamente por ser mais complexa. A palavra "real" neste texto em grego é basilikon, referente à realeza, portanto a tradução de Edson Bini, que é régia, parece mais precisa do que a de Carlos A. Nunes. Outro detalhe é que o texto em grego parece iniciar com uma negação que não aparece nas versões em português. Talvez refira-se ao fato de Sócrates querer dizer que não há este fator régio nele e nos humanos no mundo sensorial. Também não há palavra equivalente a "divindades" no texto em grego, ao invés disto, há a palavra fílos (amigos). Talvez os tradutores entenderam que isto se referia aos "amigos" de "Diós", as divindades.

(...) Sócrates – Decerto, Protarco, não irás imaginar que eu desfiei todo esse discurso sem segundas intenções. Ele serve para reforçar o juízo há muito enunciado, de ser o mundo, sempre, governado pela inteligência.

Protarco – Com efeito.

Sócrates – Além do mais, ensejou resposta à minha pergunta, sobre pertencer a inteligência (nous) ao gênero do que dissemos ser a causa de tudo, uma das quatro por nós admitidas. Aí tens a resposta que te devíamos.

Sócrates conclui que, havendo uma causa e havendo ordem/ leis no universo, Nous (inteligência, entendimento) é a causa de tudo - rege todo o universo* (hóloi te ouranôi) que é sua criação, todos os movimentos cósmicos, astronômicos e as almas (psique) humanas. Além disto, sendo a causa de tudo, tem os mais belos e puros aspectos da alma, a mais nobre e admirável natureza.

31a Sócrates – A respeito de ambos, não nos esqueçamos de que a inteligência é aparentada com a causa e mais ou menos do mesmo gênero, enquanto o prazer é infinito em si mesmo e pertence ao gênero que não tem nem nunca terá em si e por si mesmo nem começo nem meio nem fim.

Certamente a inteligência é "mais ou menos" do mesmo gênero da causa, porque Sócrates identificou que ela é, de certa forma, transcendente. Há inteligência na causa de tudo, assim como há na vida, nos seres humanos, mas não em todas formas de vida na realidade sensorial. Pois a inteligência (nous) não é meramente sensorial, ela é psíquica, da mente/ da alma. O ser humano então, tem uma essência imortal e a capacidade de transcender através de sua psique (alma), como mostrado em outras obras de Platão (ver Fedon, Fedro etc).


 

Uma Reflexão sobre as Crianças e o Afeto

As crianças mostram uma grande capacidade acurada de perceber mínimas expressões de sentimentos. Tal capacidade de perceber expressões de sentimentos, ou emoções, mostra que as crianças têm uma atenção altamente voltada para isto. Eu já havia percebido tal capacidade em alguns momentos no decorrer de minha vida, mas recentemente percebi em várias crianças durante meu trabalho em uma clínica para crianças com transtorno do espectro autista (TEA). 

Apesar de espalhar-se a generalização de que pessoas com TEA não gostam ou não ligam para demonstrações de afeto, isto se mostrou bem impreciso durante meus 10 meses de estágio na clínica. Algumas das crianças com TEA procuravam atentamente por alguém que lhes desse atenção no seu entorno, ainda que fizessem isso rapidamente, geralmente seguido por um comportamento de "se fechar". Inclusive o vínculo afetivo com tais crianças mostrou-se parte importante do tratamento para o desenvolvimento destas, mas não falarei sobre autismo aqui.

Recentemente percebi esta "busca" por atenção/ afeto nos meus sobrinhos: No menorzinho, percebi por meio da "atitude básica" do bebê que busca contato visual e aprende a sorrir e rir. Na menina, com seus 9 anos de idade, percebi quando ela me pediu para aprender a fazer nhoque. Após terminarmos o nhoque, eu me servi e ela, mesmo alegando não querer comer, ficou olhando meu prato. Perguntei se ela não queria comer o nhoque que ela mesma fez, e ela hesitou (pensou) para decidir e responder novamente (negativamente). Ela está acostumada a recusar comida (possivelmente tem um problema psicoemocional por trás disto), mas ao receber atenção e interagir no preparo do alimento, mostrou ao menos, repensar este seu comportamento típico.

Esta busca por afeto das crianças se dá por meio da atenção ao olhar dos adultos, tom de voz, maneira de falar, enfim é bem mais intuitivo do que racional, mas é perceptível nos detalhes do olhar, da reação e da fala da criança. 

Me lembro de um estudo sobre o comportamento dos chimpanzés, realizado no Japão: Os estudiosos notaram a elevada capacidade do chimpanzé de se atentar e perceber vários fenômenos no presente. Em relação ao ser humano, o chimpanzé memoriza mais detalhes do que este, no que se refere a posições de objetos (incluindo seres vivos) no espaço e os variados movimentos destes. Em outras palavras, eles prestam muito mais atenção a detalhes no espaço presente do que o ser humano. Isto porque o ser humano, como parte de sua evolução (na separação do gênero Pan e surgimento do Homo) , teria voltado sua consciência para fatos além do presente, perdendo parte dessa capacidade de captar muitos detalhes físicos/ do espaço no presente. O ser humano faz mais uso das recordações de longo prazo do que o chimpanzé por exemplo. Os cientistas estipularam que isso foi útil para memorizar membros individualistas do bando, fazendo com que o ser humano pudesse excluir membros agressivos e ameaças similares às relações da vida grupal/ familiar/ coletiva etc. 

Fazendo uma correlação destas observações, parece que a atenção das crianças voltada às demonstrações de afeto indica que as boas emoções/ expressões de bons sentimentos foram, são e serão essenciais para a vida humana. É óbvio que identificar sentimentos ruins têm sua utilidade, mas a criança busca o sorriso, a atenção e a disposição do outro para cuidar de si e/ ou para brincar consigo. É uma busca por bons sentimentos, mas principalmente de estar presente com tais sentimentos. Portanto é a necessidade de estar presente com felicidade, de ser feliz. 

Essa é a necessidade básica do amor.

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...