Observações sobre Politéia ("A República"); Livro X

Segue a última parte das observações sobre Politéia, ou "A República" de Platão. 


 Livro 10: Sócrates começa falando da importância de não se aceitar a arte mimética na cidade/ estado ideal e inicia o diálogo sobre o que é o mimetismo; Ele explica que os artífices fabricam coisas partindo de uma ideia e esta ideia refere-se unicamente ao objeto a ser produzido, como por exemplo uma mesa ou uma cama. Isto porque nenhum artesão (kheirotekhnos) começa a projetar a partir de uma mera parte do objeto, pois se fosse assim ele teria que imaginar uma perna da cama por exemplo, então outra perna ou outra parte e ir adicionando partes em pensamento/ idealização, antes de produzir o objeto em si. O filósofo então diz que há um criador (demiurgo) que faz o trabalho de todos artesãos e é o criador de todas as coisas, o que faz Glauco ficar espantado e duvidando de Sócrates. O filósofo então fala para ele e os demais participantes da conversa imaginarem estar andando com um espelho em mãos e pergunta se tal item não produzirá imagem de tudo em seu caminho. Glauco diz que são apenas fenômenos (imagens, aparências) e chega no ponto que Sócrates quer. 

O filósofo diz que Deus (Theos, possivelmente o demiurgo) cria todas as coisas, portanto os exemplos dados anteriormente, como a cama por exemplo, também é sua criação. Depois o artesão cria o tal objeto (a cama) e por último o pintor cria uma cama que é só uma aparência (imagem da cama). A pintura então é imperfeita por captar apenas uma parte da essência do objeto reproduzido - ela estaria 3 pontos distantes da verdade. 

Embora tradutores como Pietro Nassetti interpretam isso como uma maneira de contar os extremos na cultura helênica da época de Platão, parece também ser uma aplicação filosófica da matemática, seja a geometria ou o cálculo, regularmente presente nas obras do filósofo: No livro anterior, Platão diz que, sequencialmente, cada sistema de governo é exponencialmente 3 vezes pior do que o governo dos filósofos, fazendo da tirania e do tirano 729 vezes mais infeliz(es) do que sua “(filo)sofocracia”; Em sua parábola sobre o governo de Kronus durante a mítica “Era de Ouro”, Platão faz insinuações matemáticas sobre os ciclos cósmicos, seus inícios e fins. Na parábola da caverna, Platão utiliza-se da comparação entre o bidimensional (sombras e imagens refletidas) e o tridimensional (os corpos iluminados pelo sol etc). 

Sócrates diz que a pintura pode representar um objeto visto de frente, de lado ou de cima (bem como o desenho técnico onde mostra-se as 3 vistas de um objeto tentando remontar sua tridimensionalidade) e pergunta a Glauco se estas vistas são verdadeiramente diferentes entre si ou se são diferentes no que se refere só a aparência do objeto. Assim, ambos concluem que só há diferença na aparência, pois a pintura é uma arte que reproduz só a aparência dos objetos. Seguindo a mesma linha de classificação para as demais artes miméticas, o filósofo classifica a poesia e a tragédia da mesma maneira da pintura. 

[598 d] Sócrates — Aí está! No meu modo de ver, o que se deve pensar de tudo isto é o seguinte: quando um indivíduo vem nos dizer que encontrou um homem conhecedor de todos os ofícios, que sabe tudo o que cada um sabe do seu ramo, e com mais exatidão do que qualquer outro, devemos assegurá-lo de que é um ingênuo e que, ao que parece, deparou com um charlatão e um imitador, que o iludiu a ponto de lhe parecer onisciente, porque ele mesmo não era capaz de distinguir a ciência,a ignorância e a imitação. 

Apesar de estar explicando como a pintura pode simular várias coisas, nesta fala Sócrates parece fazer uma alusão crítica também aos mestres da retórica e da oratória, os sofistas. 

A seguir Sócrates explica como Homero ao falar de vários temas em suas poesias, pouco sabia sobre os temas em questão. Isto está de acordo com a construção de conhecimento proposta por Platão onde para se conhecer um assunto deve-se estudá-lo e produzir algum resultado bom para outrem: a serventia das artes e profissões (tekhnes) explicada nos 2 primeiros livros da República e que está de acordo com a função de um professor de ontos (ontologia) apresentada no diálogo Fédon.Vale a pena lembrar que na Grécia clássica (a época de Platão) e antes disso, artes como a pintura e a poesia eram utilizadas para propagar os mitos, que, embora alguns pudessem ter um significado alegórico, muitos traziam exageros e conteúdo dúbio, como o autor explica entre os livros 2 e 3 da “República”.

Os interlocutores então concluem que um homem comedido resiste melhor do que outros homens (não comedidos), à dor da perda de alguém querido ou de algo importante. Eles também concordam que tal homem comedido não estaria imune ao desgosto, mas apenas sofreria menos do que outros e que resistiria e lutaria mais com a sua dor quando observado por outros do que quando só, pois nesta última situação poderia dizer coisas inaceitáveis ou vergonhosas. Assim, é necessária a razão como força para resistir as aflições, pois a razão é contrária da aflição, assim como o autocontrole é contrário ao descontrole sobre si mesmo. Parece estranho contrapor razão e aflição, mas cabe lembrar que nos livros anteriores Platão classificou o prazer verdadeiro como os prazeres da finalidade da filosofia (prazer pelo bem/ belo, pela justiça, as virtudes imutáveis etc) e estes prazeres mais puros são contrários da aflição, da inquietação e da dor. Assim como o autor também criticou a ignorância indicando que esta é o oposto do intelecto e da razão que busca a sabedoria. 

[604 c-e] Sócrates — A lei diz que não há nada mais belo do que manter a calma, tanto quanto possível, na infelicidade, e não se afligir, porque não se pode distinguir com clareza o bem do mal que ela comporta; não se ganha nada em indignar-se, nenhuma das coisas humanas merece ser tomada muito a sério, e, numa ocasião dessas, agindo com destempero, seria impossível ver o que estaria vindo em nosso socorro, porque nosso desgosto nos impediria. 

Glauco — Do que falas? 

Sócrates — Reflito sobre o que nos aconteceu. Como num lançamento de dados, devemos, de acordo com o lote que nos toca, restabelecer os nossos assuntos pelos meios que a razão nos prescreve como sendo os melhores e, indo de encontro a qualquer coisa, não agir como as crianças, que, agarrando-se à parte magoada, perdem o tempo a gritar, mas, pelo contrário, lutar por habituar a nossa alma a ir o mais depressa possível tratar o ferimento, erguer o que está por terra e fazer calar os lamentos mediante a aplicação do remédio. 

Glauco — Temos aí, com certeza, o melhor a fazer nos acidentes que nos ocorrem. 

[605 b-c] Sócrates: ...Diremos o mesmo do poeta imitador que introduz um mau governo na psiquê de cada indivíduo, lisonjeando o que nela há de irracional, o que é incapaz de distinguir o maior do menor, que, pelo contrário, considera os mesmos objetos ora grandes, ora pequenos, que só produz fantasias e se encontra a uma distância enorme da verdade. 

Glauco — Certamente. 

Sócrates — E vê que ainda não acusamos a poesia do mais grave dos seus malefícios. O que mais devemos recear nela é, sem dúvida, a capacidade que tem de corromper, mesmo as pessoas mais honestas, com exceção de um pequeno número. 

Já foi observado que Platão defendia o autocontrole, a calma e a razão e foi um crítico da poesia trágica e da imitação de personagens e de contos da Grécia antiga/ clássica. Neste trecho da obra ele cita como o caráter irascível (ultrajante) possibilita variada e numerosa imitação por parte dos artistas (poeta, ator etc). enquanto o calmo e sensato é sempre igual a si mesmo, portanto oferece menos variedade. Assim, as artes de imitação e seus respectivos artistas tendem ao caráter provocável e instável/ variável para se destacarem diante seus observadores/ diante da multidão. Tais artistas julgam acerca das mesmas coisas (de um determinado tema), ora como se fosse maiores, ora como se fossem menores, induzindo o espectador a um relativismo. Por fim, o autor relembra como estas artes (que muitas vezes abordavam os mitos gregos) geralmente ignoravam a verdade ao priorizarem emoções irracionais e destrutivas, histórias exageradas etc. Isto afasta consideravelmente a filosofia socrática, a academia de Platão e o platonismo da mitologia grega fundamentada pelos poetas Homero e Hesíodo. Ainda que com diferenças entre si, a filosofia fundada por Platão e Sócrates, assim como a pitagórica e o evemerismo, se afastam da vertente principal e popular da religião politeísta helênica (grega). 

As críticas à pintura, à poesia e à tragédia (teatro), se levadas à risca, ou seja, se ignorarem como era a sociedade grega na época de Platão, podem parecer meros argumentos conservadores, ou mais precisamente, argumentos repressores. Temos exemplos na história de grupos de ideologia repressora que proibiram o teatro e não apresentaram nenhuma proposta para a difusão do conhecimento e da ética filosófica de Platão - foi o caso da ascensão do puritanismo na Inglaterra quando os protestantes (evangélicos) puritanos durante o século 17 predominaram no parlamento inglês e impuseram uma série de leis repressoras à sociedade. Inclusive uma das mais conhecidas caça às bruxas foi realizada por um puritano nesta mesma época, resultando na morte de dezenas de mulheres. 

O filósofo termina suas críticas às poesias/ representações trágicas e cômicas, apontando como elas alimentam um gosto por tais emoções nas pessoas: A pessoa que pega gosto por assistir tragédias, entrega-se às emoções de tristeza e similares, acostumando-se a ver desgraças alheias. Por outro lado, aqueles que passam a adorar as imitações cômicas e o riso oriundo destas, passam a considerar aceitável dizer coisas patéticas ou vulgares das quais outrora teriam vergonha. Essas pessoas que priorizam tais emoções e eventos emocionantes (tragédia, tristeza trágica, comédia, riso cômico), bem como os indivíduos que tornam rotineiras as paixões (afrodisíon, de sedução, sensualidade), deixariam a razão e a moderação de lado. 

[608-609] Sócrates — Tínhamos isto a ser dito, visto que voltamos a falar da poesia, para nos justificar de termos banido do nosso Estado uma arte desta natureza: a razão obrigava-nos a isso. E digamos-lhe também, para que ela não nos acuse de dureza e rudeza, que é antiga a dissidência entre a filosofia e a poesia. Testemunham-no os seguintes aspectos: “a cadela arisca que ladra para o dono”, “o homem que passa por grande nas palavras vãs dos loucos”, “o magote das cabeças magistrais”, “as pessoas que se atormentam a subtrair porque estão na miséria” e mil outros que marcam a sua velha oposição. Declaremos, porém, que, se a poesia imitativa puder provar-nos com boas razões que tem o seu lugar numa cidade bem policiada, vamos recebê-la com alegria, porquanto temos consciência do encanto que ela exerce sobre nós, mas seria ímpio trair o que se considera a verdade. 

[...] Sócrates — Com efeito, é um grande combate, amigo Glauco, sim, maior do que se pensa, aquele em que se trata de nos tornarmos bons (christon) ou maus (kakon); Por isso, nem a honraria (glória), nem as riquezas (dinheiro), nem poder algum (a dignidade), nem mesmo a poesia, merecem que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das outras virtudes. 

Glauco — Estou de pleno acordo, e julgo que não há ninguém que deixe de concordar também. 

Sócrates — Mas ainda não falamos das recompensas maiores e dos prêmios reservados à virtude. 

Glauco — Devem ser extraordinariamente grandes se são maiores ainda do que os que enumeramos! 

Sócrates — Mas o quê, sendo tão grande, poderia ter lugar em pouco tempo (oligo chróno), visto que todo esse tempo que separa a infância da velhice é bem curto em comparação com a eternidade? 

Glauco — Não é nada. 

Sócrates — Ora! Achas que um ser imortal deva inquietar-se com um período tão curto como esse, e não com a eternidade? 

Glauco — Claro que não. Mas aonde queres chegar com esse discurso? 

Sócrates — Não observaste que a nossa alma (psiquê) é imortal? 

Glauco — Por Zeus, não! E tu poderás prová-lo? 

Sócrates — Sim, com certeza, mas creio até que tu poderias fazê-lo, pois não é difícil. 

Glauco — Para mim é, mas gostaria de te ouvir demonstrar essa coisa fácil. 

Sócrates — Reconheces que há um bem e um mal? 

Glauco — Sim. 

Sócrates — O que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que as conserva e desenvolve é o bem. 

Glauco — De acordo. 

Sócrates então pergunta à Glauco se os vícios como a ganância e a injustiça (etc) destroem a psiquê, fazendo com que ela murcha e morra ou com que saia do corpo, ao que o interlocutor responde que não. Em seguida, Sócrates indica como os corpos podem apodrecer e morrer e que as más qualidades alheias não destroem outros corpos. Elas poderiam se destruir na interação entre corpos no exemplo de um alimento podre, este causaria algum mal ao corpo que o consumisse, pois esse corpo que consome tem suas respectivas necessidades e vulnerabilidades. Sócrates seguindo a mesma linha de comparação, diz que os males do corpo também não podem destruir a psiquê/ alma sem que esta não tenha seu próprio mal; Se o corpo ficar febril ou doente, a psiquê/ alma não perece nem se torna injusta ou ímpia. 

[610e - 612] Sócrates — Estás certo. Se a perversidade própria da alma, se o seu próprio mal, não a pode matar nem destruir, um mal destinado à destruição de uma coisa diferente levará muito tempo a destruir a alma ou qualquer outro objeto que não seja aquele a que está ligado. 

Glauco — Sim, assim vejo. 

Sócrates — Então, quando não existir apenas um único mal, próprio ou estranho, que possa destruir uma coisa, é evidente que essa coisa deve existir sempre. Assim, se existe sempre, é imortal. 

Glauco — Certamente. 

Eles concluem desta forma, que o corpo então é passível de apodrecer, decompor-se e morrer, mas a psiquê (seja alma, mente ou ambas) não. Mesmo os males da psiquê, sejam eles morais/ éticos ou quaisquer outros, não podem destruí-la. Pensamentos, sentimentos, identidade e visões da realidade,  não podem ser destruídas, pois não podem ser decompostos. Neste início de século 21 isso certamente seria questionado (ou recusado) pelos cientistas materialistas. Na época de Platão talvez houvessem menos argumentos disponíveis para se combater a visão reducionista materialista predominante na ciência desde o empirismo de Locke e o positivismo de Comte, mas em um dos diálogos, Sócrates diz ao seu interlocutor, que não deve-se fazer como os indivíduos que acreditam somente no que se pode tocar (perceber sensorialmente): Não se deve confundir efeitos com causas; Esta confusão parece começar a se intensificar após estudos de anatomia do iluminismo como os feitos por René Descartes, onde são notadas reações instintivas do corpo humano em relação a fenômenos que lhe ferem e/ ou que lhe causam dor. Vários outros estudos que tratam de temas similares foram feitos depois, mas nunca provaram a inexistência da psiquê. 

Sócrates diz então, através da comparação de um “Glauco marinho”, que a alma é irreconhecível do ponto de vista da vida terreno: sendo imortal, sofre e adquiriu muitas coisas de outras existências - “desgastes pelas ondas, acúmulo de algas, de conchas etc”. Para que a alma saia desta condição de sujeira e desgaste, é preciso olhar buscando a sabedoria, pois ela é aparentada do divino (como mostrada na obra Fedro) e imortal. Mesmo que a alma possua o “anel de Gyges” mencionado no livro 2 da República, ou seja, mesmo que a alma seja invisível e possa esconder pensamentos durante a vida terrestre, ela deve praticar a justiça e se pautar por esta. 

[613-615] Sócrates relembra que no início do diálogo foi dito que a pessoa injusta pode se passar por justa e conseguir benefícios em vida; Porém, agora que concluíram que a justiça e as demais virtudes fazem bem para a alma, que é imortal e semelhante aos deuses, fica claro que as divindades não podem ser enganadas. Além disso, os semelhantes tendem a se unir, o que faria que os indivíduos justos, mesmo que sofram na Terra, estão destinados à recompensa de se unir aos deuses que são justos, moderados, corajosos e bons. 

Concluindo sobre o destino da alma, Sócrates parece sugerir que há possíveis recompensas para os justos na vida terrestre, mas as melhores recompensas estariam por vir depois disso. Ele diz que os injustos (que se entregam aos atos egoístas, vícios nos prazeres e aos excessos que fazem mal à psiquê etc) se decepcionarão no fim de suas jornadas, provavelmente aludindo também ao "pós vida". Estes não passariam mais desapercebidos e seriam apanhados no fim, sofrendo os "suplícios selvagens" ditos por seus interlocutores no início do diálogo (Glauco ou Adimanto, entre os livros 1 e 3, falam do justo que é apanhado por seus adversários injustos e consequentemente castigado).

[615-621] Em seguida, Sócrates encerra o diálogo contando a história (possivelmente um mito) de Er (Iros), um soldado da região da Anatólia/ Ásia Menor (atual Turquia) que teria morrido e visto “a realidade espiritual”, para depois retornar aos vivos (encarnados) e contar seu relato.

Tal história é praticamente uma experiência de "quase-morte" (EQM). Existem inúmeros casos na história das diversas culturas humanas, sobre experiências transcendentais ou de "EQM" desde antes do desenvolvimento da medicina moderna. Então, voltando a questão sobre provar a inexistência da psiquê (seja a alma, a mente etc): Conforme a filosifia ocidental, tal prova seria anti dialética e, assim, anti epistemológica como Platão indica na "República" e em outras obras também, como Protágoras, Teeteto etc. Afirmar que a ciência com certeza irá provar tal inexistência no futuro é um messianismo; uma promessa baseada no dogma materialista antropocêntrico surgido no fim do século 17 e intensificado no século 19. Isto rompe com a base da epistemologia, pois ignora toda a raiz e o cerne da filosofia ocidental. A epistemologia, deve ser dialética para permitir o diálogo entre diferentes áreas da ciência (epsitemes, indicada no livro 8 desta obra) e se pautar pelo bem como valor universal, ou seja, pela ética, e não por determinismos ou reducionismos, como a visão de mundo e o pressuposto materialistas/ niilistas. O estudo baseado na investigação sensorial e reprodutível (empírica) é útil apenas para as descobertas voltadas à produção e preservação dos corpos, ou seja, da matéria, como explicado por Platão nesta e em outras obras. Isto porquê, tal tipo de estudo não é alicerçado na ética, pois ética não é percebida sensorialmente. Assim, os estudos empíricos e a pré suposição materialista, têm sua importância, mas deixam em 2º plano (quando não ignora) os valores universais e sua relação com a psiquê humana. Para se ter noção do estrago desta postura na construção de conhecimento, ela possibilitou o racismo científico desde a transição da Renascença ao Iluminismo: A escravização e os maus tratos dos povos negros e indígenas recebeu apoio da ciência quando esta afirmou que estas "raças" eram inferiores aos "brancos", baseadas simplesmente em questões biológicas. Com o racismo científico ainda em voga, surgiu o darwinismo social entre o fim do séc 19 e início do séc 20, fomentando mais desigualdade social ao afirmar que as pessoas empobrecidas eram menos adaptadas ao meio social, ignorando questões sociais e éticas em prol de um biologismo. Durante toda primeira metade do séc 20 então propagou-se uma psiquiatria desumanizada alicerçada na ideia niilista de que nada existe além do corpo, bem como, com base nas mesmas idéias, foram feitas as armas químicas e de destruição em massa das duas guerras mundiais (vide os relatos de Viktor Frankl, que sobreviveu aos campos de concentração nazistas)*. Enfim, não se coloca "fins sociais" na construção de conhecimento nem na convivência em sociedade/ na política, sem se pautar pelos valores universais/ éticos - por isto por mais particularidades que as propostas de estado feitas por Platão tenham, elas são voltadas ao coletivo - a questão social é filosófica e ética porque é uma questão de valores universais - ignorar isto é permitir o domínio de interesses privados e de fins lucrativos, sem serventia pública e sem ética. Por esses motivos, a postura ética de um cientista frente a questão da psiquê, no mínimo, deveria ser de dúvida, ou seja, no mínimo deixar a questão em aberto.

Sócrates — Não é a história de Alcino que te vou contar, mas a de um homem valoroso: Er, filho de Armênio, originário de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto. Levaram-no para casa, a fim de o enterrarem, mas, ao 12º dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou. Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha visto no além. Quando, disse ele, a sua alma deixara o corpo, pusera-se a caminhar com muitas outras, e juntos chegaram a um lugar divino onde se viam na terra duas aberturas situadas lado a lado, e no céu, ao alto, duas outras que lhes ficavam fronteiras. No meio estavam sentados juízes, que, tendo dado a sua sentença, ordenavam aos justos que se dirigissem à direita na estrada que subia até o céu, depois de terem posto à sua frente um letreiro contendo o seu julgamento; e aos maus que se dirigissem à esquerda na estrada descendente, levando, eles também, mas atrás, um letreiro em que estavam indicadas todas as suas ações. Como ele se aproximasse, por seu turno, os juizes disseram-lhe que devia ser para os homens o mensageiro do além e recomendaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que se passava naquele lugar.  Viu as almas que se iam, uma vez julgadas, pelas duas aberturas correspondentes do céu e da terra; pelas duas outras entravam almas que, de um lado, subiam das profundezas da terra, cobertas de sujeira e pó. Do outro, desciam, puras, do céu, e todas essas ai que chegavam sem cessar, pareciam ter feito uma longa viagem. Chegavam à planície com alegria e acampavam aí como num dia de festa. As que se conheciam desejavam-se as boas-vindas, e as que vinham do seio da terra informavam-se do que se passava no céu.

Cada grupo passava 7 dias na planície. Ao 8º, devia levantar o acampamento e pôr-se a caminho para chegar, 4 dias mais tarde, a um lugar de onde se via uma luz direita como uma coluna estendendo-se desde o alto, através de todo o céu e de toda a terra, muito semelhante ao arco-íris, mas ainda mais brilhante e mais pura. Chegaram Lá após um dia de marcha; e aí, no meio da luz, viram as extremidades dos vínculos do céu, porque essa luz é o laço do céu: como as armaduras que cingem os flancos das trirremes, mantêm o conjunto de tudo o que ele arrasta na sua evolução. A essas extremidades está suspenso o fuso da Necessidade, que faz girar todas as esferas; a haste e a agulha são de aço, e a roca (contrapeso), uma mistura de aço e outras matérias. É a seguinte a natureza da roca: quanto à forma, assemelha-se às deste mundo, mas, segundo o que dizia Er, deve-se representá-la como uma grande roca oca por dentro, à qual se ajusta outra roca semelhante, mas menor, do modo como se ajustam umas caixas às outras, e, igualmente, uma terceira,uma quarta e mais quatro. Com efeito, há ao todo 8 rocas inseridas umas nas outras, deixando ver no alto os seus bordos circulares e formando a superfície contínua de uma única rosa em torno da base, que passa pelo meio da 8ª. O bordo circular da 1ª roca, a que fica no exterior, é a mais larga,depois seguem esta ordem: na 2ª posição o da 6ª, na 3ª posição o da 4ª; na 4ª posição o da 8ª, na 5ª o da 7ª, na 6ª o da 5ª, na 7ª o da 3ª e na 8ª o da 2ª. O 1º círculo, o maior de todos, é o mais cintilante; o 7º brilha com o mais vivo esplendor; o 8º tinge-se da luz que vem do 7º; o 2º e 5º, que têm mais ou menos a mesma tonalidade, são mais amarelos que os anteriores; o 3º é o mais branco de todos; o 4º é avermelhado; e o 6º é o segundo mais alvo. Todo o fuso gira com um mesmo movimento circular, mas, no conjunto arrastado por este movimento, os sete círculos interiores realizam lentas revoluções de sentido contrário ao do todo. Destes círculos, o 8º é o mais rápido, depois seguem-se o 7º, o 6º e o 5º, que ocupam a mesma posição em velocidade; nesta mesma ordem, o 4º ocupava a 3ª posição nesta rotação inversa; o 3º, a 4ª posição, e o 2º, a 5ª. O próprio fuso gira sobre os joelhos da Necessidade. No alto de cada círculo está uma Sereia*, que gira com ele fazendo ouvir um único som, uma única nota; e estas oito notas compõem em conjunto uma única harmonia. Três outras mulheres, sentadas ao redor a intervalos iguais, cada uma num trono, as filhas da Necessidade, ou seja, as Moiras, vestidas de branco, com a cabeça coroada de grinaldas. Elas cantam acompanhando a harmonia das Sereias, e são três: Láquesis canta o passado, Cloto, o presente, e Atropo, o futuro. E Cloto toca de vez em quando com a mão direita no círculo exterior do fuso, para fazê-lo girar, enquanto Atropo, com a mão esquerda, faz girar os círculos interiores. Quanto a Láquesis, toca alternadamente no primeiro e nos outros, com uma e outra mão. 

*A tradução parece imprecisa: O termo em grego é Seirena, certamente referindo-se não às sereias ("mulheres peixe"), mas à Sirene. As sirenes foram descritas ao longo da história como psicopompos (guia de almas), como mulheres mitológicas com o canto sedutor ou como "mulheres ave".

Talvez a descrição dos fusos e dos círculos feita por Platão tenha relação com a teoria da “música das esferas” que perdurou até meados da Baixa Idade Média e do início da Renascença. Já a descrição das 3 moiras lembra um pouco as 3 nornas da mitologia nórdica que ficavam juntas a um poço sob Yggdrasil, a árvore da vida/ cósmica. Este poço das nornas, "deusas" ou "espíritos" do destino e do tempo, deu nome ao sábado nórdico: Lördag, que significa "dia do lago".

Assim, quando chegaram, tiveram de se apresentar imediatamente a Láquesis. Antes disso, um hierofante os pôs por ordem; depois, tirando dos joelhos de Láquesis destinos e modelos de vida, subiu a um estrado elevado e falou assim: 

“Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade (Ananke): Almas efêmeras, ides começar uma nova carreira e renascer para a condição mortal. Não é um gênio que vos escolherá, vós mesmos escolhereis o vosso gênio. Que o primeiro designado pela sorte seja o primeiro a escolher a vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor: cada um de vós, consoante a venera ou a desdenha, terá mais ou menos. A responsabilidade é daquele que escolhe. Deus não é responsável”. 

A estas palavras, lançou os destinos e cada um apanhou o que caíra perto dele, exceto Er, porque não lhe foi permitido. 

Cada um ficou então sabendo qual a posição que lhe tinha cabido por sorte. Depois, o hierofante estendeu diante deles modelos de vida em número muito superior ao das almas presentes. 

Havia de toda espécie: todas as vidas dos animais e todas as vidas humanas; viam-se tiranias, umas que duravam até a morte, outras, interrompidas a meio caminho, que acabavam na pobreza, no exílio e na mendicância. Havia também vidas de homens famosos, quer pelo seu aspecto físico, beleza, força ou aptidão para a luta, quer pela sua nobreza, e grandes qualidades dos seus antepassados. Havia também as obscuras em todos os aspectos, e o mesmo acontecia para as mulheres. Mas essas vidas não implicavam nenhum caráter determinado da alma, porque esta devia por lei mudar consoante a escolha feita. Todos os outros elementos da existência estavam misturados com a riqueza, a pobreza, a doença e a saúde, e também os meios-termos entre eles. Parece que é aqui, Glauco, que reside para o homem o maior perigo. Aqui está a razão por que cada um de nós, pondo de lado qualquer outro estudo, deve, sobretudo, preocupar-se em procurar e cultivar este, ver se está em condições de conhecer e descobrir o homem que lhe dará a capacidade e a ciência de distinguir as boas e as más condições e, na medida do possível, escolher sempre as melhores. Tendo em mente qual é o efeito dos elementos de que acabamos de falar, tomados juntos e depois em separado, sobre a virtude de uma vida, conhecerá o bem e o mal que proporciona uma certa beleza, unida à pobreza ou à riqueza e acompanhada desta ou daquela disposição da alma; quais são as conseqüências de um nascimento ilustre ou obscuro, de uma condição privada ou pública, da força ou da fraqueza, da facilidade ou da dificuldade em aprender e de todas as qualidades semelhantes da alma, naturais ou adquiridas, quando se misturam umas com as outras, para que, confrontando todas estas considerações e não perdendo de vista a natureza da alma, possa escolher entre uma vida má e uma vida boa, chamando má à que possa tomar a alma mais injusta e boa à que a torne mais justa, sem atender ao resto. Na verdade, vimos que, durante esta vida e depois da morte, é a melhor escolha que se pode fazer. E é preciso defender esta opinião com absoluta inflexibilidade ao descer ao Hades, para que também lá não se deixe deslumbrar pelas riquezas e pelos miseráveis objetos desta natureza; não se exponha, lançando-se sobre tiranias ou condições afins, causando, assim, males sem número e sem remédio e sofrendo, por conseguinte, outros ainda maiores; para saber, pelo contrário, escolher sempre uma condição intermediária e evitar os excessos nos dois sentidos, nesta vida, tanto quanto possível e em toda a vida futura, porque é a isto que se liga a maior felicidade humana. 

Pois bem, segundo o relato do mensageiro do além, o Hierofante dissera, ao lançar os destinos: “Mesmo para o último a chegar, se fizer uma escolha sensata e perseverar com ardor na existência escolhida, há uma condição agradável, e não má. Que o primeiro a escolher não se mostre negligente e que o último não perca a coragem”. 

(...) Depois que todas as almas escolheram a sua vida, avançaram para Láquesis pela ordem que a sorte lhes fixara. Esta deu a cada uma o gênio que tinha preferido, para lhe servir de guardiã durante a existência e realizar o seu destino. O gênio conduzia-a primeiramente a Cloto e, fazendo-a passar por baixo da mão desta e sob o turbilhão do fuso em movimento, ratificava o destino que ela havia escolhido. Depois de ter tocado o fuso, levava-a para a trama de Átropo, para tomar irrevogável o que tinha sido fiado por Cloto; então, sem se voltar, a alma passava por baixo do trono da Necessidade; e, quando todas chegaram ao outro lado, dirigiram-se para a planície do Lete, passando por um calor terrível que queimava e sufocava, pois esta planície está despida de árvores e de tudo o que nasce da terra. Ao anoitecer, acamparam nas margens do rio Ameles, cuja água nenhum vaso pode conter. Cada alma é obrigada a beber uma certa quantidade dessa água, mas as que não usam de prudência bebem mais do que deviam. Ao beberem, perdem a memória de tudo.  

Mais uma curiosidade: no candomblé, religião afro-brasileira mais próxima da cultura Yoruba da África ocidental, o conto da encarnação da alma tem algumas semelhanças com o mito de Er registrado por Platão, como o ato da alma de se apresentar diante entidades e o processo de esquecimento das memórias de outras vidas.

Então, quando todas adormeceram e a noite chegou à metade, um trovão se fez ouvir, acompanhado de um tremor de terra, e as almas, cada uma por uma via diferente, lançadas de repente nos espaços superiores para o lugar do seu nascimento, faiscaram como estrelas. Quanto a ele, dizia Er, tinham-no impedido de beber a água; contudo, ele não sabia por onde nem como a sua alma se juntara ao corpo: abrindo de repente os olhos, ao alvorecer, vira-se estendido na pira.

E foi assim, Glauco, que o mito foi salvo do esquecimento e não se perdeu, e pode salvar-nos, se lhe prestarmos fé; então atravessaremos com facilidade o Lete e não mancharemos a nossa alma. Portanto, se acreditas em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males, assim como todos os bens, nos manteremos sempre na estrada ascendente e, de qualquer maneira, praticaremos a justiça e a sabedoria. Assim estaremos de acordo conosco e com os deuses, enquanto estivermos neste mundo e quando tivermos conseguido os prêmios da justiça, como os vencedores que se dirigem à assembléia para receberem os seus presentes. E seremos felizes neste mundo e ao longo da viagem de mil anos que acabamos de relatar.

Observações sobre Politéia ("A República"); Livro 9

Platão começa o livro 9 "da República" abordando os desejos e prazeres, especialmente os desnecessários. [571] O autor mostra seu mestre Sócrates, explicando que alguns destes podem ser controlados pelas leis e por desejos melhores, porém outros desejos surgem particularmente à noite. Para combater estes últimos que induzem o ser humano à insensatez, ao impudor e aos sonhos anômalos, o filósofo sugere que antes de dormir as pessoas devem alimentar-se dos pensamentos belos/ bons (kalon), meditando interiormente, afastando o desejo sem ser por carência nem por excesso. Depois fazer igual com o elemento "irascível" (thymous) da alma, para por em movimento a terceira "parte" da alma, a da reflexão, que atinge a verdade. 

Curioso como a teoria tripartite da alma (psiquê) proposta por Platão tem semelhanças com a "alma asteca". Embora o filósofo grego utilize a palavra psiquê para designar os conceitos tanto de alma como de mente, tratando alma como sinônimo de mente, os tradutores das obras de Platão são quase unânimes ao traduzirem a palavra grega como alma. Isto deve ter ocorrido porque Platão considerava que a psiquê sobrevivia à morte do corpo, deixando este na morte do mesmo, e possivelmente deixando-o até mesmo durante o sono.

Resumidamente os astecas também dividiam a alma em 3 partes, uma rudimentar e mais nociva, uma relacionada ao coração e às emoções e uma vinculada à cabeça, ao destino e ao divino. A quem interessar segue um link com conteúdo sobre o assunto: https://www.mexicolore.co.uk/aztecs/aztec-life/notes-on-the-three-spirits-souls-animistic-forces   

Durante o diálogo apresentado no livro 9 da obra A República, Sócrates indica que os governantes que se deixam levar pelo domínio de seus desejos insaciáveis, como os desejos por poder e honra sem filosofia/ sem ética (típicos do timocrata), pelo desejo por riquezas e prazeres sedutores (típicos dos oligarcas) e por uma ausência de regras (típica da democracia e dos democratas), acabariam se tornando tiranos. O tirano entregue ao descontrole de sua própria psiquê, acabaria experimentando prazeres como banquetes e orgias e nunca ficaria plenamente satisfeito. Assim, em sua insatisfação o tirano cairia em acessos de fúria e se viraria até mesmo contra parentes próximos, buscando sem pudor algum, recursos e aliados que servissem seus interesses particulares. Por esta razão, Sócrates diz que o desejo (eros) é um tirano da alma (psiquê), o que explica a necessidade de controlá-lo e alinhá-lo com o thymous (indignação, emoção, sentimento) voltado à sabedoria que é alvo da "parte superior da psiquê"; A busca pela episteme (conhecimento, ciência) que tem por finalidade as ideias mais imutáveis e unas (universais), como a justiça, a moderação, a coragem e o bem/ belo (kalos).

[575] Sócrates — Ora, se num Estado os homens deste gênero (tirânico) são em pequeno número e o resto do povo é sensato, eles partem para ir servir de soldados a um tirano qualquer ou se alistarem como mercenários, se houver guerra em qualquer parte. Mas, se a paz e a tranqüilidade reinam por todo lado, ficam na cidade e cometem aí um grande número de pequenos delitos.
Adimanto — E que delitos seriam esses?
Sócrates — Por exemplo, furtam, abrem fendas nas paredes, cortam as bolsas, roubam os transeuntes, capturam e traficam escravos e por vezes, quando sabem falar, são delatores, falsas testemunhas e prevaricadores.
Adimanto — Esses só serão pequenos delitos se esses homens forem em pequeno número!
Sócrates — Sim, pois que as pequenas coisas só são pequenas em comparação com as grandes, e todos estes delitos, no que tange à sua influência sobre a miséria e a infelicidade da cidade, nem sequer se aproximam, como se diz, da tirania. Com efeito, quando tais homens e os que os seguem são numerosos num Estado e tomam consciência do seu número, são eles que, ajudados pela estupidez do povo, engendram o tirano na pessoa daquele que tem na sua alma o tirano maior e mais completo.
Adimanto — E natural, porque será o mais tirânico. 

Aqui o filósofo indica como são os apoiadores de um tirano e possivelmente mostra uma relação recíproca de tirania; um tipo de círculo vicioso na sociedade. Faz sentido já que na história da humanidade muitos líderes antiéticos que apoiaram a propagação de miséria enriquecendo minorias ou que incitaram perseguições irracionais e guerras, foram apoiados por grande parte do povo.

Sócrates — E então pode ocorrer que a cidade se submeta de boa vontade ao tirano; mas, se resistir, assim como outrora maltratava o pai e a mãe, ele castigará a sua pátria, se tiver poder para isso, e introduzirá nela novos companheiros e, entregando-lhes aquela que outrora lhe foi querida, a sua mátria, como dizem os cretenses, irá reduzi-la à escravidão. E a esse ponto que levará a paixão do tirano.

Interessante como Platão indica que os cretenses usavam o termo "mátria" ao invés de pátria. Isto parece ter relação com as artes encontradas na região (de Creta), referentes à antiga civilização minóica, que retratavam mais as mulheres do que os homens.

Sócrates (e Platão) conclui que o tirano não só tem as piores características de um "timocrata" (a priorização das honrarias, da vitória etc), mas também as dos oligarcas que priorizavam a propriedade privada, o dinheiro, o luxo e os prazeres sensoriais intensos e/ou desnecessários. Assim, o filósofo e os demais interlocutores, classificam os sistemas de governo do melhor ao pior: Em 1º lugar estaria o governo dos filósofos (seja chamado de realeza, aristocracia ou outro nome), em 2º estaria a timocracia, em 3º a oligarquia, em 4º a democracia e em último, a tirania. Platão admite que há sistemas intermediários entre estes, mas apresenta o assunto desta maneira resumida e, claro, com as limitações de sua época e local: A democracia ateniense do século 4 aC era bastante imperfeita (elitista para os padrões deste século 21) e não admitia a participação de mulheres, de pessoas empobrecidas etc... O autor ainda modifica um pouco desta sua interpretação política na obra O Político, onde ele classifica os sistemas de governo na seguinte sequência: 1º governo dos filósofos; 2º monarquia com leis, 3º "populacho" (democracia livre de leis), 4º aristocracia (uma oligarquia com leis), 5º oligarquia, 6º democracia com leis (nunca agradaria a diversidade das massas) e em 7º e último lugar a monarquia sem leis (a tirania). Estas leis ditas na obra O Político, não são leis arbitrárias e sim leis baseadas na ética, na universalidade numa tentativa de um sistema uno que serve ao estado/ ao coletivo. 

Neste ponto do diálogo [577 b-e], Sócrates recorda a semelhança entre a cidade/ estado e o indivíduo: a tirania não seria só o pior sistema de governo, como o também tirano seria o pior tipo de indivíduo. Isto porque os indivíduos tomados pelos desejos insaciáveis por bens materiais, por prazeres sensoriais e por poder (etc) são os mais infelizes dos seres humanos. Indivíduos tirânicos (e suas respectivas psiquês) são escravos de seus desejos particulares, e quando chegam ao poder de uma cidade, estado ou de qualquer outra sociedade, para satisfazer suas ambições insaciáveis, escravizam a maioria da população. Continuando sua comparação do indivíduo com o estado/ o coletivo, [580] Sócrates diz que ambos podem ser classificados em 3 partes: O estado composto pelas 3 classes reuniriam os respectivos 3 tipos de indivíduos/ almas (psiquês) em cada uma delas:

A classe dos artesãos e mercadores seria repleta de indivíduos dominados pela parte inferior da psiquê e seus desejos, geralmente numerosos, por lucro, acúmulo de dinheiro, propriedades privadas e/ ou por prazeres (hedon) mais rudimentares como os de banquetes e os "afrodisíacos" (sensuais, sexuais etc); 

A classe dos guardiões e guerreiros teriam mais indivíduos com suas psiquês direcionadas pelo elemento intermediário "irascível"/ emocional (thymous) que precisa ser alinhado à parte superior da psiquê, para que não se tornem como os indivíduos típicos da oligarquia, da tirania etc; 

A classe dos filósofos seria aquela que controla seus desejos, voltando a parte (elemento) intermediária da psiquê para a parte superior que é amiga da sabedoria e do estudo/ aprendizado das virtudes/ ideias (eidos) de justiça, moderação, coragem e do Bem/ belo (kalos, valor uno, universal);

[581...] Sócrates — Por isso é que dizíamos que há três classes principais de homens: o filósofo, o filónikon (amigo da vitória, ambicioso ou briguento) e o filokérdes (amigo do lucro, interesseiro). 

Curiosidade: Até este ponto da obra "A República", fica evidente que Platão dividiu a sociedade humana em 3 classes: Filósofos, os ideias para governarem e legislarem - Aqueles que buscam a verdade, o conhecimento que leva ao Bem; Guerreiros, os corajosos ou indignados ideais para formarem o exército/ os guardiões da cidade/ estado - Que preferem a honra da guarda e do combate; Artesãos e mercadores - Trabalhadores que preferem a diversidade de bens materiais. Tal classificação do ser humano na sociedade/ na civilização aparece em outras culturas como em teorias religiosas/ mitológicas/ espirituais. Na mitologia dos povos do Cáucaso (osseta, vainakh, georgiana...), por exemplo, os semi deuses ou "primeiros humanos filhos dos deuses" foram divididos em 3 clãs (getas): 

Alai: Os sábios, os espirituais/ religiosos, talvez comparáveis com os líderes, os filósofos;

Aexserta: Os bravos, comparáveis com a classe dos guerreiros/ guardas, (filónikon);

Boretai: Os ricos, comparáveis com os mercadores (filokérdes) e possivelmente também com artesãos;

Existem outras teorias com algumas semelhanças à estas, como no hinduísmo, mas não as detalharei aqui. 

[582-583] Sócrates — Examina o caso, amigo Glauco, do seguinte modo: quais são as qualidades requeridas para julgar bem? Não são a experiência, a sabedoria e o raciocínio? Existem critérios melhores do que estes? 

Glauco — Não seria possível. 

Sócrates — Então repara. Qual destes três homens tem mais experiência de todos os prazeres que acabamos de referir? 

Neste trecho da obra, o autor começa a formular uma escala de prazer que vai do mais desnecessário, o sensorial intenso/ grosseiro (tipicamente almejado pelo interesseiro), até o prazer cognoscível / intelectual/ virtuoso/ ético/ imutável/ uno/ universal, que é mais necessário (finalidade dos filósofos). Quem tem experiência nesses "prazeres" relacionados à sabedoria, à justiça e às demais virtudes que fazem bem a todos devido ao fato de serem universais, tem mais capacidade de julgar corretamente.

Glauco diz que mesmo que o interesseiro (filokérdes: amigo do lucro/ filokhrimaton: amigo do dinheiro) se pusesse a estudar a natureza das essências, ele não veria necessidade de sentir todo o prazer e experiência desta benesse. Além disso, tal interesseiro não levaria a coisa a sério, diferente do filósofo que é educado desde criança nos prazeres da filosofia (e seus valores universais/ virtudes). Já o indivíduo que cresceu ambicioso (filónikon) também só é favorecido pela honra quando atinge seus objetivos reconhecidos pela multidão (sejam títulos, recompensas de cargos, posições de poder etc) e não entende a contemplação do Ser. É válido lembrar que o Ser geralmente é traduzido da palavra grega "ontos" e foi entendido por Platão como algo imutável, que não está sujeito à geração, ou seja, não sofre transformações típicas da vida e da morte como de processos biológicos. O Ser sendo imutável, está vinculado a uma ideia (eidos) que faz Bem à todos e é bela para todos (kalos), portanto não é uma mera ideia no sentido de opinião ou imaginação; é una (universal).  

Seguindo o diálogo, os interlocutores discutem como o cessar de prazeres pode causar sofrimento e o cessar da dor pode causar prazer, porém analisam se não há experiências que não causam tais consequências. Sócrates toma os prazeres do olfato como exemplo, dizendo que estes não são precedidos por sofrimento algum, e por mais intensos que sejam os cheiros prazerosos captados, quando cessam eles deixam a psiquê imperturbável (sem sofrimento). A partir daí Sócrates e Glauco concluem que a dor/ o sofrimento são opostos do prazer, mas que há um estado intermediário da psiquê que não está necessariamente sofrendo ou deliciando-se: 

Sócrates — Tu não deves então te espantar que os homens que não têm a experiência da verdade tenham uma opinião falsa de muitos objetos e que, no que concerne ao prazer, à dor e ao seu intermédio, se achem dispostos de tal maneira que, quando passam à dor, a sensação que experimentam é exata, porque sofrem de verdade, ao passo que, quando vão da dor ao estado intermédio (indolor, mas sem prazer) e acreditam firmemente que atingiram a plenitude do prazer, enganam-se, porque, à semelhança das pessoas que oporiam o cinzento ao preto, por não conhecerem o branco, opõem a ausência de dor à dor, por não conhecerem o prazer. 

Assim, Sócrates indica que existe a dificuldade em convencer uma pessoa (que passou do estado de ignorância ao estado da opinião) a aprender mais. A pessoa que adquiriu um conhecimento parcial ou insuficiente e está satisfeita (ou orgulhosa) com isso, pode opinar sobre algo que não sabe (a opinião falsa), neste caso, ela pode estar acima da ignorância, mas está muito abaixo da ciência/ do saber. 

[585] Sócrates — Pensa agora da seguinte maneira: a fome, a sede e as outras necessidades semelhantes não são espécies de vazios no estado do corpo? 

Glauco — Sem dúvida. 

Sócrates — E a ignorância e o contra-senso não são um vazio no estado da psiquê? 

Glauco — São. 

Sócrates — Mas é possível preencher estes vazios tomando alimento ou adquirindo inteligência? 

Glauco — É claro. 

Sócrates — Assim, a plenitude mais verdadeira provém do que tem mais ou do que tem menos realidade? 

Glauco — É evidente que do que tem mais realidade. 

Sócrates — Então, a teu ver, destes dois gêneros de coisas, qual participa mais da existência pura: o que inclui, por exemplo, o pão, a bebida, a carne e a alimentação em geral ou o da opinião verdadeira, da ciência, da inteligência e, numa palavra, de todas as virtudes? Pensa do seguinte modo: o que se liga ao imutável, ao imortal e à verdade, que é de natureza semelhante e se produz num indivíduo semelhante, parece ter mais realidade do que o que se liga ao mutável e ao mortal, que é ele próprio de natureza semelhante e se produz num indivíduo semelhante? 

Glauco — O que se liga ao imutável tem muito mais realidade, sem sombra de dúvida. 

Os alimentos e os corpos que precisam dos alimentos podem ser decompostos, ou seja, podem ser feridos, portanto divididos, podem ser mortos e apodrecidos. Tudo isto faz parte dos organismos perceptíveis por nosso sistema sensorial, sejam eles sólidos, líquidos etc. A psiquê, seja mente, ou alma, é capaz de alcançar ideias universais e não pode passar pelos processos de decomposição típicos dos corpos, sendo por estes motivos, mais verdadeira que a matéria perceptível sensorialmente (Platão  segue esta mesma lógica em outros diálogos/ textos onde indica que a psiquê é imortal). Esta conclusão de Platão pode ser considerada polêmica ou absurda para cientistas que têm uma visão materialista da realidade e uma pré suposição deste tipo. Tal visão de mundo e pressuposto materialistas são reducionistas por negarem a possibilidade da existência de uma mente abstrata ou da alma, ainda que a discussão filosófica sobre este tema revivido por Descartes (1596-1650) não fôra concluída até este início de século 21. A pressuposição e visão materialistas típicas do iluminismo (movimento antropocêntrico) dos séculos 18 e 19, sobrevivem no meio científico ainda hoje. Porém é válido lembrar que teorias do século 20, como as da relatividade, conforme explicadas por Arthur Eddington (1882-1944), não são materialistas/ positivistas e têm abertura para cosmovisões mais amplas como a de Platão. Assim como Eddington não negou a realidade sensorial, pois estudou astrofísica e testou a teoria de Einstein, Platão também não a nega pois se importou com tal realidade ao fazer suas propostas políticas. Porém o cognoscível e a psiquê para o filósofo grego, são mais importantes e mais reais do que o sensorial, uma vez que estão por trás da intencionalidade (das ações, decisões etc) e sobrevivem à morte do corpo.

[586] Sócrates — Assim, os indivíduos que não têm a experiência da sabedoria e da virtude, que estão sempre nas festas e nos prazeres afins, são, ao que me parece, transportados para a região baixa, depois de novo para a média, e erram assim durante toda a vida. Não sobem mais alto; nunca viram as verdadeiras alturas, nunca para lá foram transportados, nunca foram realmente cheios do Ser e não experimentaram prazer seguro e puro. À semelhança dos animais, de olhos sempre voltados para baixo, de cabeça inclinada para a terra e para a mesa, pastam na pastagem gorda e acasalam-se; e, para satisfazerem ainda mais seus apetites, escoicinham, batem-se com seus chifres e matam-se uns aos outros no furor do seu apetite insaciável, porque não encheram de coisas reais a parte real e estanque de si mesmos.

(...) Sócrates — Mas então não ousaremos afirmar que os desejos relativos ao interesse e à ambição, quando seguem a episteme e a razão e procuram com elas os prazeres que a sabedoria lhes indica, alcançam os prazeres mais verdadeiros que lhes é possível experimentar e os prazeres que lhes são próprios, porque a verdade os dirige, se é verdade que o que há de melhor para cada coisa é também o que lhe é mais próprio? 

Glauco — Mas é exatamente assim. 

Sócrates— Então, quando toda a alma segue docilmente o elemento filosófico e não se produz nela nenhuma revolta, cada uma das suas partes mantém-se nos limites das suas funções, pratica a justiça e, também, recolhe os prazeres que lhe são próprios, os melhores e os mais verdadeiros que lhe é possível gozar. 

Desta forma Sócrates define como o prazer mais perfeito, o prazer em viver as finalidades da filosofia que é a moderação, a coragem, a justiça, o Bem, imutável e uno, o Ser... Em comparação aos prazeres do sábio/ do verdadeiro filósofo, os prazeres das outras duas categorias de psiquê, são menos verdadeiros e menos puros. Estes prazeres impuros então, típicos dos ambiciosos (filonikon, os amantes da vitória, da rivalidade/ da briga) e dos interesseiros (filokerdes e filokhrimaton, os amantes do proveito/ lucro e do dinheiro) são respectivamente mais falsos que os do verdadeiro filósofo. Tendo estes prazeres perfeitos típicos da filosofia, como referência, Sócrates classifica os demais prazeres de acordo com os tipos de governo e de indivíduos que governam; Assim, em 2º lugar após o prazeres já citados da filosofia, viria o prazer do timocrata que começa a buscar as honrarias por se perder dos objetivos filosóficos que são éticos (justiça, o bem etc); Depois viria o prazer típico dos oligarcas e dos democratas, que, mais corrompidos pelos interesses particulares e pelo descontrole, experimentam mais os prazeres vorazes e afrodisíacos. Por fim, o pior e menos saciável seria o prazer dos tiranos que se entrega a todos desejos mais afastados do bem e da justiça e às violências das 3 classes anteriroes. 

Platão faz mais observações sobre quais prazeres são bons e quais são ruins em outras obras além da "República", como Filebo e Hípias Maior. Se juntarmos suas observações/ argumentos sobre os prazeres citados nestas obras, é possível formar um panorama quase hierarquizado sobre este assunto.

[589-592] O filósofo conclui a partir do diálogo, que a honestidade submete nossa psiquê ao ser humano, ou mais precisamente ao divino, enquanto a desonestidade nos submete às nossas características mais animalescas/ bestiais. 

Um relato

Decidi escrever este texto talvez como um desabafo de algumas coisas que vim sentindo nestes últimos anos; 

Até 2017 eu fui um cara tentando me adaptar à sociedade: arrumar um emprego, me manter nele para pagar minhas contas, e quem sabe, arrumar uma namorada. Sobre emprego e contas eu ainda tento acertar isto, porém sobre relacionamentos a história é diferente. Depois de um namoro fracassado, eu passei por uma fase bastante desiludida por uns 2 anos, mas eu citei as minhas contradições deste período noutro texto: resumidamente elas me impactaram mudando meu sentido de vida, fazendo-me priorizar outras coisas diferentes de um possível relacionamento. A questão é que após esses 2 anos (em 2019), eu comecei a ter uma série de experiências horríveis, sendo a maioria delas psíquicas em algum nível, pois me afetavam a consciência, os pensamentos e sentimentos de maneira visceral. Nada do que eu consiga explicar cientificamente e nada que a ciência consiga explicar: consegui ir lidando com tais experiências buscando desenvolver o que se chama por aí, de espiritualidade; 

Fui em terreiros de umbanda e centro espírita. Depois passei a ler sobre espiritualidade e sobre filosofia e tentei praticar ioga (hinduísmo, não esses exercícios de ioga que se vê por toda parte)... Tentei também praticar o que Jesus ensinou: o bem externamente, através das ações, e internamente, em pensamento e intenção. Obtive alguma melhora, mas o esforço é contínuo... e bem solitário. 

Quão solitário? 

Depende do ponto de vista. Se eu considerasse que só existisse os seres vivos (biológicos) da Terra, seria uma das mais absurdas solidões possíveis; Não consigo compartilhar minhas experiências nem dificuldades seja com ateus ou com religiosos, pois a maioria me consideraria (certamente considera) uma anomalia, um louco ou um mentiroso. Consigo falar uma coisa ou outra com espíritas, mas ainda assim com uma série de dificuldades. Isto porque todo ser humano está repleto de opiniões e preferências que tornam o diálogo muito difícil e eu estou incluso nisto. Gostaria de não me perder tanto em opiniões, mas é difícil. Talvez praticar mais meditações me ajude, embora o local que eu frequentava para isso se mostrou inóspito por razões que... não dá para compartilhar com a maioria das pessoas; 

Apesar de ser difícil falar sobre tais assuntos com as pessoas, decidi "escrever" este texto... Às vezes acordo com sentimentos ruins muito incômodos principalmente pelo fato de eu não saber se são meus. Porém esta sensação começou depois do processo de tentar desenvolver minha espiritualidade: Quando procurei ajuda na umbanda e no espiritismo, tais grupos foram os únicos que me ofereceram explicações menos ruins sobre o que se passava comigo entre 2019 e 2020: Se tratava da tal mediunidade. Isso me fazia alguém especial? Não. 

Mediunidade é simplesmente estar no meio da realidade "material" (enfim corpórea, tridimensional) e da espiritual. Todo ser humano é medium. A diferença é que uns percebem a realidade espiritual e outros não. Entre os que percebem, uns percebem vagamente, outros nitidamente, entre uma série de diferenças nas experiências de cada indivíduo... Não cabe a mim detalhar mais isso: Quem se interessar, que procure respostas na umbanda, no espiritismo ou em qualquer outro caminho espiritual, seja religioso ou não. 

 Eu digo que estes meios me ofereceram as melhores respostas, porque levam em consideração meus relatos. E meus relatos são feitos com base em minhas experiências, não nas de outras pessoas ou de outros grupos, sejam religiosos ou ateus. E é aí que a ciência falha miseravelmente em explicar experiências como as que eu tive: Ela parte de um pressuposto próprio, que ignora relatos individuais. Ignora o entendimento da pessoa que relata tal tipo de experiência, bem como também ignora sua cultura, sua religião, espiritualidade, cosmovisão etc. A visão de mundo mais aceita na ciência é a materialista/ niilista que expliquei e critiquei em outros textos. Esta visão patologiza pessoas como eu, e indica tratamento medicamentoso como se este resolvesse a situação. Para piorar, por cerca de 3 anos e meio eu mantive um relacionamento próximo com uma pessoa que passou por experiências (mediúnicas etc) similares às minhas. Essa pessoa tentou tratamento psicológico e principalmente psiquiátrico (medicamentoso) por anos, desde antes de me conhecer e não obteve melhoria significativa: As "visões" mediúnicas dela reduziram, porém o sofrimento psico emocional continuava frequente (praticamente diário) e intenso; Suas crises de ansiedade dificultavam as relações sociais e os diálogos, fazendo ela ficar tensa, preocupada e inquieta maior parte do tempo. 

Por estas razões tento o desenvolvimento espiritual, embora também tentei a psicoterapia sem grandes resultados: Esta última eu tive dificuldade em manter por que a psicoterapeuta não podia ou não se sentia adequada (devido a supostas regras da psicologia se entendi direito) para se aprofundar nas minhas questões espirituais e experiências mediúnicas. 

Mas eu citei este período de minha vida pelo seguinte motivo: Foi mais ou menos nesse ano de 2021 que meu sono passou do péssimo para o apenas ruim: Os fenômenos os quais a umbanda e/ ou o espiritismo classificavam como "obsessões", foram substituídos, pois passei a discutir quase todas as noites durante meses e não estive exatamente "acordado" durante estas discussões. Essa é mais uma experiência que poucos dão ouvidos, porque não se encaixa na ciência tradicional nem nas religiões - ela é aceita no esoterismo (hermético ou sincrético, não entendo muito deste assunto) e talvez com muitas ressalvas no espiritismo, na umbanda e outras religiões afro-brasileiras. Talvez. Com ressalvas.

Minhas noites de sono por cerca de um ano, ou um pouco mais que isso, parecem ter se tornado o que os esotéricos chamam de "viagem astral". Eram discussões psíquicas às quais as aparências nada importavam e acho que às vezes eu nem "via aparências" durante estas experiências. O que eu percebia nitidamente eram outras mentes sem corpos ou independentes de corpos. Raramente havia alguma concórdia entre mim e elas e eu lembro de pouquíssimos trechos das discussões: Algumas pareciam mentes tentando me convencer que Deus não existe e/ ou que espíritos não existem, enquanto outras claramente mostravam algum desejo sexual e tentavam me induzir a algum ato sexual. Era como se estas "mentes" das quais me lembro o conteúdo tentassem a todo custo pregar uma patética doutrina materialista para mim, mas era tarde demais para isso - minha mediunidade como chamam os espíritas e umbandistas estava muito aflorada, ou bem sensível. 

Eu devo ter anotado algumas destas experiências em blocos de papel que eu nem olho mais. Tentei olhar tais anotações poucas vezes e elas me causaram nítido mal estar psíquico/ emocional. Bem como os sonhos que anotei de meses antes de tais experiências. Alguns destes sonhos bem como umas poucas discussões que eu me lembrava, pareceram não ter conexão com a vida que vivo em vigília, ou seja, com minha "vida normal", material etc. Apesar da falta de conexão com "esta vida", elas eram tão reais quanto as outras experiências que eu me lembro mais claramente e também tão reais quanto tudo que eu faço e percebo em vigília. Note que não parecem tão reais: Elas são tão reais quanto. Esta é a descrição mais precisa que consigo dar. 

 Pois bem, foi depois destas discussões que meus sentimentos ao despertar ficaram bagunçados não constantemente, mas com certa frequência. Isso parece ocorrer porque eu já não tenho certeza quais são os meus sentimentos e quais são de outras "mentes" (espíritos na linguagem do espiritismo, umbanda etc). Mas faz sentido que meus sentimentos fiquem assim ao acordar: Pois também muitos dos sonhos que eu tenho são com pessoas regularmente preocupadas com questões terrenas. Sejam cheias de desejos ou tomadas por desânimo, irritações e decepções. 

Daí eu me pergunto: que benefício há em se pregar o materialismo como verdade absoluta em nossa sociedade? Eu entendo que existem muitos picaretas nas religiões e ainda existam charlatães no esoterismo e em centros de espiritismo, de umbanda etc. Porém não é espalhando a visão de mundo materialista que se combate esses indivíduos interesseiros e sim, denunciando-os caso a caso e expondo seus objetivos etc. 

Para quem estudou história da psicologia, da ciência e da filosofia, como eu, sabe que a "relação entre mente e corpo" é uma questão em aberto: Não foi resolvida, pois não se prova a inexistência de algo. Ninguém provou e certamente não provará a INEXISTÊNCIA da mente "abstrata" ou da alma/ do espírito. Podem sim realizar descobertas relacionadas a tais fenômenos e seus respectivos relatos, mas nenhuma construção de conhecimento deveria visar provar a inexistência de algo. Ninguém que fala "eu sei que não existe" pode ser levado a sério, pois uma pessoa que se pauta por frases como esta, não busca construir conhecimento. Sabemos somente o que existe e se uma pessoa teve alguma a experiência e outra não teve, a que não teve, não sabe de coisa alguma a respeito! Isto é lógica e construção de conhecimento dialética para se combater sofisma; Para se combater o uso antiético da comunicação! Isto é especificamente tratado no livro 6 da obra A República de Platão: o cerne da filosofia ocidental busca construir conhecimento não por métodos reducionistas como o empírico e sim no diálogo alicerçado na presunção da ignorância e buscando a ética como valor universal. Defender uma postura reducionista e materialista pode até parecer aceitável em determinados estudos especializados da medicina, da biologia, da física ou da química, mas não na psicologia e nem em estudos interdisciplinares e transdisciplinares; Também tratei disto nestes outros textos: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/11/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.html 

https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/11/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o_01035175189.html 

https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/12/filosofia-teoria-mente-corpo-e-o.html 

Inclusive, o mesmo fundador da filosofia ocidental fala muito da importância da ética, embora ele pouco usasse esse termo. Platão chega a indicar que não há conhecimento verdadeiro sem os valores tipicamente tratados pela ética: a justiça, a moderação, a coragem e o mais sublime - o bem/ belo. Isto porque estes valores são imutáveis de acordo com o autor: Eles independem das modificações da vida terrestre e seus ciclos. Eles são "unos", e isto significa que são universais afinal não são valores individuais; são bons para todos e obviamente bons não só fisicamente, mas principalmente psiquicamente e eticamente. 

Minha busca por desenvolvimento espiritual é essencialmente isto: ética. Às vezes sinto vontade de compartilhar experiências espirituais, às vezes sinto vontade de ajudar outros nesse assunto. Mas desenvolvimento espiritual em geral exige mudança de atitudes e de prioridades e eu não posso modificar os outros, a menos que eles queiram - aí dialogamos. Talvez por isso às vezes tenho esta dificuldade sentimental... Quanto a mim, sinto-me no dever de melhorar a mim mesmo, ainda que eu não saiba o quão bem sucedido serei nesta tarefa. 

Nos momentos de solidão então não adianta eu buscar outras pessoas, a menos que tais pessoas tenham objetivos similares aos meus. Mas como eu disse, meu caminho espiritual não segue religião alguma e isto faz dele muito diferente ou estranho para religiosos. Por um outro lado ele envolve escolhas que parecem muito minimalistas ou extremistas para ateus e pessoas com estilo de vida materialista (e não estou falando de um consumista desenfreado aqui e sim de qualquer pessoa mais ou menos materialista bem aceita na maior parte da sociedade). É por isso que entendo que devo buscar o Bem, o Ser ao qual entendo como Deus. E esse Deus não é individualista, porque é bom e sua bondade é universal: Una e coletiva. Assim ele é acessível a todos. Por acessível entendo mentalmente/ espiritualmente, pois não necessitamos de templos para alcançá-lo nem o encontraremos meramente na "matéria".

 

Observações sobre Politéia ("A República"); Livro 8

Esta é a continuação da síntese e observações sobre a obra "A República" de Platão; 

Após falar de um sistema de ensino que teria como base formar “novos cidadãos” íntegros onde os líderes (homens e mulheres filósofos) seriam educados desde cedo, começando com música e ginástica, apartados de sua cidade para evitar costumes locais, Sócrates pergunta à Glauco em qual ponto do diálogo eles se encontravam anteriormente. 

Glauco então diz: (...) Depois de teres esgotado o que diz respeito ao Estado, dizias quase o mesmo que agora, afirmando que achavas bom o Estado que acabavas de descrever e o homem que lhe era semelhante, e isso, ao que tudo indica, apesar de teres a capacidade de nos falar de um Estado e de um homem ainda mais belos. No entanto, tu acrescentaste que as outras formas de governo são falhas, uma vez que aquela é boa. Dessas outras formas, ao que me lembro, afirmaste haver quatro espécies dignas de atenção e das quais importava ver os defeitos, assim como os dos homens que lhes são semelhantes, com o fito de que, depois de tê-los analisado e reconhecido qual o melhor e qual o pior, estivéssemos aptos a julgar se o melhor é o mais feliz, e o pior, o mais infeliz, ou se não é assim. Então, como eu indaguei quais seriam as quatro formas de governo, Polemarco e Adimanto interromperam-nos, e aí iniciaste a discussão que nos conduziu até este ponto.
Sócrates: Lembras-te disso com muita clareza. 

(...) Glauco: Desejo saber quais são os quatro governos de que falavas. 

[544] Sócrates: É fácil satisfazer-te, pois que os governos a que me refiro são conhecidos. O primeiro e muito elogiado é o de Creta e da Lacedemônia; o segundo, que só se louva em segundo lugar, chama-se oligarquia. Trata-se de um governo repleto de vícios vários. Oposto a este vem, em seguida, a democracia. Por fim, vem a soberba tirania, contrária a todos os outros e que é a quarta e a última doença do Estado. Conheces acaso outro governo que se possa ordenar numa classe bem distinta? As monarquias hereditárias, os principados venais e governos que se lhes assemelham não são, em dada medida, senão formas intermediárias e encontram-se tanto entre os bárbaros como entre os gregos.
        Glauco — Realmente dizem que os há muitos e estranhos.
        Sócrates — Sabes que há tantas espécies de caráter como formas de governo? Ou pensas que essas formas provêm dos carvalhos e da rocha, e não dos costumes dos cidadãos, que arrastam todo o resto para o lado para que pendem?
        Glauco — Não podem originar-se senão daí.
        Sócrates — Portanto, se existem cinco espécies de cidades, o caráter da alma, nos particulares*, será, igualmente, em número de cinco. 

(*a palavra no texto de Platão é "idioton", que significava privado. Entende-se que ainda não era utilizada de forma pejorativa e que só com o passar dos anos, o termo passou a ser utilizado para indivíduo ignorante, sem estudo e/ ou que não participa da vida pública.)

Interessante notar que até aqui, o texto de Platão menciona um 1º tipo de governo que seria elogiado e aparentemente funcionou tanto em Creta como na Lacedemônia (a menos que ele estivesse dizendo que são 2 tipos de governos diferentes entre si, o que os tradutores parecem rejeitar). O 2º tipo de governo seria a oligarquia, onde Platão já identifica muitos problemas/ vícios. O 3º, a democracia, e o 4º, a tirania, seriam respectivamente piores.

Em seguida os tradutores do texto indicam que a aristocracia seria o governo ideal mencionado pelo autor, porém isto contradiz a obra "O Político", onde este tipo de governo não seria o ideal de Platão, e sim, uma mera oligarquia mais organizada/ com leis, e inferior ao "governo do(s) filósofo(s)".

Sócrates: Isto posto, deveremos revistar os caracteres inferiores: Em primeiro lugar, o governo que ama a vitória e a honra, baseado no exemplo da Lacedemônia; em segundo o oligárquico, e posteriormente o democrático e o tirânico? Depois de reconhecermos qual o mais injusto, oporemos este ao mais justo e poderemos aí terminar o nosso exame e ver como a pura justiça e a pura injustiça agem,  respectivamente, no que diz respeito à felicidade ou à infelicidade do indivíduo (...)

Neste trecho do diálogo, Sócrates cita somente o governo da Lacedemônia como o governo que ama a honra e a vitória (entende-se a "timocracia"), sem mencionar o de Creta. Isto poderia indicar que os governos de Creta e a Lacedemônia realmente eram diferentes entre si. Poderia ser o governo cretense, o modelo ideal dos filósofos?  

Sócrates então teoriza como seria a decadência da liderança de um estado/ nação/ sociedade ideal (o governo dos filósofos, seja ele o cretense ou, a "aristocracia" ao qual o autor voltaria atrás em "O Político"): Supostamente inspirado pela musa, o filósofo diz que tal governo não duraria para sempre, pois seria difícil manter a prática da educação ideal mencionada anteriormente no diálogo (pautada nas artes musicais, na matemática, na geometria, na astronomia/ astrologia e na filosofia/ ética). Com isso haveria uma deficiência na formação de filósofos e o governo acabaria decaindo em uma timocracia quando a classe de governantes se reproduzisse sem respeitar ciclos cósmicos e uma lógica matemática... Nestes momentos nasceriam uma prole que desejaria coisas das outras classes e se misturariam com estas buscando satisfação própria / individualista. 

Esta teoria certamente influenciou gerações, pois séculos depois de Platão escrever suas obras, até a renascença, estudiosos se basearam nos filósofos gregos ao citarem a relação da música com a astronomia e a teoria da música das esferas. Apesar de relacionar astronomia com espiritualidade (afinal a astrologia era unida à tal ciência) também vale lembrar que Platão combate o charlatanismo supersticioso nos livros 2 e 3 da "República".

A timocracia então ainda reteria algumas das boas características estruturais do governo ideal dos filósofos, como por exemplo a vida compartilhada das classes guardiãs/ guerreiras/ governantes. Porém carecendo da filosofia (do amor pelo valor universal do bem, da justiça ...) , começaria a priorizar a honra, os títulos e as campanhas bélicas. Assim, com a timocracia, se iniciariam as enfermidades do estado e falando dos conflitos surgidos deste processo, Sócrates começa uma observação crítica do surgimento dos tipos de governos seguintes e de seus indivíduos (idioton) dominantes: a oligarquia (aparentemente uma plutocracia) e os oligarcas:

[548] Sócrates — Tais homens serão cobiçosos de riquezas, com os cidadãos dos Estados oligárquicos; adorarão com paixão, às ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados, nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem muito bem lhes apetecer. 

Glauco — Eis aí uma grande verdade. 

Sócrates— Serão apegados às suas riquezas porque as veneram e não as possuem às claras, e, por outro lado, gastadores com os bens dos outros, para satisfazerem as suas paixões. Se Fartarão dos prazeres em segredo e, como crianças aos olhares do pai, fugirão aos olhares da lei, em conseqüência de uma educação não baseada na persuasão, mas na violência, em que se desprezou a verdadeira Musa, a da dialética e da filosofia, e se deu mais importância à ginástica do que à música. 

[... 550] Adimanto — Que espécie de governo entendes por oligarquia?
        Sócrates — O governo fundamentado no recenseamento da propriedade, em que os ricos mandam e onde o pobre não participa no poder.  

(...) Sócrates — A partir disso, a sua avidez pelo ganho progride rapidamente e quanto mais amor têm pela riqueza menos o têm pela virtude. Em verdade, o que há de diferente entre a riqueza e a virtude não é que, colocadas cada uma num prato de uma balança, se inclinam sempre uma direções contrárias?
        Adimanto — Com toda certeza.
        Sócrates — Concluo, então, que, quando a riqueza e os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são menos estimados. 

[552-557] Sócrates — A liberdade que a cada um é dada de dispor de todos os seus bens ou de adquirir os dos outros, e, depois,de tudo se desfazer, permanecer na cidade sem exercer nenhuma função, nem de comerciante, nem de artesão, nem de cavaleiro, nem de soldado, sem outro título a não ser o de pobre e indigente. 

 Adimanto — É verdade, a oligarquia é a primeira a ser atingida por esse mal. 

Sócrates — Não se pode evitar esta desordem nos governos deste gênero; do contrário, uns não seriam excessivamente ricos e outros não estariam na mais completa miséria. 

Sócrates— Pois bem. Não é por efeito da insaciável cobiça do indivíduo de possuir os bens e de tornar-se tão rico quanto possível que se passa da oligarquia à democracia? 

Adimanto — Como dizes? 

Sócrates — Os chefes, neste regime, devem a sua autoridade aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusar-se-ão, suponho, a fazer uma lei para reprimir a libertinagem dos jovens e a dissipação de seu patrimônio, visto que têm a intenção de comprá-lo ou de o conseguirem pela usura, para se tornarem ainda mais ricos e poderosos. 

[557-564] Aqui Sócrates sugere que a democracia surge de um sistema onde os ricos dominavam a sociedade (oligarquia). Os ricos que governam/ mandam na sociedade preferem alugar seu dinheiro (usura é um tipo de empréstimo com juros) para aqueles que gastam seu patrimônio ao invés de pensar em leis para evitar gastanças com luxo e prazeres individualistas. Assim os oligarcas prejudicam os indivíduos com temperança que buscam gastar o dinheiro com melhorias das cidades e favorecem a libertinagem e os gananciosos. Espalhando-se a usura, os mais ricos enriquecem cobrando seus crescentes juros, aumentando o número de endividados, e consequentemente, o número de mendigos. Ele segue dizendo que era necessário aplicar uma lei que fizesse aquele que “empresta” o dinheiro, corresse o risco de perder o dinheiro. Pois com a “usura” cobrava-se juros de quem tem menos dinheiro e era mantido um ciclo vicioso que empobrecia cada vez mais gente. Por fim, quando a oligarquia gerava a revolta dos mais pobres, surgia a democracia. 

Após expulsar a maioria dos ricos, deixando o nível de riquezas de toda variedade das pessoas que formam a sociedade em níveis mais parecidos entre si, ou seja, deixando em um nível menos desigual, a democracia seria o sistema com maior liberdade. Sendo o sistema com maior liberdade, possivelmente a democracia seria o momento ideal de propor uma constituição ou uma nova forma de governo.  

(...) Sócrates — O mesmo mal que, tendo se desenvolvido na oligarquia, causou a sua ruína, desenvolve-se aqui com mais amplitude e força, devido ao desregramento geral, e reduz a democracia à escravidão... 

O autor vê o desregramento, ou seja, a liberdade sem responsabilidade, como uma das características básicas da democracia e isso acabaria dando espaço aos atritos entre diferentes crenças, classes e raças. Com os governantes se tornando fracos, alguns governados que agissem como governantes seriam louvados e governantes que agissem como governados seriam defendidos. (similar ao discurso “menos estado, menos impostos”, esses “governados” venerados devem ser pessoas que adquiriram algum poder, possivelmente poder financeiro, mas podendo ser outro também, como o poder religioso, por exemplo). A partir do desregramento e dos atritos surgiria a necessidade de uma centralização do poder, ou seja, a tirania. 

[565-569] Sócrates é bastante crítico em relação à tirania e ao tirano. Ele se refere a um sistema centralizador (possivelmente absolutista) praticamente descrevendo o tirano como um imperador, pois é um sistema onde a liberdade é muito diminuída, ou mesmo perdida, e o tirano elimina vários de seus opositores enquanto pode.

Por fim, o filósofo demonstrou as características que se tornam evidentes em tiranias e "timocracias" típicas dos indivíduos belicosos como soldados, generais (etc) e as que se propagam em oligarquias e democracias dominadas pelos indivíduos mais negociantes e mercantis, como comerciantes e artesãos. Esses tipos de indivíduos (de particulares, idioton) se mostraram incapazes de governar a cidade/ estado com justiça de acordo com Platão. Talvez a partir de discussões políticas como as levantadas pelo autor, o termo idiotes e os correlacionados a este, passaram a ser gradualmente utilizados como ofensa. Vale lembrar que o filósofo mostrado por Platão, não é voltado à vida particular, pois tem uma episteme (conhecimento) voltado para o bem de sua alma (psiquê) e para o bem universal, voltado ao coletivo, à cidade/ estado.

Entende-se então que o primeiro grupo de indivíduos tende a buscar a glória, as honrarias, os títulos, geralmente através da exploração e da guerra. O segundo tende a buscar diversos tipos de riquezas materiais e luxo: dinheiro, prazeres sensoriais exagerados ou grosseiros, terras e diversos bens. Daí a insinuação de que uma liderança ideal deveria vir dos amantes do saber/ da sabedoria: Filo (amigo) Sofia (saber, sabedoria). Pois o saber citado por Sócrates não era indiferente ao todo, nem egoísta: Era a busca por algo maior, a busca pelo mais completo (uno, imutável) e, assim, pelo Bem como valor universal: Bom para toda a sociedade, toda civilização... E, quem sabe (porque não?), bom também para toda a vida "não humana", seja animal, vegetal ou mesmo espiritual. 


 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...