Segue a última parte das observações sobre Politéia, ou "A República" de Platão.
Livro 10: Sócrates começa falando da importância de não se aceitar a arte mimética na cidade/ estado ideal e inicia o diálogo sobre o que é o mimetismo; Ele explica que os artífices fabricam coisas partindo de uma ideia e esta ideia refere-se unicamente ao objeto a ser produzido, como por exemplo uma mesa ou uma cama. Isto porque nenhum artesão (kheirotekhnos) começa a projetar a partir de uma mera parte do objeto, pois se fosse assim ele teria que imaginar uma perna da cama por exemplo, então outra perna ou outra parte e ir adicionando partes em pensamento/ idealização, antes de produzir o objeto em si. O filósofo então diz que há um criador (demiurgo) que faz o trabalho de todos artesãos e é o criador de todas as coisas, o que faz Glauco ficar espantado e duvidando de Sócrates. O filósofo então fala para ele e os demais participantes da conversa imaginarem estar andando com um espelho em mãos e pergunta se tal item não produzirá imagem de tudo em seu caminho. Glauco diz que são apenas fenômenos (imagens, aparências) e chega no ponto que Sócrates quer.
O filósofo diz que Deus (Theos, possivelmente o demiurgo) cria todas as coisas, portanto os exemplos dados anteriormente, como a cama por exemplo, também é sua criação. Depois o artesão cria o tal objeto (a cama) e por último o pintor cria uma cama que é só uma aparência (imagem da cama). A pintura então é imperfeita por captar apenas uma parte da essência do objeto reproduzido - ela estaria 3 pontos distantes da verdade.
Embora tradutores como Pietro Nassetti interpretam isso como uma maneira de contar os extremos na cultura helênica da época de Platão, parece também ser uma aplicação filosófica da matemática, seja a geometria ou o cálculo, regularmente presente nas obras do filósofo: No livro anterior, Platão diz que, sequencialmente, cada sistema de governo é exponencialmente 3 vezes pior do que o governo dos filósofos, fazendo da tirania e do tirano 729 vezes mais infeliz(es) do que sua “(filo)sofocracia”; Em sua parábola sobre o governo de Kronus durante a mítica “Era de Ouro”, Platão faz insinuações matemáticas sobre os ciclos cósmicos, seus inícios e fins. Na parábola da caverna, Platão utiliza-se da comparação entre o bidimensional (sombras e imagens refletidas) e o tridimensional (os corpos iluminados pelo sol etc).
Sócrates diz que a pintura pode representar um objeto visto de frente, de lado ou de cima (bem como o desenho técnico onde mostra-se as 3 vistas de um objeto tentando remontar sua tridimensionalidade) e pergunta a Glauco se estas vistas são verdadeiramente diferentes entre si ou se são diferentes no que se refere só a aparência do objeto. Assim, ambos concluem que só há diferença na aparência, pois a pintura é uma arte que reproduz só a aparência dos objetos. Seguindo a mesma linha de classificação para as demais artes miméticas, o filósofo classifica a poesia e a tragédia da mesma maneira da pintura.
[598 d] Sócrates — Aí está! No meu modo de ver, o que se deve pensar de tudo isto é o seguinte: quando um indivíduo vem nos dizer que encontrou um homem conhecedor de todos os ofícios, que sabe tudo o que cada um sabe do seu ramo, e com mais exatidão do que qualquer outro, devemos assegurá-lo de que é um ingênuo e que, ao que parece, deparou com um charlatão e um imitador, que o iludiu a ponto de lhe parecer onisciente, porque ele mesmo não era capaz de distinguir a ciência,a ignorância e a imitação.
Apesar de estar explicando como a pintura pode simular várias coisas, nesta fala Sócrates parece fazer uma alusão crítica também aos mestres da retórica e da oratória, os sofistas.
A seguir Sócrates explica como Homero ao falar de vários temas em suas poesias, pouco sabia sobre os temas em questão. Isto está de acordo com a construção de conhecimento proposta por Platão onde para se conhecer um assunto deve-se estudá-lo e produzir algum resultado bom para outrem: a serventia das artes e profissões (tekhnes) explicada nos 2 primeiros livros da República e que está de acordo com a função de um professor de ontos (ontologia) apresentada no diálogo Fédon.Vale a pena lembrar que na Grécia clássica (a época de Platão) e antes disso, artes como a pintura e a poesia eram utilizadas para propagar os mitos, que, embora alguns pudessem ter um significado alegórico, muitos traziam exageros e conteúdo dúbio, como o autor explica entre os livros 2 e 3 da “República”.
Os interlocutores então concluem que um homem comedido resiste melhor do que outros homens (não comedidos), à dor da perda de alguém querido ou de algo importante. Eles também concordam que tal homem comedido não estaria imune ao desgosto, mas apenas sofreria menos do que outros e que resistiria e lutaria mais com a sua dor quando observado por outros do que quando só, pois nesta última situação poderia dizer coisas inaceitáveis ou vergonhosas. Assim, é necessária a razão como força para resistir as aflições, pois a razão é contrária da aflição, assim como o autocontrole é contrário ao descontrole sobre si mesmo. Parece estranho contrapor razão e aflição, mas cabe lembrar que nos livros anteriores Platão classificou o prazer verdadeiro como os prazeres da finalidade da filosofia (prazer pelo bem/ belo, pela justiça, as virtudes imutáveis etc) e estes prazeres mais puros são contrários da aflição, da inquietação e da dor. Assim como o autor também criticou a ignorância indicando que esta é o oposto do intelecto e da razão que busca a sabedoria.
[604 c-e] Sócrates — A lei diz que não há nada mais belo do que manter a calma, tanto quanto possível, na infelicidade, e não se afligir, porque não se pode distinguir com clareza o bem do mal que ela comporta; não se ganha nada em indignar-se, nenhuma das coisas humanas merece ser tomada muito a sério, e, numa ocasião dessas, agindo com destempero, seria impossível ver o que estaria vindo em nosso socorro, porque nosso desgosto nos impediria.
Glauco — Do que falas?
Sócrates — Reflito sobre o que nos aconteceu. Como num lançamento de dados, devemos, de acordo com o lote que nos toca, restabelecer os nossos assuntos pelos meios que a razão nos prescreve como sendo os melhores e, indo de encontro a qualquer coisa, não agir como as crianças, que, agarrando-se à parte magoada, perdem o tempo a gritar, mas, pelo contrário, lutar por habituar a nossa alma a ir o mais depressa possível tratar o ferimento, erguer o que está por terra e fazer calar os lamentos mediante a aplicação do remédio.
Glauco — Temos aí, com certeza, o melhor a fazer nos acidentes que nos ocorrem.
[605 b-c] Sócrates: ...Diremos o mesmo do poeta imitador que introduz um mau governo na psiquê de cada indivíduo, lisonjeando o que nela há de irracional, o que é incapaz de distinguir o maior do menor, que, pelo contrário, considera os mesmos objetos ora grandes, ora pequenos, que só produz fantasias e se encontra a uma distância enorme da verdade.
Glauco — Certamente.
Sócrates — E vê que ainda não acusamos a poesia do mais grave dos seus malefícios. O que mais devemos recear nela é, sem dúvida, a capacidade que tem de corromper, mesmo as pessoas mais honestas, com exceção de um pequeno número.
Já foi observado que Platão defendia o autocontrole, a calma e a razão e foi um crítico da poesia trágica e da imitação de personagens e de contos da Grécia antiga/ clássica. Neste trecho da obra ele cita como o caráter irascível (ultrajante) possibilita variada e numerosa imitação por parte dos artistas (poeta, ator etc). enquanto o calmo e sensato é sempre igual a si mesmo, portanto oferece menos variedade. Assim, as artes de imitação e seus respectivos artistas tendem ao caráter provocável e instável/ variável para se destacarem diante seus observadores/ diante da multidão. Tais artistas julgam acerca das mesmas coisas (de um determinado tema), ora como se fosse maiores, ora como se fossem menores, induzindo o espectador a um relativismo. Por fim, o autor relembra como estas artes (que muitas vezes abordavam os mitos gregos) geralmente ignoravam a verdade ao priorizarem emoções irracionais e destrutivas, histórias exageradas etc. Isto afasta consideravelmente a filosofia socrática, a academia de Platão e o platonismo da mitologia grega fundamentada pelos poetas Homero e Hesíodo. Ainda que com diferenças entre si, a filosofia fundada por Platão e Sócrates, assim como a pitagórica e o evemerismo, se afastam da vertente principal e popular da religião politeísta helênica (grega).
As críticas à pintura, à poesia e à tragédia (teatro), se levadas à risca, ou seja, se ignorarem como era a sociedade grega na época de Platão, podem parecer meros argumentos conservadores, ou mais precisamente, argumentos repressores. Temos exemplos na história de grupos de ideologia repressora que proibiram o teatro e não apresentaram nenhuma proposta para a difusão do conhecimento e da ética filosófica de Platão - foi o caso da ascensão do puritanismo na Inglaterra quando os protestantes (evangélicos) puritanos durante o século 17 predominaram no parlamento inglês e impuseram uma série de leis repressoras à sociedade. Inclusive uma das mais conhecidas caça às bruxas foi realizada por um puritano nesta mesma época, resultando na morte de dezenas de mulheres.
O filósofo termina suas críticas às poesias/ representações trágicas e cômicas, apontando como elas alimentam um gosto por tais emoções nas pessoas: A pessoa que pega gosto por assistir tragédias, entrega-se às emoções de tristeza e similares, acostumando-se a ver desgraças alheias. Por outro lado, aqueles que passam a adorar as imitações cômicas e o riso oriundo destas, passam a considerar aceitável dizer coisas patéticas ou vulgares das quais outrora teriam vergonha. Essas pessoas que priorizam tais emoções e eventos emocionantes (tragédia, tristeza trágica, comédia, riso cômico), bem como os indivíduos que tornam rotineiras as paixões (afrodisíon, de sedução, sensualidade), deixariam a razão e a moderação de lado.
[608-609] Sócrates — Tínhamos isto a ser dito, visto que voltamos a falar da poesia, para nos justificar de termos banido do nosso Estado uma arte desta natureza: a razão obrigava-nos a isso. E digamos-lhe também, para que ela não nos acuse de dureza e rudeza, que é antiga a dissidência entre a filosofia e a poesia. Testemunham-no os seguintes aspectos: “a cadela arisca que ladra para o dono”, “o homem que passa por grande nas palavras vãs dos loucos”, “o magote das cabeças magistrais”, “as pessoas que se atormentam a subtrair porque estão na miséria” e mil outros que marcam a sua velha oposição. Declaremos, porém, que, se a poesia imitativa puder provar-nos com boas razões que tem o seu lugar numa cidade bem policiada, vamos recebê-la com alegria, porquanto temos consciência do encanto que ela exerce sobre nós, mas seria ímpio trair o que se considera a verdade.
[...] Sócrates — Com efeito, é um grande combate, amigo Glauco, sim, maior do que se pensa, aquele em que se trata de nos tornarmos bons (christon) ou maus (kakon); Por isso, nem a honraria (glória), nem as riquezas (dinheiro), nem poder algum (a dignidade), nem mesmo a poesia, merecem que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das outras virtudes.
Glauco — Estou de pleno acordo, e julgo que não há ninguém que deixe de concordar também.
Sócrates — Mas ainda não falamos das recompensas maiores e dos prêmios reservados à virtude.
Glauco — Devem ser extraordinariamente grandes se são maiores ainda do que os que enumeramos!
Sócrates — Mas o quê, sendo tão grande, poderia ter lugar em pouco tempo (oligo chróno), visto que todo esse tempo que separa a infância da velhice é bem curto em comparação com a eternidade?
Glauco — Não é nada.
Sócrates — Ora! Achas que um ser imortal deva inquietar-se com um período tão curto como esse, e não com a eternidade?
Glauco — Claro que não. Mas aonde queres chegar com esse discurso?
Sócrates — Não observaste que a nossa alma (psiquê) é imortal?
Glauco — Por Zeus, não! E tu poderás prová-lo?
Sócrates — Sim, com certeza, mas creio até que tu poderias fazê-lo, pois não é difícil.
Glauco — Para mim é, mas gostaria de te ouvir demonstrar essa coisa fácil.
Sócrates — Reconheces que há um bem e um mal?
Glauco — Sim.
Sócrates — O que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que as conserva e desenvolve é o bem.
Glauco — De acordo.
Sócrates então pergunta à Glauco se os vícios como a ganância e a injustiça (etc) destroem a psiquê, fazendo com que ela murcha e morra ou com que saia do corpo, ao que o interlocutor responde que não. Em seguida, Sócrates indica como os corpos podem apodrecer e morrer e que as más qualidades alheias não destroem outros corpos. Elas poderiam se destruir na interação entre corpos no exemplo de um alimento podre, este causaria algum mal ao corpo que o consumisse, pois esse corpo que consome tem suas respectivas necessidades e vulnerabilidades. Sócrates seguindo a mesma linha de comparação, diz que os males do corpo também não podem destruir a psiquê/ alma sem que esta não tenha seu próprio mal; Se o corpo ficar febril ou doente, a psiquê/ alma não perece nem se torna injusta ou ímpia.
[610e - 612] Sócrates — Estás certo. Se a perversidade própria da alma, se o seu próprio mal, não a pode matar nem destruir, um mal destinado à destruição de uma coisa diferente levará muito tempo a destruir a alma ou qualquer outro objeto que não seja aquele a que está ligado.
Glauco — Sim, assim vejo.
Sócrates — Então, quando não existir apenas um único mal, próprio ou estranho, que possa destruir uma coisa, é evidente que essa coisa deve existir sempre. Assim, se existe sempre, é imortal.
Glauco — Certamente.
Eles concluem desta forma, que o corpo então é passível de apodrecer, decompor-se e morrer, mas a psiquê (seja alma, mente ou ambas) não. Mesmo os males da psiquê, sejam eles morais/ éticos ou quaisquer outros, não podem destruí-la. Pensamentos, sentimentos, identidade e visões da realidade, não podem ser destruídas, pois não podem ser decompostos. Neste início de século 21 isso certamente seria questionado (ou recusado) pelos cientistas materialistas. Na época de Platão talvez houvessem menos argumentos disponíveis para se combater a visão reducionista materialista predominante na ciência desde o empirismo de Locke e o positivismo de Comte, mas em um dos diálogos, Sócrates diz ao seu interlocutor, que não deve-se fazer como os indivíduos que acreditam somente no que se pode tocar (perceber sensorialmente): Não se deve confundir efeitos com causas; Esta confusão parece começar a se intensificar após estudos de anatomia do iluminismo como os feitos por René Descartes, onde são notadas reações instintivas do corpo humano em relação a fenômenos que lhe ferem e/ ou que lhe causam dor. Vários outros estudos que tratam de temas similares foram feitos depois, mas nunca provaram a inexistência da psiquê.
Sócrates diz então, através da comparação de um “Glauco marinho”, que a alma é irreconhecível do ponto de vista da vida terreno: sendo imortal, sofre e adquiriu muitas coisas de outras existências - “desgastes pelas ondas, acúmulo de algas, de conchas etc”. Para que a alma saia desta condição de sujeira e desgaste, é preciso olhar buscando a sabedoria, pois ela é aparentada do divino (como mostrada na obra Fedro) e imortal. Mesmo que a alma possua o “anel de Gyges” mencionado no livro 2 da República, ou seja, mesmo que a alma seja invisível e possa esconder pensamentos durante a vida terrestre, ela deve praticar a justiça e se pautar por esta.
[613-615] Sócrates relembra que no início do diálogo foi dito que a pessoa injusta pode se passar por justa e conseguir benefícios em vida; Porém, agora que concluíram que a justiça e as demais virtudes fazem bem para a alma, que é imortal e semelhante aos deuses, fica claro que as divindades não podem ser enganadas. Além disso, os semelhantes tendem a se unir, o que faria que os indivíduos justos, mesmo que sofram na Terra, estão destinados à recompensa de se unir aos deuses que são justos, moderados, corajosos e bons.
Concluindo sobre o destino da alma, Sócrates parece sugerir que há possíveis recompensas para os justos na vida terrestre, mas as melhores recompensas estariam por vir depois disso. Ele diz que os injustos (que se entregam aos atos egoístas, vícios nos prazeres e aos excessos que fazem mal à psiquê etc) se decepcionarão no fim de suas jornadas, provavelmente aludindo também ao "pós vida". Estes não passariam mais desapercebidos e seriam apanhados no fim, sofrendo os "suplícios selvagens" ditos por seus interlocutores no início do diálogo (Glauco ou Adimanto, entre os livros 1 e 3, falam do justo que é apanhado por seus adversários injustos e consequentemente castigado).[615-621] Em seguida, Sócrates encerra o diálogo contando a história (possivelmente um mito) de Er (Iros), um soldado da região da Anatólia/ Ásia Menor (atual Turquia) que teria morrido e visto “a realidade espiritual”, para depois retornar aos vivos (encarnados) e contar seu relato.
Tal história é praticamente uma experiência de "quase-morte" (EQM). Existem inúmeros casos na
história das diversas culturas humanas, sobre experiências
transcendentais ou de "EQM" desde antes do
desenvolvimento da medicina moderna. Então, voltando a questão sobre provar a inexistência da psiquê (seja a alma, a mente etc): Conforme a filosifia ocidental, tal prova seria anti dialética e, assim, anti epistemológica como Platão indica
na "República" e em outras obras também, como Protágoras, Teeteto etc.
Afirmar que a ciência com certeza irá provar tal inexistência no futuro
é um messianismo; uma promessa baseada no dogma materialista
antropocêntrico surgido no fim do século 17 e intensificado no século
19. Isto rompe com a base da epistemologia, pois ignora toda a raiz e o
cerne da filosofia ocidental. A epistemologia, deve ser dialética para permitir o diálogo entre diferentes áreas da ciência (epsitemes, indicada no livro 8 desta obra) e se pautar pelo bem
como valor universal, ou seja, pela ética, e não por determinismos ou
reducionismos, como a visão de mundo e o pressuposto materialistas/
niilistas. O estudo baseado na investigação sensorial e reprodutível
(empírica) é útil apenas para as descobertas voltadas à produção e
preservação dos corpos, ou seja, da matéria, como explicado por Platão
nesta e em outras obras. Isto porquê, tal tipo de estudo não é
alicerçado na ética, pois ética não é percebida sensorialmente. Assim,
os estudos empíricos e a pré suposição materialista, têm sua
importância, mas deixam em 2º plano (quando não ignora) os valores
universais e sua relação com a psiquê humana. Para se ter noção do
estrago desta postura na construção de conhecimento, ela possibilitou o
racismo científico desde a transição da Renascença ao Iluminismo: A
escravização e os maus tratos dos povos negros e indígenas recebeu apoio
da ciência quando esta afirmou que estas "raças" eram inferiores aos
"brancos", baseadas simplesmente em questões biológicas. Com o racismo científico ainda em voga, surgiu o darwinismo
social entre o fim do séc 19 e início do séc 20, fomentando mais
desigualdade social ao afirmar que as pessoas empobrecidas eram menos
adaptadas ao meio social, ignorando questões sociais e éticas em prol de um biologismo. Durante toda primeira metade do séc
20 então propagou-se uma psiquiatria desumanizada alicerçada na ideia
niilista de que nada existe além do corpo, bem como, com base nas mesmas
idéias, foram feitas as armas químicas e de destruição em massa das duas
guerras mundiais (vide os relatos de Viktor Frankl, que sobreviveu aos
campos de concentração nazistas)*. Enfim, não se coloca "fins sociais" na
construção de conhecimento nem na convivência em sociedade/ na política, sem se
pautar pelos valores universais/ éticos - por isto por mais
particularidades que as propostas de estado feitas por Platão tenham,
elas são voltadas ao coletivo - a questão social é filosófica e ética
porque é uma questão de valores universais - ignorar isto é permitir
o domínio de interesses privados e de fins lucrativos, sem serventia pública e sem ética. Por
esses motivos, a postura ética de um cientista frente a questão da
psiquê, no mínimo, deveria ser de dúvida, ou seja, no mínimo deixar a
questão em aberto.
Sócrates — Não é a história de Alcino que te vou contar, mas a de um homem valoroso: Er, filho de Armênio, originário de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto. Levaram-no para casa, a fim de o enterrarem, mas, ao 12º dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou. Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha visto no além. Quando, disse ele, a sua alma deixara o corpo, pusera-se a caminhar com muitas outras, e juntos chegaram a um lugar divino onde se viam na terra duas aberturas situadas lado a lado, e no céu, ao alto, duas outras que lhes ficavam fronteiras. No meio estavam sentados juízes, que, tendo dado a sua sentença, ordenavam aos justos que se dirigissem à direita na estrada que subia até o céu, depois de terem posto à sua frente um letreiro contendo o seu julgamento; e aos maus que se dirigissem à esquerda na estrada descendente, levando, eles também, mas atrás, um letreiro em que estavam indicadas todas as suas ações. Como ele se aproximasse, por seu turno, os juizes disseram-lhe que devia ser para os homens o mensageiro do além e recomendaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que se passava naquele lugar. Viu as almas que se iam, uma vez julgadas, pelas duas aberturas correspondentes do céu e da terra; pelas duas outras entravam almas que, de um lado, subiam das profundezas da terra, cobertas de sujeira e pó. Do outro, desciam, puras, do céu, e todas essas ai que chegavam sem cessar, pareciam ter feito uma longa viagem. Chegavam à planície com alegria e acampavam aí como num dia de festa. As que se conheciam desejavam-se as boas-vindas, e as que vinham do seio da terra informavam-se do que se passava no céu.
Cada grupo passava 7 dias na planície. Ao 8º, devia levantar o acampamento e pôr-se a caminho para chegar, 4 dias mais tarde, a um lugar de onde se via uma luz direita como uma coluna estendendo-se desde o alto, através de todo o céu e de toda a terra, muito semelhante ao arco-íris, mas ainda mais brilhante e mais pura. Chegaram Lá após um dia de marcha; e aí, no meio da luz, viram as extremidades dos vínculos do céu, porque essa luz é o laço do céu: como as armaduras que cingem os flancos das trirremes, mantêm o conjunto de tudo o que ele arrasta na sua evolução. A essas extremidades está suspenso o fuso da Necessidade, que faz girar todas as esferas; a haste e a agulha são de aço, e a roca (contrapeso), uma mistura de aço e outras matérias. É a seguinte a natureza da roca: quanto à forma, assemelha-se às deste mundo, mas, segundo o que dizia Er, deve-se representá-la como uma grande roca oca por dentro, à qual se ajusta outra roca semelhante, mas menor, do modo como se ajustam umas caixas às outras, e, igualmente, uma terceira,uma quarta e mais quatro. Com efeito, há ao todo 8 rocas inseridas umas nas outras, deixando ver no alto os seus bordos circulares e formando a superfície contínua de uma única rosa em torno da base, que passa pelo meio da 8ª. O bordo circular da 1ª roca, a que fica no exterior, é a mais larga,depois seguem esta ordem: na 2ª posição o da 6ª, na 3ª posição o da 4ª; na 4ª posição o da 8ª, na 5ª o da 7ª, na 6ª o da 5ª, na 7ª o da 3ª e na 8ª o da 2ª. O 1º círculo, o maior de todos, é o mais cintilante; o 7º brilha com o mais vivo esplendor; o 8º tinge-se da luz que vem do 7º; o 2º e 5º, que têm mais ou menos a mesma tonalidade, são mais amarelos que os anteriores; o 3º é o mais branco de todos; o 4º é avermelhado; e o 6º é o segundo mais alvo. Todo o fuso gira com um mesmo movimento circular, mas, no conjunto arrastado por este movimento, os sete círculos interiores realizam lentas revoluções de sentido contrário ao do todo. Destes círculos, o 8º é o mais rápido, depois seguem-se o 7º, o 6º e o 5º, que ocupam a mesma posição em velocidade; nesta mesma ordem, o 4º ocupava a 3ª posição nesta rotação inversa; o 3º, a 4ª posição, e o 2º, a 5ª. O próprio fuso gira sobre os joelhos da Necessidade. No alto de cada círculo está uma Sereia*, que gira com ele fazendo ouvir um único som, uma única nota; e estas oito notas compõem em conjunto uma única harmonia. Três outras mulheres, sentadas ao redor a intervalos iguais, cada uma num trono, as filhas da Necessidade, ou seja, as Moiras, vestidas de branco, com a cabeça coroada de grinaldas. Elas cantam acompanhando a harmonia das Sereias, e são três: Láquesis canta o passado, Cloto, o presente, e Atropo, o futuro. E Cloto toca de vez em quando com a mão direita no círculo exterior do fuso, para fazê-lo girar, enquanto Atropo, com a mão esquerda, faz girar os círculos interiores. Quanto a Láquesis, toca alternadamente no primeiro e nos outros, com uma e outra mão.
*A tradução parece imprecisa: O termo em grego é Seirena, certamente referindo-se não às sereias ("mulheres peixe"), mas à Sirene. As sirenes foram descritas ao longo da história como psicopompos (guia de almas), como mulheres mitológicas com o canto sedutor ou como "mulheres ave".
Talvez a descrição dos fusos e dos círculos feita por Platão tenha relação com a teoria da “música das esferas” que perdurou até meados da Baixa Idade Média e do início da Renascença. Já a descrição das 3 moiras lembra um pouco as 3 nornas da mitologia nórdica que ficavam juntas a um poço sob Yggdrasil, a árvore da vida/ cósmica. Este poço das nornas, "deusas" ou "espíritos" do destino e do tempo, deu nome ao sábado nórdico: Lördag, que significa "dia do lago".
Assim, quando chegaram, tiveram de se apresentar imediatamente a Láquesis. Antes disso, um hierofante os pôs por ordem; depois, tirando dos joelhos de Láquesis destinos e modelos de vida, subiu a um estrado elevado e falou assim:
“Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade (Ananke): Almas efêmeras, ides começar uma nova carreira e renascer para a condição mortal. Não é um gênio que vos escolherá, vós mesmos escolhereis o vosso gênio. Que o primeiro designado pela sorte seja o primeiro a escolher a vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor: cada um de vós, consoante a venera ou a desdenha, terá mais ou menos. A responsabilidade é daquele que escolhe. Deus não é responsável”.
A estas palavras, lançou os destinos e cada um apanhou o que caíra perto dele, exceto Er, porque não lhe foi permitido.
Cada um ficou então sabendo qual a posição que lhe tinha cabido por sorte. Depois, o hierofante estendeu diante deles modelos de vida em número muito superior ao das almas presentes.
Havia de toda espécie: todas as vidas dos animais e todas as vidas humanas; viam-se tiranias, umas que duravam até a morte, outras, interrompidas a meio caminho, que acabavam na pobreza, no exílio e na mendicância. Havia também vidas de homens famosos, quer pelo seu aspecto físico, beleza, força ou aptidão para a luta, quer pela sua nobreza, e grandes qualidades dos seus antepassados. Havia também as obscuras em todos os aspectos, e o mesmo acontecia para as mulheres. Mas essas vidas não implicavam nenhum caráter determinado da alma, porque esta devia por lei mudar consoante a escolha feita. Todos os outros elementos da existência estavam misturados com a riqueza, a pobreza, a doença e a saúde, e também os meios-termos entre eles. Parece que é aqui, Glauco, que reside para o homem o maior perigo. Aqui está a razão por que cada um de nós, pondo de lado qualquer outro estudo, deve, sobretudo, preocupar-se em procurar e cultivar este, ver se está em condições de conhecer e descobrir o homem que lhe dará a capacidade e a ciência de distinguir as boas e as más condições e, na medida do possível, escolher sempre as melhores. Tendo em mente qual é o efeito dos elementos de que acabamos de falar, tomados juntos e depois em separado, sobre a virtude de uma vida, conhecerá o bem e o mal que proporciona uma certa beleza, unida à pobreza ou à riqueza e acompanhada desta ou daquela disposição da alma; quais são as conseqüências de um nascimento ilustre ou obscuro, de uma condição privada ou pública, da força ou da fraqueza, da facilidade ou da dificuldade em aprender e de todas as qualidades semelhantes da alma, naturais ou adquiridas, quando se misturam umas com as outras, para que, confrontando todas estas considerações e não perdendo de vista a natureza da alma, possa escolher entre uma vida má e uma vida boa, chamando má à que possa tomar a alma mais injusta e boa à que a torne mais justa, sem atender ao resto. Na verdade, vimos que, durante esta vida e depois da morte, é a melhor escolha que se pode fazer. E é preciso defender esta opinião com absoluta inflexibilidade ao descer ao Hades, para que também lá não se deixe deslumbrar pelas riquezas e pelos miseráveis objetos desta natureza; não se exponha, lançando-se sobre tiranias ou condições afins, causando, assim, males sem número e sem remédio e sofrendo, por conseguinte, outros ainda maiores; para saber, pelo contrário, escolher sempre uma condição intermediária e evitar os excessos nos dois sentidos, nesta vida, tanto quanto possível e em toda a vida futura, porque é a isto que se liga a maior felicidade humana.
Pois bem, segundo o relato do mensageiro do além, o Hierofante dissera, ao lançar os destinos: “Mesmo para o último a chegar, se fizer uma escolha sensata e perseverar com ardor na existência escolhida, há uma condição agradável, e não má. Que o primeiro a escolher não se mostre negligente e que o último não perca a coragem”.
(...) Depois que todas as almas escolheram a sua vida, avançaram para Láquesis pela ordem que a sorte lhes fixara. Esta deu a cada uma o gênio que tinha preferido, para lhe servir de guardiã durante a existência e realizar o seu destino. O gênio conduzia-a primeiramente a Cloto e, fazendo-a passar por baixo da mão desta e sob o turbilhão do fuso em movimento, ratificava o destino que ela havia escolhido. Depois de ter tocado o fuso, levava-a para a trama de Átropo, para tomar irrevogável o que tinha sido fiado por Cloto; então, sem se voltar, a alma passava por baixo do trono da Necessidade; e, quando todas chegaram ao outro lado, dirigiram-se para a planície do Lete, passando por um calor terrível que queimava e sufocava, pois esta planície está despida de árvores e de tudo o que nasce da terra. Ao anoitecer, acamparam nas margens do rio Ameles, cuja água nenhum vaso pode conter. Cada alma é obrigada a beber uma certa quantidade dessa água, mas as que não usam de prudência bebem mais do que deviam. Ao beberem, perdem a memória de tudo.
Mais uma curiosidade: no candomblé, religião afro-brasileira mais próxima da cultura Yoruba da África ocidental, o conto da encarnação da alma tem algumas semelhanças com o mito de Er registrado por Platão, como o ato da alma de se apresentar diante entidades e o processo de esquecimento das memórias de outras vidas.
Então, quando todas adormeceram e a noite chegou à metade, um trovão se fez ouvir, acompanhado de um tremor de terra, e as almas, cada uma por uma via diferente, lançadas de repente nos espaços superiores para o lugar do seu nascimento, faiscaram como estrelas. Quanto a ele, dizia Er, tinham-no impedido de beber a água; contudo, ele não sabia por onde nem como a sua alma se juntara ao corpo: abrindo de repente os olhos, ao alvorecer, vira-se estendido na pira.
E foi assim, Glauco, que o mito foi salvo do esquecimento e não se perdeu, e pode salvar-nos, se lhe prestarmos fé; então atravessaremos com facilidade o Lete e não mancharemos a nossa alma. Portanto, se acreditas em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males, assim como todos os bens, nos manteremos sempre na estrada ascendente e, de qualquer maneira, praticaremos a justiça e a sabedoria. Assim estaremos de acordo conosco e com os deuses, enquanto estivermos neste mundo e quando tivermos conseguido os prêmios da justiça, como os vencedores que se dirigem à assembléia para receberem os seus presentes. E seremos felizes neste mundo e ao longo da viagem de mil anos que acabamos de relatar.