É por isso que um homem envolve a terra com um vórtice para fazer com que os céus a mantenham no lugar, outro faz com que o ar a sustente como uma tampa larga (uma gamela, do grego kardópoi plateiai). Quanto à sua capacidade de estar no melhor lugar que poderiam estar neste exato momento, isso eles não buscam, nem acreditam que tenha alguma força divina (daimonian iskhyn), mas acreditam que um dia descobrirão um(a) Atlanta (Edson Bini, traduz como o titã da mitologia, embora esse se chame Atlas) mais forte e mais imortal, para manter tudo mais unido, e eles não acreditam que o que é verdadeiramente bom e 'vinculativo' os une e os mantém unidos.
Assim, quando Sócrates ouve alguém dizer que algo é belo por causa de sua cor, de sua forma e coisas desse gênero (por causa do que é perceptível sensorialmente), ele ignora e agarra a si mesmo de forma simples na ideia (eidos) de que as coisas são belas porque participam/ comungam da beleza em si mesma - é a presença do belo em si mesmo nas coisas que as fazem belas.
Sócrates não discute diretamente a possibilidade do desgaste e da dissolução da psiquê/ alma, mas indica a existência das eidos, como o bem/ o belo, existindo de modo imutável e uno. Sendo algo alcançável pela psiquê/ alma humana, é mais próxima desta do que do corpo, e sendo mais próxima e alcançável, possivelmente Sócrates convence seus interlocutores de que a psiquê é indestrutível.
Sócrates traz a ênfase no bem/ belo (kalos, um valor não meramente individual, mas universal) para a construção do conhecimento. Ele entendia que a Terra deveria ser redonda porque este deveria ser “o melhor jeito dela ser” (vide A República). Buscar entender o melhor jeito dos seres existirem e das coisas serem, era a função ontológica da filosofia. Isto não é separável da busca pelo bem: a filosofia, como todo o saber, deve ser ética - se pautar sempre por valores universais. Embora alguém possa atacar a ideia de valor universal alegando que eles são relativos, a verdade é que os valores universais são de utilidade coletiva e devem ser desenvolvidos individualmente, para que cada indivíduo trate todos com justiça, ou seja, com equidade. Quando Sócrates critica os indivíduos que favorecem os amigos e prejudicam os demais, na obra A República, certamente ele estava buscando propagar a ética como parte da amizade pelo saber (filosofia).
103b-107a Sócrates realiza uma investigação racional dialética com seus interlocutores, onde faz comparações entre os números pares e ímpares, o frio e o calor a vida e a morte, concluindo que a psiquê (alma) é imortal e o corpo, mortal; 107c "Porém devemos senhores, considerar também o seguinte: se a alma for imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nesta porção do tempo que denominamos vida, senão o tempo todo em universal, parecendo que se expõe a um grande perigo quem não atender esse aspecto da questão. Pois se a morte fosse o fim de tudo, que imensa vantagem não seria para os desonestos, com a morte livrarem-se do corpo e da ruindade muito própria juntamente com a alma? Agora, porém, que se nos revelou imortal, não resta à alma outra possibilidade, se não for tornar-se, quanto possível, melhor e mais sensata. Ao chegar ao Hades, nada mais leva consigo a não ser a instrução e a educação, justamente, ao que se diz, o que mais favorece ou prejudica o morto desde o início de sua viagem para lá."
107d O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o daemon (espírito) que em vida lhe tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em que se reúnem os mortos para serem julgados e de onde são conduzidos para o Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o caminho. Depois de terem o destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável, outro guia os traz de volta, após numerosos e longos períodos de tempo. Esse caminho não é o que diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém se perde onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e bifurcações. Digo isso com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso. De qualquer forma, a alma prudente e moderada acompanha seu guia, perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas, como disse há pouco, a que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo em torno dele e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem conta, é por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo daemon incumbido de conduzi-la. Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a que se acha impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes semelhantes, irmãos daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de umas alma como essa todas se afastam, evitam-na, não havendo guia nem companheiro de jornada que com ela se associe. Tomada de grande perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo tempo, depois do que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A que atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e companheiros de jornada, obtém moradia apropriada.
Na sequência Sócrates especula que a Terra seja redonda e que esteja localizada no mesmo "céu" dos demais astros, onde haveria o que outros filósofos chamavam de "éter". Para Sócrates (e certamente Platão), a água, o vapor e o ar eram sedimentos desse éter do "céu" onde situam-se os astros, e estes "sedimentos" fluiriam para a Terra e suas concavidades (certamente o formato irregular da geomorfologia: desde as montanhas, passando pelos continentes, até as partes mais profundas/ o oceano). Os povos do mediterrâneo são comparados com pequenos animais vivendo em torno de um poço, pois a Terra seria muito maior do que aquela região (Europa, norte da África e oriente médio) onde viviam. Embora tais argumentos pudessem parecer uma especulação sobre física (a circunferência da Terra só foi calculada cerca de 150 anos após Platão, por Erastóstenes), Sócrates segue explicando, que devido à fraqueza (certamente psíquica: mental e espiritual) e a indolência, os seres humanos são incapazes de alcançar a superfície além da Terra: Aqui o filósofo já não fala em mero espaço físico, ao menos, não no espaço tridimensional: Ele se refere a um "céu verdadeiro" e uma "luz verdadeira" de onde poderíamos ver que a nossa Terra onde vivemos não passa de um mundo rústico e imperfeito. Nesta realidade mais verdadeira haveria a beleza superior às coisas de nosso mundo, e ali, seria possível ver uma Terra mais perfeita: Sócrates menciona um mito onde haveria uma "Terra" mais bela e perfeita (teria relação com o hiper ouranos mencionado em Fedro? Ou com o mundo das eidos mencionado em outras obras?) e todos minerais de nossa terra seriam feitos de fragmentos daquele mundo mais puro. Comparado com aquela Terra mais pura, no mundo onde vivemos normalmente, as coisas são maculadas ou corroídas, causando deformidades e enfermidades tanto nos animais, como nos vegetais e nos minerais. Os seres daquele mundo mais puro teriam tudo mais aperfeiçoado que os humanos da Terra: os sentidos, a saúde e a inteligência - o tanto quanto o ar é mais puro do que a água e o éter do que o ar, diz o filósofo (seria uma alusão aos estados da matéria, considerando mais puro, o mais sutil, ou literalmente mais "etéreo"?). Estes seres se comunicariam com os deuses e veriam os astros (por exemplo, o sol e a lua) como realmente são e a seguir, Sócrates arrisca-se a descrever o lugar de julgamento das almas, os rios por onde estas navegam ou são jogadas e o Tártaro (local mítico de punição). Ao anunciar o fim de sua narrativa, Sócrates é indagado por Críton como proceder. O filósofo responde para Críton fazer como sempre e viver conforme explicado na recente conversa, pois se não fizer assim, de nada adiantaria fazer juramentos e nenhum avanço seria realizado. Críton então pergunta sobre o que fazer com o corpo de Sócrates após sua morte. O filósofo sorrindo, diz que por mais que explique sua situação, seu amigo Críton continua achando que ele é só o corpo e que discursou apenas para tranquilizar a todos (como se a alma de Sócrates não fosse partir).
116b Por fim, após Sócrates receber a visita de seus 3 filhos e das mulheres de sua família, o agente/ comissário dos arcontes anuncia:
Sócrates, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais gentil e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente da mensagem (angelon) que vim anunciar-te: Adeus. Tente suportar o inevitável o mais tranquilamente possível. E colocando-se a chorar, deu as costas e retirou-se.
Sócrates olhou para ele disse: Adeus, também para ti; faremos isso mesmo. Depois, voltando-se para o nosso lado, disse: Que homem delicado! Durante todo este tempo, vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos, Críton; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de prepará-lo o encarregado disso.
Críton então tenta convencer Sócrates para não se apressar, argumentando que outros condenados pedem por um último momento de prazer e muitas vezes são atendidos.
Sócrates lhe responde: É natural, Críton, que esses tais procedessem conforme disseste, por imaginarem que disso ganhassem alguma vantagem. Mas certamente eu não procederei dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a ganhar em beber o veneno um pouco mais tarde. Só me tornaria ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedece-me e só faças o que eu digo.
117a Ouvindo-o, Críton fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este saiu e voltou depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Fitando o homem, com aquele seu olhar de touro (olhos bem abertos), perguntou-lhe:
Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?
O homem respondeu: Só preparamos, Sócrates, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Críton levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.
Que é isso, ó gente incompreensível (thaumasioy)? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos (silenciai-vos) e sedes corajosos (pacientes)!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. (...), mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras:
Críton, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças e dê (salde essa dívida)!*
Assim farei, respondeu Críton, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção.
O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Críton fechou-lhe os olhos e a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.
*(traduzido de: "ó Kríton, éfi, tó Asklepió ofeílomen alektryóna: allá apódote kaí mi amelísite") Interessante notar que na língua grega atual, galo é kókkoras e não alektryóna; Na mitologia havia um personagem chamado Alektryon: um soldado designado como guarda por Ares, deus da guerra (considerado mais selvagem e estrangeiro em comparação com Atena); Após Alektryon falhar em sua missão de alertar Ares contra Hefesto (deus da forja e das invenções), ele acabou transformado em um galo. O mito, porém, não é mencionado em obra alguma de Platão.
Enfim, ao mostrar possíveis consequências da imortalidade da alma no diálogo Fédon, Platão traz mensagens de responsabilidade, mas de sabedoria e esperança também. Em "O Banquete", quando Platão diz que devemos amar o bem (as psiquês coletivamente e as leis que fazem bem ao coletivo etc) ele indica que o bom sentimento deve nos guiar para o bem coletivo e também transcendente. Isto porquê o bem/ belo (kalos) é a ideia/ forma (eidos) sublime que não é meramente sensorial/ corporal, mas sim cognoscível/ psíquica. É assim que se alcança o "hiper ouranos" (além céus, mencionado em Fedro), o reino divino onde não há espaço para malevolência. O bem e as demais eidos então são virtudes humanas/ são o que pode nos fazer excelentes e são mais reais que o mundo sensorial, pois são ligados ou oriundos desta realidade superior, seja qual for seu nome.