A postura de assumir não conhecer um tema ao invés de assumir um pressuposto não se trata de niilismo nem de relativismo, pois esta postura básica serve à investigação via o "diálogo" (não necessariamente a conversa, mas a comparação de ideias/ relatos/ fatos); Assim o diálogo é verdadeiramente equitativo e não se julga precocemente determinadas ideias ou relatos.
Temos até aqui então, a base (presumir a própria ignorância) e o meio (diálogo equitativo) para se investigar / construir conhecimento, faltando apenas a finalidade: Platão indica ela em obras como Fedon e A República (novamente a obra principal do autor): Em A República, o autor indica que as ideias mais sublimes e mais benéficas à todos, ou mais benéfica à maioria dos seres, é alcançável pela atividade cognoscível: a parte menos material da psiquê humana e a capaz de trabalhar/ alcançar os valores universais, ou seja, a ética. (as outras duas "partes" da psiquê seriam a "intermediária" de aspecto emocional ligada ao termo "thymous" e a parte mais inferior ligada às necessidades básicas, seus impulsos e prazeres afrodisíacos e do comer e beber)
Já no diálogo Fedon, o autor indica que seu mestre Sócrates admirou a teoria de Anaxágoras, mas acabou achando-a insuficiente, porque o "Nous" (a causa de todo o universo) do filósofo naturalista era "neutro"/ apartado de ideias como o bem/ belo (kalos, a bondade) e das demais virtudes como moderação, coragem e justiça. Para o autor, o professor de ontos (das coisas que são, mas pode-se entender de ontologia) deve buscar e se pautar pela melhoria de todas as coisas. Aqui Platão certamente não se limita a melhoria de coisas materiais, avançando principalmente para a melhoria do ser humano para que este viva em harmonia com o meio/ a sociedade.
A verdadeira construção de conhecimento então segue este modelo: presunção da ignorância como pressuposto filosófico, o "diálogo equitativo" / a maiêutica como método de investigação e a melhoria de todas as coisas e as virtudes/ valores universais como finalidade. Tudo que está fora disto não é conhecimento e sim opinião ou ignorância. Esta proposta que muitos podem considerar vaga ou ingênua é o mínimo para se respeitar cosmovisões de diferentes povos e culturas. O rigor do método não se apoia em detalhes perceptíveis sensorialmente (empirismo, difundido principalmente pela Europa iluminista) nem em mera mensurabilidade matemática; se apoia na escuta e na reflexão com a finalidade ética/ pautada nos valores universais. Esta é a filosofia como construção de conhecimento rigorosa: ela não se fecha em um pressuposto ou paradigma específico, porque valores universais exigem universalidade. Universalidade não é diversidade desconexa: ela é una, ou seja, compõe um corpo unido pautado na melhoria e no que é bom para todos.
Claro, que neste ponto muitos discutiriam "o que é bom para todos"? Bem, Platão aponta ao longo de sua obra o que é bom e o que é ruim. Algumas coisas ruins por exemplo permanecem até os dias de hoje e são óbvias: A prioridade no lucro, ou seja, nos ganhos pessoais é um ponto criticado em várias de suas obras (Górgias, A República, Apologia etc), bem como a ênfase nas honrarias. Esta última palavra mais difícil de traduzir refere-se a uma gama de coisas interconectadas: rivalidade, status social, econômico, político, religioso etc. Estas honrarias são típicas dos indivíduos que Platão chama de "filónikons", termo este traduzido como briguento, mas que ao pé da letra é "amigo da vitória" e está para "amante do sobressair-se", assim como filósofo está para "amante/ amigo do saber" e "filokerdes" está para amante do lucro ou interesseiro.
Estes três tipos de indivíduos parecem ligados ao conceito dos 3 níveis da psiquê elaborado por Platão e também com os 3 tipos de classes da sociedade (artesão/ mercadora, guerreira/ guardiã e legisladora/ governante).
É fácil alegar que não existe coisa alguma que é boa para todos, mas isto é uma mera negação generalizada. Quando o "todos" não é alcançável, é possível buscar alternativas desde que mantenha-se a ética (ou os valores universais) como finalidade. Não existe "bom para todos" enquanto a finalidade de algo (seja um estudo, uma proposta econômica, uma administração ou um estado) for o lucro ou o sobressair-se (disputa, rivalidade, honrarias etc). Platão indica que o conceito de saber, de sabedoria e de conhecimento, estão ligados aos valores universais, portanto à ética e à universalidade. A episteme então (construção de conhecimento, do ensino ao conhecimento em si) é incompatível com a priorização de dinheiro/ lucro e de honrarias/ status: se um estudo é feito visando lucros, ele está corrompido. Se é feito priorizando um povo ante o outro, ele está corrompido. Isto é notável em nossa história, onde indústrias/ empresas induzem estudos seja financiando seus pesquisadores ou pagando campanhas para elogiar um produto ou difamar outro. Alguns dos casos mais comuns são os de empresas farmacêuticas (desde a época de Szaas até a crise dos opioides nos EUA) que apresentam tal tipo de viés lucrativo omitindo desde fatores culturais e sociais na saúde mental até efeitos colaterais de medicações. Já o "amor ao sobressair-se", tão comum dos nacionalismos e do fanatismo religioso, também foi notável em casos de estudos utilizados para inferiorizar uma etnia inteira, ou para dar poder a uma determinada nação ante outras; A drapetomania e a cranoscopia, que eu já citei em outros textos, foram estudos científicos racistas claramente eurocêntricos que tentavam classificar os negros, ou seja, povos de origem predominantemente africana, como seres humanos inferiores aos "brancos". O desenvolvimento de armas químicas e nucleares "davam o direito" de nações (Alemanha, EUA etc) as utilizarem sobre outros povos, matando milhares de humanos...
Em Sofista e em Parmênides o autor faz um uso rigoroso de seu método investigativo, sendo que nesta última obra, o mesmo (via um dos personagem) alerta que a maioria das pessoas acharia tais investigações enfadonhas e/ ou não dariam crédito à elas. Isto porque, o autor investiga via o diálogo e a racionalização (pressupondo sua própria ignorância, refletindo, buscando o melhor etc) conceitos como a unidade, o que é cada coisa (formas/ eidos e classificações destas), o que se interconecta etc. O tema é difícil talvez por ser raramente discutido e pouco objetivo, ou seja, pouco sensorial... na verdade é puramente racional/ lógico/ ético e praticamente nada sensorial.
Os estudos apresentados por Platão nestas obras raramente seriam bem difundidos e praticados por uma parcela significante da sociedade, independentemente da nação e da cultura humana. É uma construção de conhecimento filosófica profunda e afastada do que se entende por ciência na era moderna. Pelo que li das obras do filósofo, estes estudos ajudariam sim a humanidade a ser mais ética com rigor e diálogo inclusivo... Porém estamos longe disto: Parece que são poucos são os filósofos que se aproximaram da postura ética e epistemológica de Platão e os outros saberes tidos como o científico e o religioso são quase antagônicos entre si. Pior que isso, não são antagônicos de forma que critiquem pontos negativos um dos outros, buscando os pontos positivos, ou seja, buscando a ética - São antagônicos entre si de modo que se enquadram majoritariamente no conceito filonikon apresentado pelo fundador da filosofia ocidental (meros rivais entre si). Além deste problema grande parte das nações juntamente com suas respectivas instituições, sejam científicas ou religiosas, está submetida a um sistema sócio econômico, e portanto político também, neoliberal - uma continuação do liberalismo e do mercantilismo, todos de ideologia capitalista, ou seja, "filokerde" que prioriza o lucro...
Não acho que seja obrigatório o ensino de obras complexas como Sofista e Parmênides nas universidades (nas escolas seria impensável), mas resgatar a filosofia como uma construção de conhecimento aberta a diferentes cosmovisões e que faça a ponte entre algumas áreas da ciência (ao menos as humanas) com a cultura e a espiritualidade (eu incluiria as religiões contanto que elas não fossem usadas como ferramenta de poder) é urgente... Isto é aplicar uma verdadeira ética na construção de conhecimento e remover os ares de superioridade da academia (e das religiões) eurocêntrica(s) que invadiu praticamente todos países da América. Isto é dar vozes aos indígenas e aos negros, iniciando um diálogo entre a academia e os povos nativos da América e da África. Além disto, tal diálogo entre saberes poderia auxiliar no combate aos interesses privados e financeiros em setores essenciais e frágeis como a área da saúde mental desde a rede de instituições até seus pacientes/ usuários de tal sistema.
A construção de conhecimento então não deveria ser pautada meramente pelo rigor metodológico nem por dogmas ou paradigmas, e sim, deveria ser pautada pela ética e seus valores universais, como já mencionei em outros textos... Se isto parece absurdo ou vago demais para as áreas da física, da química e da biologia, definitivamente não deveria parecer assim para áreas humanas como a história, a geografia (política), o direito, a contabilidade, a economia, a sociologia e a psicologia. Uma construção de conhecimento centrada na ética, e portanto mais filosófica, nestas áreas se faz urgente e os motivos para isso devem render outro(s) texto(s).
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