Breves Observações sobre Laques (Da “Coragem”)

O diálogo entre Melésias, Lisímaco, Laques (um general ateniense), Sócrates e Nícias (um general e político ateniense) aborda a questão da “andreías”*, que significa coragem e virilidade, mais no sentido masculino. Certamente o fato de tal palavra ter tal significado e utilização fazia parte da cultura grega de modo geral, que priorizava e privilegiava os homens e oprimia a mulher. Ainda que Sócrates e Platão fossem mais abertos à inclusão da mulher nos círculos sociais/ acadêmicos, eles estavam inseridos no contexto histórico e não chegavam a abandonar ou contrariar a utilização de termos como este. 

*Esta palavra está relacionada ao termo "andros" que significa homem (masculino) e é empregada como prefixo ou sufixo em várias palavras e nomes na língua portuguesa: Alexandro (defensor de homens), Andrógino (homem-mulher, ou seja, meio termo entre ambos ou mistura de ambos), Andróide (similar ao homem) etc.

No início deste diálogo os generais Nícias e Laques têm diferentes opiniões sobre a demonstração de luta encouraçada que assistiram e se esta será útil de se ensinar às futuras gerações ou não. Sócrates é convidado a dar seu parecer, como se tivesse que decidir qual deles estaria certo. O filósofo então sugere que os seus interlocutores se pautem pelo conhecimento (episteme) e não pelo critério do maior número (de opiniões). Para isto Sócrates diz à Nícias, que não se deve prender-se ao meio (no caso a luta com couraça), mas sim ao objetivo, à finalidade. Aquele que oferece a informação do que é útil de se ensinar às futuras gerações então deve ser perito no tratamento (therapeían) do objeto em pauta/ em consideração e esse objeto é a alma (psiquê) dos jovens. 

Após mais algumas trocas de palavras, Sócrates sugere que pode ser mais produtivo abordar o que é a virtude, mas não ela como um todo, pois seria um assunto muito extenso - o filósofo sugere que o diálogo comece a partir da virtude mais útil para os guerreiros e para a batalha: a coragem (andreias). Laques então diz que é fácil definir o que é a coragem: é não abandonar seu posto em batalha e enfrentar o inimigo sem fugir. Sócrates então dá exemplos de exércitos de guerreiros que batem em retirada, mas voltam a combater os inimigos, e assim, obtém a vitória em batalha. Laques tenta argumentar que tais casos são de cavalaria e não de infantaria, ao que Sócrates rebate argumentando que a infantaria espartana (lacedemônia) também utiliza-se da retirada como estratégia de batalha para furar linhas de defesas adversárias. Sócrates completa dizendo que busca a definição de coragem em variadas situações e não só nas batalhas e guerras: na navegação, na doença, na pobreza e nos negócios do estado. Laques então supõe que a coragem possa ser um tipo de resistência (ou determinação) da alma (psiquê), ao que Sócrates responde que a coragem (andreias) sendo parte da virtude não pode ser tola, desprezível ou reprovável. Sócrates segue explicando que a resistência da psiquê (ou determinação) pode se manifestar em comportamentos bons, mas também nos nocivos e errôneos, o que a descaracteriza como coragem ou qualquer outra parte da virtude. 

Sócrates então convida Nicias para dar seu parecer sobre a coragem e este então diz que é uma espécie de conhecimento (episteme). Sócrates pergunta que tipo de conhecimento seria a coragem, ao que Nícias responde que trata-se do saber o que é temível e o que inspira confiança ou audácia. Laques acha a opinião de Nicias absurda e diz que não há sabedoria (sofia) na coragem. Nicias então tenta desvincular o conhecimento de sua visão da coragem sem desvincular o “saber”, ao que Laques insinua que desta forma só os “manteis” (adivinhos, profetas, praticantes de magia divinatória) saberiam o que enfrentar e o que temer. Nicias então contra argumenta dizendo que não considera os praticantes de adivinhação detentores de tal saber. Laques diz que desta forma só os deuses teriam a coragem e diz achar que Nícias está só inventando argumentos para esconder que não sabe de nada sobre o assunto. Sócrates diz que é importante não vincular a coragem aos animais, pois estes não possuem sabedoria - não sabem de coisa alguma. Laques então pergunta à Nícias se os animais poderiam ser considerados corajosos, ao que o general responde que não, pois também não considera as crianças corajosas, pois elas nada sabem. Crianças e animais então poderiam ser temerárias, o que é diferente de ser corajoso, explica Nícias. Laques e Nícias “trocam farpas” e Sócrates diz para o primeiro não se irritar, pois o velho general e político ateniense “anda com Damom, um amigo de sofistas” e que são mestres neste tipo de argumentação (que inclui prolixidade e provocações). Sócrates então pergunta à Nícias se a coragem como os demais conhecimentos não se limita só ao futuro, abrangendo também presente e passado. Pois o conhecimento somente do futuro de um determinado tema, seria só um terço de um conhecimento. O general concorda que a coragem também trata do presente e do passado como os demais conhecimentos. Sócrates então diz que, a coragem sendo também uma virtude, trataria de saber tudo o que deve-se temer e tudo que inspira confiança e audácia, tanto no passado, como no presente e no futuro. Porém isto estaria mais simpático ao todo da virtude do que uma parte da virtude. Nícias então alega que disse o suficiente sobre o tema e que se algo não foi suficiente poderá ser corrigido posteriormente. 

Quando é sugerido que Sócrates passe a instruir os filhos dos generais, o filósofo argumenta que nem ele, nem os demais deveriam ser escolhidos para tal tarefa, pois todos fracassaram em entender o que é “andreias” (“coragem”). Sócrates sugere que todos busquem saber o que é a coragem, ao que Lisímaco responde convidando-o para planejar ir à escola no dia seguinte. 

Sócrates responde: “Lisímaco, não deixarei de ir à tua casa amanhã, queira o Deus.* 

*Esta é um tipo de fala polêmica que surge nos diálogos de Sócrates. A religião popular grega era politeísta, embora religiões como a órfica possam ser interpretadas de modo diferente da “mitologia” centrada nos poemas de Homero e Hesíodo. Muitos estudiosos interpretam o deus de Sócrates e de Platão como se fosse Zeus ou Apolo, mas a verdade é que isto não é um fato óbvio e talvez nem seja preciso. Alguns tradutores utilizam o termo “Deus” com maiúscula, outros utilizam com a inicial minúscula. 

Em Filebo, fica claro que o Deus dos filósofos (Sócrates e Platão) é “nous”, a inteligência divina. Isto pode ter relação com nous, “a mente cósmica apresentada por Anaxágoras”, ou também com o conceito de “uno” de Parmênides

 

 

Humanizar requer desmercantilizar

Reflexões atuais sobre a ideologia capitalista

Em meio a termos técnicos e argumentos pró-acúmulo de capital, a economia tomada por ideologias financistas e capitalistas, segue ditando regras indiretamente para as sociedades; Além de reforçar a utilização do dinheiro para o maior número de atividades possíveis (e impossíveis), tais ideologias contém "receitas" de como se adquirir mais e mais dinheiro, sempre como prioridade, acima de questões sociais e humanas. E adquirir mais e mais dinheiro infinitamente é impossível porque a quantidade de dinheiro em circulação é limitada por um conceito chamado lastro. O lastro é um tipo de limite de produção do dinheiro baseado em um suposto elo deste com um recurso natural palpável das nações (houve uma época que o dinheiro foi vinculado ao ouro, outra época ao petróleo, mas não há regra bem definida). Este elo é só suposto e não pode ser provado nem rastreado com precisão e clareza por causa de uma série de falcatruas feitas por quem define estas regras de produção do dinheiro a nível mundial: Os bilionários e/ ou trilionários.

Tais absurdos, através de uma tecnicidade, da manipulação de terminologias e do intelectualismo, se disfarçam de ciências, e assim, invadem os campos do saber, desvirtuando-os... Ou mais especificamente, desumanizando-os. 

Para mais detalhes sobre como ocorrem distorções no valor do dinheiro, comercialização de ações e propagação da ideologia financeira, leiam este texto: https://nea-ekklesia.blogspot.com/2023/01/a-ideologia-financeira-quais-os.html 

No que se refere às questões humanas, é importante indicar os impactos nestes assuntos: Ao esconder a importância de questões sociais e humanas na economia e na política (na legislação, jurisdição, direitos etc), as ideologias financistas/ capitalistas, invadem a cultura do ser humano em níveis coletivo e individual. Discursos "meritocráticos", culpabilização dos pobres por sua respectiva pobreza e idolatria de multimilionários acompanham paralelamente a linguagem rebuscada e tecnicista da economia tomada pelas ideologias capitalistas e afins, além de dificultar o entendimento do mercado financeiro e suas contradições. Estas ideologias estão por trás dos sistemas (sócio)econômicos predominantes nas nações, como por exemplo, estão por trás do liberalismo, do neoliberalismo e (em menor grau) do socialismo... 

Além disto, a cultura das sociedades humanas caracterizada por predominâncias de gostos musicais, alimentos/ pratos típicos, vestimentas, linguagem, entre outros elementos, acaba toda permeada pela objetificação, pela lucratividade e pelo imediatismo; É uma consequência lógica da incitação à busca incessante por dinheiro, status e enfim, por riquezas e prazeres materiais. Incitar sociedades, ou seja, enormes grupos de pessoas, a tais atitudes e comportamentos é bem perigoso, porque é uma propagação de egoísmo/ individualismo. 

Oras, se há a propagação de imediatismo (pressa para fazer tudo, perda rápida de interesse/ impaciência, busca por momentos de fama em redes sociais etc) e da objetificação (super valorização da aparência/ culto ao corpo, exibicionismo em redes sociais, hipersexualização, desprezo pelos sentimentos e pela subjetividade dos seres humanos etc), o que sobra da cultura humana? Como ficam as vestimentas e o modo de se vestir? Como ficam as músicas, suas mensagens e as preferências musicais? Como ficam os alimentos e a alimentação? Como fica o meio ambiente?

Se há idolatria de multimilionários, propagação de meritocracia e da busca incessante por dinheiro, como ficam as identidades sociais? Como as pessoas se percebem dentro da sociedade/ do coletivo? Como ficam os agrupamentos das pessoas (as antigas tribos sociais)? Não assumem rivalidades? Não passam a se fechar em grupos que se atacam mutuamente? Não passam a ignorar tudo o que não for próximo deles? 

Todos estes aspectos das culturas humanas a nível coletivo esteve sendo e ainda está sendo invadido por uma ideologia financista e capitalista desde a revolução industrial. E se intensificou entre os anos 50 (pós guerras) e os anos 80 (quando as mega corporações começaram a influenciar severamente os governos ocidentais). E vem se intensificando novamente, desde a difusão ou "febre" das redes sociais, iniciada "pelo Facebook" no fim da 1ª década deste século 21. Hoje temos outras redes sociais (algumas do mesmo dono) e todas elas adotaram um modelo de algoritmo que prioriza a capitalização (dos conteúdos na internet) e o lucro (deles mesmos). 

Para piorar, este impacto não se limita ao nível cultural/ social/ ambiental, pois é claro que, se afeta as sociedades como coletivos, também afeta seus membros, os indivíduos e suas respectivas subjetividades, suas psiquês (pensamentos, sentimentos, valores...), comportamentos etc. Aqui entra a importância de se defender a saúde emocional e mental das pessoas! Sentimentos, valores, sentido existencial, capacidade e ritmo de aprendizagem conforme a utilização de seu raciocínio, memórias etc. Como defender todos estes aspectos psicológicos/ emocionais e sociais diante massivas propagandas típicas do sistema dominante? Diante todas as falácias desumanizadoras mencionadas? 

De fato, muitas pessoas se adaptam ao estilo de vida desumanizado e frenético dos sistemas de ideologia capitalista, ainda que sofrendo seus impactos nocivos e possíveis sequelas sejam psicoemocionais, físicas ou ambas. 

Mas quantos destes indivíduos que se adaptam, não escolheriam outro estilo de vida e/ ou outro sistema socioeconômico? Um sistema que dita as regras da sociedade, seja das nações ou de toda civilização, através da economia, da política, da religião, da mídia de massa e de outras forças repressoras. Alternativas de ideologias que ditam regras dos sistemas sociais e econômicos praticamente nunca foram ofertadas: Elas foram impostas ao longo da história através de elites intelectuais e econômicas ou através de líderes políticos, religiosos e militares. Como já citei, por trás dos sistemas econômicos/ sociais, existe(m) ideologia(s)... e toda ideologia tem alguma(s) prioridade(s) e/ ou intencionalidade.

Há quem aposte em revoluções sociais em busca de mudanças, porém não é a violência que gera progresso. A reação violenta pode ter servido em momentos da história onde não haviam outras alternativas disponíveis... Mas alegar que a revolução violenta é a única solução para a sociedade progredir ou para implementar um sistema mais justo e equitativo é um reducionismo ou uma falácia. 

Um Resumo Histórico

Eu costumo citar que o feudalismo europeu dominado pelo poder religioso católico, começou a ruir devido a classes sociais intermediárias da era medieval, das quais pouco se falam. Resumidamente, os burgos e seus habitantes (burgueses) surgiram devido a necessidade inevitável da obtenção de determinados produtos por determinadas sociedades por volta do século 13 e isto muita gente sabe. Então o mercado não pôde ser impedido pela igreja naquela época: Veneza, Gênova, Florença, ligas ou guildas germânicas e bálticas conseguiram se libertar relativamente do poderio religioso e aristocrático, gradualmente enriquecendo e formando uma 3ª classe poderosa nas nações ocidentais: a burguesia. Só que o dinheiro em si não toma decisões, assim como o mercador (burguês, no caso) que enriquece, não necessariamente se desenvolve intelectualmente ou empaticamente. 

Os pensadores que começaram a espalhar severas críticas aos 2 maiores poderes medievais (nobreza e igreja), apontando suas mentiras, opressões e violências, eram filósofos. E não eram naturalistas, mas sim, pensadores muito mais voltados às questões de moral e ética, seja religiosa ou temporal: Após um período de teólogos críticos à corrupção na igreja e nas aristocracias (entre o final do século 14 e meados do século 15), os humanistas passaram a fomentar mais liberdade, baseando-se em escritos da Grécia Clássica, questionando os poderosos da 2ª metade do século 15 e de todo o século 16. Na Europa então, os humanistas que defenderam um governo e uma espiritualidade mais comprometida com o progresso e com a ética, voltaram a propagar as obras de Platão (e Sócrates), enquanto os que criticavam mais a repressão e a hipocrisia das igrejas, se apoiavam em obras gregas não espiritualistas, como as de filósofos estoicos e epicuristas. Este período em que a filosofia ganhou mais autonomia diante as igrejas, foi o mesmo período em que as artes passaram a ser mais difundidas pela Europa: A renascença. Ocorreram conflitos? Revoltas e guerras? Perseguições e execuções? Sim! Mas não foram as ações violentas que modificaram leis, constituições, nem influenciaram valores individuais e coletivos. Mesmo porque a violência fez muito mais vítimas entre os revoltosos e denunciantes, do que entre os opressores e denunciados (as forças do "status quo"). Foi a fomentação de saberes voltados às questões éticas a nível não só individual, mas principalmente coletivo! 

A etimologia da palavra revolução remete à "re-evoluir", ou seja, voltar a evoluir, certamente indicando que se trata de um processo de evolução, mas não só um processo gradual e estável ou tranquilo, mas também um processo de quebra com tradições impeditivas, rompimento com sistemas injustos e denúncia de ideologias falaciosas e nocivas. De fato, elites que se consolidam no poder, dificilmente abrem a mão de seus vastos privilégios e os vastos grupos de pessoas que ficam e condições de vida precárias e perigosas precisam de uma reparação - de uma oportunidade para reconstruirem suas vidas. Neste ponto urgente é que geralmente surge um movimento para se arrancar o poder de tais elites tão nocivas para a sociedade. 

Ainda no início da renascença, o movimento dos filósofos humanistas foi seguido pela divisão (ou "reforma") da igreja católica, justamente por causa deste tipo de situação. A reforma atraiu as baixas classes sociais germânicas e quebrou o poder religioso católico dando origem às igrejas cristãs protestantes. Porém a burguesia vinha crescendo sem oferecer solução para as multidões de camponeses empobrecidos das nações europeias. Os 3 movimentos críticos de teólogos e filósofos, tinham escancarado as mentiras, a opressão e a ganância de líderes da religião católica e das aristocracias, mas as revoltas das classes mais pobres geralmente acabavam esmagadas (revolta camponesa/ lollard da Inglaterra de 1381) ou traídas por parcelas mais enriquecidas (guerras hussitas de 1420-1434 e guerra dos camponeses germânicos de 1524-1525). 

Nota-se que praticamente em todos os casos, as classes mais enriquecidas têm o maior poder bélico, ou poder de repressão em mãos. Naquela época de mudança de sistema sócio econômico, ocorreu uma certa mudança ideológica, mesmo inexistindo o acesso à informação para a maioria das pessoas. A classe letrada crescia timidamente, pois a imprensa desenvolvida por Gutenberg de fato ajudou os humanistas e os protestantes, mas não alcançou a maioria da população européia que ainda era camponesa. Com uma nova classe social ganhando poder através do mercado (a burguesia), o feudalismo foi substituído pelo mercantilismo, ou seja, trocou-se um sistema social/econômico baseado em ideologias centradas em lealdade e autoridade, por um sistema de ideologia mais utilitária e acumuladora. Talvez nesta época nenhum dos sistemas se sobressaísse como melhor para civilização, pois havia algum equilíbrio de poder: Esta 3ª classe (de burgueses) passou a rivalizar com as duas anteriores (as aristocracias/ nobreza e o clero católico) em busca de poder. Os principais recursos para ascensão dos burgueses então podem ser resumidos superficialmente em dois: Alianças com o "novo" clero protestante e utilização de mão de obra mais barata do que a camponesa... Ou seja, a mão de obra escravizada. Porém, possivelmente por causa da vaga difusão da ética entre os filósofos europeus, as elites preferiram poupar povos de seu próprio continente... Todas as 3 classes poderosas, incluindo todas igrejas cristãs passaram a usufruir dos povos escravizados da América ou da África, em busca de mais riqueza e poder, e é claro, muitas outras rebeliões, guerras e alguns movimentos revolucionários ocorreram "cá e lá" nos séculos seguintes até a revolução industrial. Mas estes temas eu abordei em outro texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/01/para-quem-serve-e-o-que-e-capitalismo.html 

As igrejas perderam mais um pouco de sua influência com a revolução científica (e filosófica), que ocorreu entre 1640 e 1700, e as demais classes (nobreza e burguesia) assumem a proeminência do poder e das guerras espalhando-se da Europa para o resto do mundo. Embora houvesse um árduo e lento progresso ético ocorrendo nas civilizações, os grupos de indivíduos das elites, em sua busca incessante por riquezas, obviamente seguiram insensíveis aos preconceitos, opressões e violências, ou em alguns casos, até mesmo fomentaram movimentos desumanizadores.

O desenvolver da filosofia e as revoluções mudaram o sistema sócio econômico, substituindo o mercantilismo pelo liberalismo, porém as duas classes proeminentes da elite do ocidente, a grosso modo, basicamente só mudaram seus nomes para classe política (governantes, legisladores e juízes) e classe econômica (grandes empresários e suas corporações). Os interesses e conflitos destes grupos chegaram em seu ápice entre as duas guerras mundiais do início do século 20. Do fim deste período em diante se espalham as mídias de massa (rádio, tv, jornal etc), e muito dos interesses das elites multimilionárias e insaciáveis passaram a se aproveitar destes meios para tentar manipular as sociedades. 

A guerra fria entre o socialismo e o liberalismo é vencida pelo último, que para sobreviver às crises e continuar a predar a sociedade e o meio ambiente, ganha uma "nova roupagem" sob o nome de neo-liberalismo

De volta à atualidade 

Após os anos 2000 o acesso à internet cresceu de modo exponencial: de uma pequena parcela de classes médias e altas, inúmeras pessoas passaram a adquirir acesso à internet através de computadores e principalmente de celulares. Não são itens exatamente baratos, mas as massas adquirem se adaptando aos discursos manipuladores. Tais recursos poderiam ser usados para a difusão de informações como a consciência social e a humanização, mas também há dificuldades neste meio: Grandes empresas da internet dificultam a difusão de bons conteúdos priorizando os mais lucrativos. (já mencionei isto no início deste texto)

Ao longo de todo o período mencionado, nem as classes militares, supostamente responsáveis pela segurança dos cidadãos de suas nações, e nem as classes sociais mais baixas foram instruídas de modo a entender a realidade que os cercam. Não recebem uma educação de conscientização social, muito menos uma educação humanizadora ou empática. A primeira classe, a militar, não é instruída por motivos óbvios: ela é mantida por elites para obedecer sem questionar e para reprimir possíveis manifestações que questionam ou expõem injustiças. A segunda classe não é bem instruída sobre a sociedade/ o meio onde vivem, para que possa servir o mercado questionando menos, ou seja, para servir sob condições difíceis ou mesmo degradantes, seus líderes, os empresários multimilionários e suas corporações. 

Há chance de uma revolução conflitiva vencer tais injustiças e forças opressoras? Eu duvido. Me resta apostar na educação e, talvez, quem sabe, na divulgação de informações - exposição dos podres do sistema, sua ideologia precificadora (capitalista) e suas várias instituições, sejam públicas e principalmente privadas. A retórica capitalista é materialista, pois é objetificadora e tem que ser exposta, mesmo que não possamos ver frutos nesta geração nem nas próximas. 

Embora ainda seja uma ideologia (pressuposto) dominante nas ciências, o materialismo não contradiz o capitalismo, nem é eficaz para combatê-lo, pois a ideologia financeira é materialista/ niilista! O materialismo serve o capitalismo/ ao financismo. Ambos são ideologias niilistas e o niilismo é a pregação do nada. (Já expliquei em outros textos que o materialismo é niilista pelo fato de negar o conceito de mente, negar espiritualidades, subjetividades etc.)

Para se defender a saúde mental (psico-emocional) das pessoas, seus direitos e sua cultura (acesso às artes, espaços de valorização das culturas, liberdade de variadas práticas religiosas etc) é preciso ir bem além das ideologias materialistas/niilistas, pois é preciso difundir a importância da ética e de valores universais, como a empatia, a equidade e a solidariedade. A ética e os valores universais são idéias e portanto podem ser considerados parte de pressupostos idealistas, mas são ideias que precisam ser colocadas em prática (na vida material, na corporalidade) e mantidas no convívio dos seres vivos.

 

Breves observações sobre Cármides (Da “Moderação”)

O diálogo entre Cármides, Sócrates, Querefonte e Crítias, supostamente ocorreu em 432 a.C. pouco depois da batalha de Delos e tem como tema central a “sofrosine” (do grego, sophrosyne) que não tem uma tradução exata, aglomerando os significados de temperança, bom-senso, moderação e, possivelmente, auto conhecimento. Após ouvir uma série de elogios sobre a bela aparência de Cármides, Sócrates diz que seus colegas estariam descrevendo um homem sem igual se ele também tivesse uma boa alma (psiquê) de formação. Então Crítias, primo mais velho de Cármides, diz que este também tem tal beleza da psiquê e decide chamar o jovem para uma conversa com Sócrates. Porém Crítias também diz que Cármides reclamou de uma dor de cabeça há pouco tempo e pediu para que Sócrates fingisse ter um remédio para tal problema. Sócrates de início perturbado com a presença do belo Cármides, logo passa a explicar que aprendeu um tratamento baseado em uma determinada folha e um encantamento. Este encantamento teria sido-lhe ensinado por um médico de Zalmoxis* da região da Trácia. O médico dissera que não deve se tratar do corpo sem tratar da psiquê e que, assim, era necessário se fazer de surdo aos apelos da riqueza, da nobreza e da beleza pessoal. 

*De acordo com Platão, o rei dos trácios era um deus (onde neste início de séc 21, situam-se a Bulgária e a Romênia). Não fica claro se eles tinham um monarca que era considerado divinizado, ou se veneravam um deus como se fosse monarca de sua civilização. Juntando a breve descrição platônica com a de Heródoto, foi formada a leitura que os povos trácios (e talvez os getas e dácios) eram monoteístas, venerando Zalmoxis como o “Deus-rei”. Apesar disto, existem várias outras interpretações de que Zalmoxis era um deus da terra, dos céus ou sincrético com outra divindade, sendo algumas destas leituras puramente linguísticas, mas todas elas exteriores à cultura trácia, que não deixou legado escrito. 

Crítias interfere no diálogo entre Sócrates e Cármides, para afirmar que este último já é detentor da sophrosyne, o que faz Sócrates perguntar se Cármides pode confirmar tal relato. Cármides, sem graça, diz que negar seria acusar Crítias de mentiroso e assumir ter a sophrosyne, seria de mau gosto (um ato de arrogância). Sócrates diz que esta é uma boa resposta e propõe uma investigação sobre o que é a “sofrosine”. Cármides responde a Sócrates especulando que sophrosyne seja a tranquilidade. Sócrates explica que sendo a sophrosyne algo admirável, pois se trata de um aspecto da virtude, a tranquilidade teria que ser totalmente admirável também. Porém a tranquilidade também é calmaria, inércia e lentidão, coisas que para determinados assuntos não são adequadas, portanto a tranquilidade não é totalmente admirável, pois muitas vezes os seres humanos precisam de rapidez ou de brevidade. Cármides então tenta comparar a virtude da sofrosine com algo entre o pudor, a vergonha e a timidez, ao que Sócrates responde a partir de um verso da Odisseia, que tais coisas podem não ser boas para um homem necessitado. Cármides então fala que ouviu dizer que a sofrosine era “saber executar seus próprios negócios”. Sócrates imediatamente suspeita que Cármides tenha ouvido tal coisa de Crítias ou de alguém de seu círculo, ao que o primo do jovem nega de início. Sócrates então cita o exemplo do governo ideal, onde os governantes devem cuidar de assuntos que não são seus próprios negócios, indicando que “executar os próprios negócios” nada tem com a moderação, o autoconhecimento e a temperança (a sofrosine). Ele conclui que se Cármides não ouviu isso de um idiota, ele ouviu de alguém que fala por enigmas e questiona se o jovem sabe o significado de tal enigma. Cármides diz que ignora tal enigma e após sorrir e olhar brevemente para Crítias, diz que alguém mais deve saber o que significa tal frase. Critias se irrita e pergunta se Cármides realmente não sabe o que significa a frase, ao que Sócrates o interrompe e pede para que ele passe a investigar o que é sofrosine, junto a si. Crítias então tenta comparar o possuir da moderação/ autoconhecimento/ temperança com o “conhecer a si mesmo” (frase típica do templo de Apolo). Fazendo isto, ele tenta separar este “conhecimento” da moderação de todos os outros conhecimentos e artes, mas fracassa. O diálogo segue de modo pouco ou nada produtivo e termina sem conclusão. Nos termos de Critias, Sócrates não consegue desenvolver ou opta não desenvolver a resposta sobre o que é e para que serve a moderação/ autoconhecimento/ temperança (sophrosyne). 

No fim este diálogo não conclui sobre a moderação (sofrosyne), apesar que o tema é bem abordado em outros diálogos como Górgias e Filebo. Ao menos a obra "Cármides" (Da "Moderação") parece servir para mostrar que entre a elite grega, poucos indivíduos realmente tinham a “mente aberta” para serem conduzidos pela maiêutica de Sócrates. Crítias é claramente um indivíduo orgulhoso demais para “parir” a ideia da virtude ou de qualquer aspecto desta. Vários outros indivíduos abordados pelo filósofo também não conseguem conceber as ideias do bem, da virtude, da justiça, da coragem etc… 

 

 

Breves observações sobre Protágoras (Sofistas)

Platão escreve um texto tratando de um famoso sofista da "Grécia Clássica": Protágoras. 

De acordo com esta obra, Sócrates recebe o jovem Hipócrates (não o famoso “pai da medicina”), que está ansioso para aprender com o sofista recém chegado em Atenas, Protágoras. Sócrates então ajuda Hipócrates a identificar a ocupação como sofista de Protágoras e aconselha o jovem ter cuidado ao dispor-se a aprender qualquer coisa que venha afetar-lhe a alma. Afinal ensinar técnicas de persuasão e busca por dinheiro, como Protágoras e outros sofistas faziam, não torna uma pessoa melhor. 

Então ambos visitam Protágoras, quando Sócrates começa a questionar o anfitrião: 

…”Hipócrates mostra-se desejoso de estudar contigo e, portanto, declara que gostaria de saber qual o resultado que obterá de tuas aulas”... 

Protágoras responde que Hipócrates se tornará um “homem melhor” após cada dia de aula. 

Sócrates então reformula sua pergunta, dizendo se Hipócrates estudasse com um pintor se tornaria melhor na arte da pintura após cada dia de aula e se estudasse com um flautista se tornaria melhor na arte da música (tocar flauta) após cada dia de aula e questiona Protágoras: …”de que forma ele (Hipócrates) sairá de suas aulas sendo um homem melhor e no que fará progresso a cada dia que passar contigo (Protágoras)?” 

Protágoras então responde não ser como outros sofistas que ensinam matérias/ artes (do grego tekhnas). Ele alega ensinar seus alunos a desenvolverem bom discernimento e a administrarem negócios privados e públicos através do discurso e da ação. 

Sócrates então pergunta: Estarei acompanhando o que dizes? Parece estar se referindo a arte cívica e se propondo a fazer dos homens, bons cidadãos. Protágoras então confirma, ao que Sócrates responde: 

"Que bela arte (ciência) você se apropriou, Protágoras, se é que você a domina! Bem, você não vai ouvir nada diferente do que eu penso. Porque eu, Protágoras, não achava que fosse ensinável, e quando você diz isso agora, não sei como desconfiar. E porque não acho que isso seja objeto de ensino ou suscetível de previsão (ou transmissão) de alguns homens para outros, é justo que vos explique. Eu, dos atenienses, como também dos gregos, afirmo que eles são sábios. Pois vejo que, quando nos reunimos na assembléia, sempre que a cidade (estado) deve fazer algo em construções públicas, os construtores são enviados como consultores na construção, e quando se trata de navios, os construtores navais e assim por diante, o mesmo se aplicando ao que é considerado ensinável ​​e “aprendível”. E se alguém que eles não reconhecem como profissional tenta dar seus conselhos sobre o assunto, mesmo que seja muito bonito e rico e de família nobre, eles não o aceitam de jeito nenhum; mas eles o escarnecem e vaiam, até que aquele que tentou falar se afaste, sendo vaiado, ou os oficiais o retirem e o conduzam por ordem dos presidentes (das assembleias). 

Sobre coisas que eles acham que pertencem a um ofício técnico, eles se comportam assim. Mas quando se trata de algo que diz respeito ao governo da cidade e uma decisão deve ser tomada, sobre essas coisas ele aconselha, tomando a palavra, tanto carpinteiro quanto ferreiro, curtidor, comerciante, navegador, rico ou pobre, o nobre, ou o de origem obscura, e ninguém os repreende, como fizeram antes, que sem aprender em lugar nenhum e sem ter tido professor, então tentam dar seus conselhos. Obviamente, é porque eles acreditam que não é algo que pode ser aprendido. Não só parece que a comunidade cidadã assim pensa, mas, em particular, os mais sábios e melhores dos nossos cidadãos não são capazes de transmitir aos outros a excelência que possuem. Sócrates encerra dizendo, que pode acontecer de um filho (sucessor, discípulo etc) de uma pessoa cheia de virtudes (sábia, justa etc) ser corrompido, não herdando virtude alguma de seu educador."

Protágoras, então, alegando estar idoso (Sócrates então deveria ter entre 40 e 55 anos de idade), propõe duas formas de responder: com uma exposição regular e com um mito. A platéia pede para que ele responda como quiser e ele começa: 

O mito trata de como Epimetheus distribuiu as diversas características às formas de vida de inteligências não desenvolvidas (tamanho, força, agilidade, armas naturais etc). Após Epimetheus terminar o trabalho, seu irmão Prometheus encontrou a humanidade com alguma inteligência, mas “muito vulnerável" em relação às demais formas de vida. Prometheus então rouba a sabedoria das artes práticas de Athena e Hephaistos, juntamente com o fogo, e deu à humanidade, o que fez com estes se desenvolvessem na auto preservação. Porém a humanidade ficou sem a sabedoria para a arte cívica e vida em comunidade e após se agruparem, passaram a cometer injustiças. Zeus então enviou Hermes para instaurar senso de pudor e justiça entre os homens, mas não como o conhecimento dado por Prometheus, que ficava detido sob aqueles que o praticavam - Zeus ordenou que Hermes desse um quinhão de senso de justiça para cada indivíduo de toda a humanidade. Assim, Protágoras usa o mito para estruturar sua teoria relativista: todo ser humano se aconselha com um outro ser humano qualquer, esperando que todos tenham algum senso de justiça. O senso de justiça na terra fica inerente apenas ao ser humano. Ele segue dizendo que as pessoas punem (racionalmente) o malfeitor com a intenção de intimidar este, o que implica no caráter de aprendizado da virtude. 

Sócrates então, faz uma pausa observando seu interlocutor e aguardando uma continuidade, até que alega ter sido convencido por Protágoras exceto por uma pequena dificuldade. A seguir faz uma breve crítica aos oradores políticos que falam do mesmo tema abordado naquela reunião, dizendo que quando indagados por um ínfimo aspecto do assunto discorrido, “permanecem ressoando por muito tempo após receberem uma batida”, prolongando o tema até serem interrompidos ou impedidos. Então conclui seus pensamentos questionando Protágoras: …”há algo que me surpreendeu em seu discurso; preencha-me esse vazio em minha alma. Você disse que Zeus enviou a justiça e o senso moral aos homens, e então repetidas vezes em suas palavras você aludiu à justiça, ao bom senso, à misericórdia e todas essas coisas, como se juntas formassem uma certa unidade: a virtude. Explique-me, por favor, exatamente com raciocínio, se a virtude é uma certa unidade e se dela fazem parte a justiça, o bom senso e a piedade, ou estes que eu agora nomeava são todos nomes de algo idêntico que é único…” 

 Protágoras responde que a virtude é uma coisa única e que as qualidades são partes dela e depois diz que são como as partes de um rosto em relação ao rosto como um todo, explicando que um justo pode não ser sábio, um corajoso pode não ser justo etc. 

Sócrates então diz que tais qualidades são de mesma natureza, exemplificando que a justiça e a devoção (religiosidade) são ambas justas e ambas religiosas. 

Importante notar que a religião que Sócrates menciona é a do Deus justo e sábio que ele menciona em outros diálogos como indica os textos de Platão (seja Nous, a mente cósmica, "um" Zeus justo e piedoso ou Apolo). O Deus mencionado por Sócrates é bom, justo e sábio, se assemelhando ao que Jesus de Nazaré chama de Pai, portanto praticamente não tem semelhança alguma com os deuses caprichosos e violentos dos poemas gregos de Homero e Hesíodo, nem com as seitas meramente ritualísticas (os judeus fariseus, por exemplo) e nem com as igrejas institucionalizadas como ferramentas de poder (as igrejas cristãs após o século 4 por exemplo). 

Protágoras tenta se esquivar do assunto, mas sob certa pressão de Sócrates acaba dizendo que todas as coisas têm alguma semelhança entre si, porém não é correto afirmar que algo é semelhante a outra coisa, quando possuem somente alguma ligeira semelhança entre si. Sócrates "responde" dando exemplos sobre coisas diametralmente opostas entre si, (ou seja, que não podem se assemelhar uma à outra) as quais Protágoras concorda que existem. Ele segue demonstrando que todas as qualidades (sabedoria, sofrosyune* etc) são da mesma natureza, ou seja, são únicas em natureza, tendo um só oposto (ignorância, insensatez etc). Protágoras começa a ficar irritado e Sócrates cogita ir embora, então os membros da plateia insistem para que ambos continuem. Após decidirem como continuariam com o diálogo e exposições de pensamentos, Protágoras e Sócrates discutem um poema de Simônides, que aborda o ser bom e o vir a ser bom. 

*Importante notar que esta palavra grega (sofrosune ou sofrosine) não tem tradução exata para o português: Ela significa moderação, sensatez e autoconhecimento. 

Terminando a discussão sobre o poema, iniciada por Protágoras, Sócrates chega a dizer que o prazer pode ser bom, assim como a dor pode ser boa para algum fim, como correção de algo etc. O que torna as coisas ruins é a falta de moderação (falta de sofrosyune mais precisamente), ou seja, o que corrompe não é o prazer em si, mas sim o exagero (insensatez etc) que torna as coisas ruins. 

Sócrates refutou os argumentos de Protágoras, demonstrando como sua teoria relativista era contraditória, mas não ofereceu uma resposta à questão (sobre a virtude ser ensinável ou não) que ele mesmo trouxe no início do diálogo com o sofista, mesmo porque a resposta de tal questão talvez nem fosse o objetivo de Sócrates.

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...