Observações sobre Crátilo (Da Correção dos Nomes) Pt. 2

Após uma investigação da etimologia (origem, constituição...) de várias palavras, Hermógenes e Sócrates começam a especular como seria um alfabeto ideal e como seriam feitas as escolhas das letras para dar significado/ formar as palavras. Existiriam consoantes que representariam adequadamente o movimento, o repouso, a lisura, entre outras características, bem como vogais que representariam grandeza, continuidade, redondo etc. Desta forma o "nomeador" (às vezes traduzido como legislador), nomearia as coisas.


Hermógenes então pede para que Crátilo dê seu parecer e o mesmo mostra que discorda de Sócrates no ponto em que alguns legisladores produzem nomes melhores enquanto outros produzem piores.
 Para Crátilo só há nomes e não-nomes, pois o nome produzido de maneira pior, ou menos adequada, ao qual Sócrates se refere (no exemplo do personagem Hermógenes, que não é filho de Hermes) seria o nome de outra coisa (pessoa) com outra natureza. Em diálogo com Sócrates ele tenta explicar que não há nomes escolhidos que representam as coisas de maneira mais adequada ou menos adequada, mas há nomes que se referem aos fatos/ às verdades e nomes que são como meros ruídos sem sentido. 

Sócrates pergunta se é possível um pintor mostrar uma pintura a alguém que a perceberá por meio da visão, e então afirmar que tal arte é seu retrato por guardar alguma semelhança com ele. E pergunta também se não é possível alguém mostrar um nome a outrem que o perceberá por meio da audição, para então afirmar que esse é seu nome. Crátilo concorda que tais fatos são possíveis de ocorrerem. 
 Porém, se fosse possível apresentar uma "cópia" de Crátilo, com todas suas características incluindo a psiquê (alma e/ ou mente...), já não haveria só um Crátilo e uma mera representação ou imagem sua, e sim, dois Crátilos. Assim Sócrates demonstra o quão longe estão as imagens (e sons) de possuírem características idênticas ao original que imitam. 

Após esta demonstração de que os nomes não são as coisas em si, Crátilo tenta argumentar que os nomes são o conhecimento em si, porém Sócrates indica que é possível que um "nomeador" nomeie inadequadamente certas coisas, e que as gerações seguintes trabalhem a partir dos nomes imprecisos, propagando imprecisão e não conhecimento. O mesmo poderia ocorrer na geometria onde comete-se um pequeno erro no cálculo inicial e todos os cálculos subsequentes estariam coerentes entre si, mas errados por serem continuação de um 1º cálculo errado. 

 Crátilo então lembra que a maioria dos nomes (na língua grega clássica) que Sócrates mencionou no diálogo indicam movimento, ao que o filósofo responde que uma maioria errada não faz algo certo. Afinal Sócrates indicou anteriormente como a maioria dos estudiosos pensava que todas as coisas estão em movimento e por isso teriam nomeado muitas palavras desta maneira, ignorando ou deixando em segundo plano os conceitos de essência (ousian) e ser (ontos). 

 É notável que Platão, ao trabalhar os conceitos de virtude/ excelência e de valores universais, centraliza o conhecimento mais próximo à teoria de Parmênides (sobre "o uno"), como indica em sua obra homônima. Apesar disto, ele não descarta completamente as explicações de filósofos como Protágoras e Heráclito; apenas as colocam, ora como imprecisas, ora como limitadas ao estudo do sensorial que tem a finalidade a construção e/ ou preservação de corpos. Este tipo de estudo não busca necessariamente a verdade e pode ser facilmente separado da ética (valores universais).

 Não podendo se pautar pela maioria dos nomes, Crátilo então diz que acha que os nomes em sua origem, foram dados às coisas por um poder que transcende os humanos. Assim haveriam (uma maioria de) nomes corretos, que se referem à verdade.

Sócrates diz que então seria necessário se pautar pelas coisas que são (tá onta, de ontos), pois existindo esse fator citado por Crátilo, ainda dever-se-ia buscar a verdade da maneira mais legítima e natural na conexão entre as coisas que são. Afinal os nomes continuariam sendo meras representações (imagens, sons), só que agora dadas por daemons ou por deuses e recebidas por humanos de variadas nações/ etnias.

Sócrates então diz para supor que os criadores da maioria dos nomes, aqueles que acreditam que todas as coisas estão me movimento, "caíram" em uma espécie de vórtice e por isso arrastam aqueles que investigam a origem/ correção dos nomes com eles. 

O filósofo então diz que uma questão lhe toca em seus sonhos: é que o belo existe em si mesmo e que existe algum bem em si mesmo. Crátilo concorda, pois também pensa que há (o que faz sentido, já que ele não concordava com Hermógenes que achava que os nomes eram dados somente por gostos ou opiniões particulares, sendo sempre irrelevantes ou imprecisos).

De acordo com Sócrates então, se todas as coisas estivessem fluindo, como se escorressem continuamente, elas não poderiam ser aprendidas. Toda vez que alguém se aproximasse da verdade ou tentasse construir conhecimento, essa verdade se modificaria e não haveria um/ o conhecimento, pois tudo está se transformando o tempo todo.

Mais uma vez Platão parece se aproximar dos estudos da matemática e da física do início do século 20, porém com uma abordagem filosófica, ou seja, através do diálogo e da reflexão, ao invés do cálculo e das fórmulas matemáticas.

Assim como em Parmênides, o autor, demonstra um estudo dialético sobre o que é a unidade, onde acaba indicando a existência da quarta dimensão, aqui em Crátilo, o autor indica que há algo além do universo sensível (perceptível, sensorial). Ao estudar a etimologia das palavras de seu tempo (a "Grécia Clássica" dos séculos 4 aC e 3 aC), Platão notou como muitas palavras/ nomes tinham o significado de movimento. Esta percepção (de movimento) teria alguma relação com uma força ou princípio celeríssimo e sutilíssimo que preenche e atravessa o universo. Poderia isso ter alguma relação com a velocidade da luz? Afinal a teoria da relatividade de Einstein indica que o espaço-tempo é relativo e que só a velocidade da luz é absoluta. Ora, se o próprio espaço-tempo é relativo, ele pode ser relativo a algo além de si, indicando a existência de algo além do espaço-tempo, seja uma ou mais dimensões que não percebemos, ao menos, não sensorialmente. 

Entre os livros 5 e 7 da ""República", Platão mostra como as imagens bidimensionais (sombras e reflexos em superfícies) são menos reais do que a tridimensionalidade. Embora faça isso principalmente para demonstrar como era necessário o ser humano/ as civilizações construir(em) conhecimento e buscar(em) a ética, há uma comparação geométrica-matemática-filosófica entre dimensões. Esta comparação está em diálogo com seu estudo sobre a unidade em Parmênides: seguindo a  mesma lógica, é plausível que o autor entendesse que uma quarta dimensão, ou a realidade quadrimensional, fosse mais real do que a realidade tridimensional onde percebemos e agimos com nossos corpos. Sendo mais real, ela também seria mais perfeita, pois a realidade tridimensional seria meramente como as sombras ou como imagens refletidas em uma superfície ante a quadrimensionalidade ou "4ª dimensão". Essa realidade superior então seria mais psíquica como o autor parece demonstrar ao afirmar que a realidade cognoscível é superior à sensível (em "A República" por exemplo) e sendo superior seria mais bela, ou teria a beleza em si mesma (kalos).

Assim, na teoria de que tudo está em movimento (negando ou deixando de lado uma possível realidade superior) não havendo uma verdade, um bem ou beleza em si, não haveria conhecimento, pois tudo abandonaria sua "forma" (eidos, também denotando ideia). 

Sócrates conclui que deve-se investigar tal assunto com afinco, ao que Crátilo responde que crê na teoria de Heráclito por já ter estudado o assunto. Sócrates então, se despedindo dos interlocutores, sugere que Crátilo não desista de estudar tais questões pois ainda é jovem. Crátilo também diz para Sócrates não parar seus estudos sobre o tema.


... Natal

É véspera de natal: o último feriado do ano.
Há quem só descanse no feriado e há quem comemore para comer farturas e trocar presentes. 
Há quem vá encher a cara, ouvir música alta e/ ou se reunir com amigos ou família. 
Há os que não têm condições de celebrar...
Há religiosos rigorosos que não gostam da comelância e há os mais relaxados. 
Há ateus que festejam e há os que desprezam.
Há quem diga que natal é aquela data que se comemora a colheita antes do início do inverno, mas no hemisfério sul do mundo está começando o verão.
Há quem se lembre de um tal Papai Noel, uma versão mercantilizada e bem descaracterizada de São Nicolau, bispo que viveu na época do primeiro concílio de Nicéia por volta do século 3.
Há quem se lembre de Jesus. Mas se lembra do que de Jesus? De quais ou quantos ensinamentos?
Há quem diga que ele é Deus. Outros dizem que é o mais elevado espírito. Outros, o consideram um personagem histórico do século 1. E há quem acredite que ele nem existiu. 
Desde que passei por experiências espirituais muito fortes há alguns anos, eu passei a reler os evangelhos os quais apresentam a história e feitos de Jesus. Dos quatro propagados pelas igrejas até alguns outros.
A leitura só confirmou algo que eu já entendia como uma obviedade desde minha adolescência ou juventude: Fazer o bem faz bem. Não um bem individual, para uma ou outra pessoa, mas um bem universal que é realmente bom para toda e qualquer pessoa. Ignorando o que outros acham sobre o assunto, eu tive variadas dificuldades de viver isso... o bem. Seja por preguiça, por mesquinharias ou por outros motivos.
Porém depois do que eu chamo de experiências espirituais, esse "negócio" de fazer o bem ficou sério. Na verdade urgente. E ainda que o bem ao qual eu me refira seja universal, eu falo de uma importância individual aqui, pois raramente eu poderia ou conseguiria convencer os outros a fazerem o bem. 
Eu tive períodos egoístas em minha vida e não só em atitudes, mas também em mentalidade, pensamentos e sentimentos. Preciso compensar, mas não só isso, preciso viver a obviedade que Jesus ensinou: O bem é mais importante do que as preocupações mundanas.
Esse bem é essencialmente movido por amor como Jesus ensinou e esse amor não é só "gostar", é querer bem, é sentir... bom sentimento.
Muita gente não teve esse bom sentimento. Não teve amor durante maior parte de sua vida... Pessoas que não sentiram que alguém se importasse com elas.
Mais do que isso, quando falo em experiências espirituais, sinto mentes sem corpos: presenças, almas, enfim, espíritos, não importa o quanto digam que tais coisas não existam.
Não vou discutir existência aqui, pois isto faz parte da construção de conhecimento filosófica que anda bem desprezada hoje em dia.
Quando percebo tais espíritos, geralmente, mas não sempre, à noite e/ ou entre sonhos, sinto variados sentimentos, mas um dos mais comuns é discórdia. De certo modo tais experiências não diferem da minha realidade psicossocial: Eu me adapto mal à sociedade, seus costumes, seu mercado de trabalho etc. Me adapto mal ao sistema social e econômico que prioriza o ganho e acúmulo de dinheiro. Me adapto mal ao consumismo e à precificação de tudo. Me adapto mal à rotina de trabalhar pelo menos metade do tempo em que passo acordado.
Essa má adaptação não começou só depois de "minhas experiências espirituais" e sim há muito tempo, desde que terminei o ensino médio há mais de 20 anos.
As experiências espirituais só escancararam isso: O quão sem sentido é a rotina desse sistema social e econômico que começou a ser inventado no período das navegações das nações da Europa no século 16, foi consolidado com o liberalismo, o crescimento da monocultura e o crescimento dos bancos entre os séculos 17 e 18 e intensificado após a industrialização dos séculos 19 e 20. 
É claro muita gente acha que esse sistema que começou com uma ideologia mercantilista, e se tornou capitalista, é natural e sempre esteve aí, só que não é: Existem povos indígenas da Oceania, da África, da América, do Ártico e da Sibéria que não vivem dependendo dessas invenções dos endinheirados da Europa, porém tais povos vem sendo atacados de variadas maneiras há séculos e por isso se tornam cada vez mais raros. Existiram povos que viviam do escambo na China até a expansão socialista do século 20 naquela região... Enfim, citei esses fatores externos/ sociais só para mostrar que adaptar-se a um sistema de regras sociais e econômicas dominante não é necessariamente lógico nem bom.
Mas a questão aqui tem fatores psíquicos e espirituais meus e isso tem relação com que eu citei anteriormente. Além da discórdia que parece ter essa relação com fatores sociais, eu sinto a dor da falta de viver o amor. Não exatamente a falta de ser amado por que eu fui muito amado e sei que Deus ama a mim e a todas formas de vida. Mas a falta de amar e expressar o amor - o bom sentimento. Este amor me parece ser muito mais o amor que Jesus viveu do que esses "amores" um tanto materialistas e voláteis da "modernidade". Esse amor me parece mais urgente de ser manifesto para aqueles que tiveram pouco ou nada dele em suas vidas - pessoas mais carentes do amor que faz bem a todos.
Quando sinto esta falta de amar é uma dor horrível, pois é mais do que psicoemocional: é no mínimo um vazio existencial... Algo que indica o quanto estou me contradizendo, errando e de certo modo... pecando.
Este pecado não parece bem aquele descrito por religiosos conservadores: é algo ligado a um sentido de vida ou uma busca espiritual... 
O bom sentimento é tão importante quanto o sentido de vida e eles formam o que entendo por espiritualidade...
O amor de Jesus então é mais do que querer bem; é serenidade e esperança para todos e principalmente para os que mais precisam... e é sentido de vida.
Acho que se eu tentar descrever mais o que andei sentindo, este texto ficaria mais cheio de lamentações então o que devo fazer é desejar um feliz natal a quem ler isto aqui.

Feliz nascimento do amor. Feliz encontro com a serenidade e com a esperança... feliz encontro com um sentido de existir.

 

Observações sobre Crátilo (Da Correção dos Nomes) Pt. 1

 Esta obra de Platão pode ser considerada um dos primeiros estudos sobre etimologia e linguística. No diálogo apresentado nesta obra, Hermógenes e Crátilo discordam sobre a origem dos nomes e convidam Sócrates para dar seu parecer. Hermógenes começa o diálogo com Sócrates, explicando que Crátilo crê que haja uma causa natural para todos os nomes - um nome real para cada coisa. Porém Hermógenes diz que Crátilo não consegue explicar tal teoria de modo que lhe convença e que ele crê que os nomes são basicamente convenções, ou seja, invenções humanas pouco propositadas. 
 Sócrates pergunta a Hermogénes se ele ouviu a teoria de Protágoras, de que “o homem é a medida de todas as coisas”. Hermógenes responde afirmativamente, mas não sabe se leva tal teoria totalmente a sério. Sócrates então conduz o diálogo, fazendo Hermógenes comprovar como tal teoria é exagerada e imprecisa, assim como a teoria de Eutidemo de que “todas as coisas dizem respeito igualmente à todos indivíduos simultaneamente e perpetuamente”. Hermógenes então entende que há coisas que não são e coisas que são. Todas coisas têm alguma “natureza que é” e também tem uma ação correspondente, portanto “toda ação também é”. Esta explicação tipicamente filosófica pode parecer difícil ou até mesmo determinista, mas se apoia nos argumentos apresentados por Sócrates no diálogo: Se um carpinteiro precisa fazer uma peça que serve para costura/ produção têxtil porque tal peça (chamada lançadeira) quebrou, então ele conseguirá fazer uma nova lançadeira a partir da ideia/ forma que tem dela em mente, não precisando de uma observação sensorial da peça quebrada. Isto se dá pelo processo da psiquê* que tem a “Eidos” (que significa simultaneamente “ideia” e “forma”) da peça memorizada/ aprendida. 

 * Psiquê: a palavra que abrange os significados de alma e mente nos textos de Platão. 

 É possível se nomear erradamente, mas também é possível nomear as coisas corretamente. A nomeação das coisas tem a função de informar, comunicar um significado entre as pessoas, assim como outras técnicas (conhecimentos ou artes) têm suas respectivas funções. Além disto, a nomeação das coisas (sejam objetos, pessoas etc) também têm uma ferramenta como as demais artes. No caso da nomeação, sua ferramenta são as leis (“nomos”), num sentido não exclusivamente jurídico, mas sim genérico, mais amplo, referente à criação de regras. Assim, nomear estaria vinculado ao ato de criar regras (no caso, linguísticas, de comunicação). Existe então uma forma ideal para que cada ferramenta cumpra sua finalidade, sejam tais ferramentas produzidas em um determinado tipo de madeira, de metal ou de qualquer outro material. Sócrates explica que o mesmo vale para nomes: independentemente se os nomes foram criados a partir de sílabas diferentes, ou se foram empregados de maneira errônea, existem nomes ideias, ou adequados, para cada tipo de coisa, independentemente se for na língua helênica (grega) ou em um idioma “bárbaro”*. 

 *(quaisquer nações não urbanizadas na opinião dos gregos da época de Sócrates e de Platão). 

 Na nomeação, ou na “correção de nomes”, como em toda arte/ conhecimento então, deve haver um diálogo entre quem produz a ferramenta e quem a utiliza. Desta forma Crátilo teria alguma razão, pois para se incorporar a forma ideal (Eidos) em cada nome, é preciso que haja comunicação entre o indivíduo que dá os nomes (“nomothetoy”) e o que utiliza os nomes: o dialético, ou dialogador. Hermógenes, apesar de concordar com Sócrates até então, diz não saber mais o que responder-lhe, pois acha difícil mudar de opinião repentinamente. 
 Os interlocutores traçam uma investigação filosófica sobre o tema então. Sócrates diz que os nomes das pessoas e de heróis tendem a serem enganosos, pois cita como exemplo disto, o fato deles serem escolhidos devido a um ancestral/ uma linhagem familiar e devido a serem escolhidos como uma expressão de orações (Teófilo etc). O ideal é buscar o nome dado às coisas eternas, como por exemplo, aos deuses (theoi), pois seriam escolhidos com mais cuidado; O filósofo então, seguindo um estudo da língua grega e suas possíveis origens, explica que a palavra “deuses” (theoi) tem relação com o termo “correr” (thein), pois os antigos veneravam os astros como se fossem deuses, e os viam “correr” pelos céus em seus movimentos cíclicos (o Sol, a Lua etc).
 Hermógenes então indaga sobre a palavra “daimons” (espíritos, ou “gênios”, às vezes traduzido como “semi-deuses”). Para responder a questão, Sócrates cita o trecho de um poema de Hesíodo e indica que “daemon” parece estar ligado à lendária raça de ouro - guardiões que afastam o mal dos seres humanos. Esta raça era tida como os “primeiros seres humanos” de um período muito antigo nos mitos gregos.
 Já a palavra heróis poderia vir de “Eros” (amor sensual) porque tais personagens supostamente nasceram de deuses que se apaixonaram por humanos. Porém a palavra herói também poderia vir da palavra da língua ática, “erein”, que quer dizer falar, pois os heróis da antiga Ática eram oradores, como os sofistas, explica Sócrates. 
 Sócrates então diz seguir inspirado pelo encontro com Eutífron (possivelmente o personagem citado em outro diálogo) e investiga as origens da palavra “antropos” (homem). Ele entende que a palavra surgiu para fazer distinção entre os humanos e os demais animais, pois sua etimologia viria de algo como “aquele que examina e considera o que viu” (seu sufixo viria da palavra “opope”).
 Atendendo o pedido de Hermógenes para investigar as palavras “alma” (psiquê) e “corpo” (soma), Sócrates diz que a primeira deve vir de “revitalizado” (anapsykhon), mas em seguida opta por dar mais uma explicação sobre a origem desta palavra: Ele relembra que Anaxágoras (filósofo naturalista grego, ou, “pré-socrático”) teorizou que é a inteligência que move todas as coisas (Nous, a inteligência, ou mente, cósmica). Daí, citando que é a alma (psiquê) que veicula e sustenta (okhei kai ekhei) a natureza (physin), a palavra poderia vir de uma alteração ou corrupção da união destas (physin + ekhei = psyche);

 É válido notar que Pitágoras e/ ou os filósofos pitagóricos propagaram a teoria da metempsicose, a transmigração da alma, antes mesmo de Anaxágoras, portanto era uma forma (anterior ao século 5 a.C) de explicar e entender que a psiquê (alma) anima o corpo. Os pitagóricos não seguiam a cosmogonia (“mitologia”) de Hesíodo e Homero que eram as mais populares da Grécia antiga - o pitagorismo tem semelhanças com teorias do orfismo e traça sua origem nesse movimento “religioso filosófico” que certamente é mais antigo que os famosos poetas e suas supostas obras. É possível então que a ideia da alma animar o corpo seja mais antiga do que os filósofos “pré socráticos”, já que o orfismo pode ser tão ou mais antigo do que os poemas de Homero e Hesíodo (cerca de 800 aC - 650 aC).

 As possíveis etimologias ou origens da palavra “soma” (corpo) seriam “semá” (túmulo, indicando onde a alma fica sepultada), “sema” (sinal, pois o corpo seria um sinal da alma, representando seu significado) ou, de acordo com os poetas órficos, diz Sócrates, poderia ser “sóizetai” (preservada com segurança, ou seja, o local onde a alma deve cumprir sua pena).
 Os interlocutores seguem investigando a etimologia dos (nomes dos) deuses; 
Foi explicado sobre a etimologia de "Zeus" que teria uma origem nos nomes Zena e Dia. O nome desta divindade então significaria algo relacionado à vida (zís), pois Zeus seria o deus de toda a vida, de acordo com o filósofo. Conforme Sócrates, Zeus seria filho de um grande intelecto e assim ele é (Zeus ou seu progenitor) koron, que quer dizer pureza. Kronos, considerado pais de Zeus na cosmogonia principal dos mitos da Grécia antiga/ clássica, por sua vez, seria o filho de Urano ("deus dos céus"). Sócrates, porém, insinua que o nome correto é Urania (Oyrania, ou Ourania), o que dá a entender que seria uma entidade feminina.
Retomando a investigação dos nomes dos deuses gregos, Sócrates explica que Héstia (deusa do lar, do fogo doméstico etc) tem seu nome oriundo da antiga palavra "essia" que significava essência/ ser (oysia, ousia, na língua grega do tempo de Platão). Isto teria relação, explica Sócrates, com o fato de que tudo que participa do ser, é (estin). Além disto, estaria conectado com o fato dos antigos fazerem seus sacrifícios primeiramente à Héstia, para só depois fazer aos outros deuses.

Esta parece mais uma prova da relevância de Héstia, estando de acordo com que Platão cita nas obras Eutífron e Fedro. Teria isso relação com o fato do "culto" à Héstia ser feito nas casas, diante as lareiras, sem a necessidade de grandes templos? Seria por esses motivos, Héstia uma deusa literalmente popular? Teria relação com Vesta (deusa equivalente à Héstia), cultuada pelos romanos?

Sócrates então aborda a esposa de Kronos, a divindade Rhea: A origem de seu nome viria de corrente (reymáton em grego), pois está relacionada às velhas palavras de sabedoria que comparam o universo com a correnteza de um rio. Tal fato também relaciona-se tanto aos mitos de deuses primordiais marinhos/ aquáticos (Oceanus e Tétis, de acordo com o semi lendário Orfeu, ou com o orfismo) como aos ensinamentos de Heráclito que explicava que tudo está em movimento (e sua emblemática frase dizendo que "ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes").

 A seguir eles discutem sobre os nomes Poseidon e Hades. O primeiro estaria associado ao fato do mar atrapalhar o movimento do caminhar, ou seja atrapalhar o movimento dos pés, como se os amarrasse (posídesmos); Porém Sócrates entende que o nome desta divindade também pode ter vindo de Pollieídotos (o que conhece muitas coisas) ou de hoseion (o agitador, ou seja, que causa maremotos/ terremotos).

Sócrates acredita que o nome Hades, "deus da residência" das almas dos mortos, possa ter vindo da palavra Aides (Invisível) e que o nome Plutão viria do fato dele dar a riqueza (ploutou ou ploytoy). Porém, a seguir, o filósofo deduz outra origem ao nome desta divindade: Ele diz que Hades prende as almas com um dos mais fortes grilhões, que é o desejo de se associar com alguém que nos faria melhores. Isso porque Hades só permite que se associem a ele, aquelas almas mais puras que se livrarem de todos os males e desejos corporais. Ele assim o faz porque sabe que livre de seus corpos, as almas podem ser presas pelo desejo da virtude ou da excelência (ética etc). Por isso seu nome deve vir de "eidénai", aquele que conhece todas as coisas boas (allá poly mallon apó tou panta ta kalá eidénai).

Após falar sobre o nome de mais alguns deuses, os interlocutores começam a falar sobre a etimologia das virtudes; Sócrates diz que as virtudes mencionadas por Hermógenes foram nomeadas sendo tratadas como coisas se movendo, fluindo e/ou vindo a ser: Phronesis (sabedoria), por exemplo, viria das palavras "compreensão" (noesis) do "fluxo" (phoras). Entendimento (gnóme) viria de exame e observação da geração (gonés sképsin kai nómesin) enquanto compreensão (noésis) seria desejo (hésis) pelo novo (toy neoy). Sócrates explica que o desejo da alma pelo "vir a ser" é expresso por aquele que atribuiu o nome "neohésis" (noesis), que antigamente, numa época anterior a Sócrates, era escrito com 2 épsilons (neoeesis). Continuando, Sócrates diz que autocontrole/ moderação (sophrosyne) é salvação (soter) da "sabedoria" (phronésis) e que "conhecimento" (episteme), denota que a alma tem algum valor quando acompanha (epoménes) as coisas em seu movimento, sem precedê-las e sem ficar para trás delas.

Interessante como a moderação é um fator para compreensão e sabedoria e como o conhecimento não deve preceder nem ser ultrapassado pelas coisas; Assim, pré suposições não fazem parte do conhecimento, bem como fazer as coisas sem estudá-las também não deve ser um conhecimento.

Ainda nesta categoria das etimologias que consideram as coisas em movimento, Sócrates comenta sobre as palavras "entendimento" (synesis), "cômputo" (syllogismos), "entende" (synienai), "sabedoria" (sophia), "admirável" (agáston) e "o bom" (t agathon). O filósofo então diz que justiça (dikaiosyne) refere-se ao conhecimento (synesis) do justo (toy dikaíoy). 

Sobre o justo (dikayon) em si, Sócrates diz que é mais difícil descobrir sua origem e começa uma hipótese/ explicação: (...) "os que pensam que o universo está em movimento creem que sua maior parte tem uma tal natureza que não passa de um receptáculo, e que existe algo que atravessa tudo isso, que é pelo meio de que todas as coisas criadas vêm a ser. E esse algo deve ser celeríssimo e sutilíssimo, porquanto não poderia atravessar o universo a menos que fosse muito sutil, de sorte que nada poderia impedir seu ingresso, e é necessariamente muito célere, de modo que todas as demais coisas estão relativamente em repouso"...

Esta curiosa teoria do universo diz que sua maior parte é um receptáculo, ou seja, que recebe algo, seja uma energia, força etc. Em seguida mostra que algo super célere e sutil atravessa todo ele, logo esse algo que atravessa é maior ou mais expansivo que o universo "receptáculo", indo além deste. Este algo que atravessa deveria ser praticamente imperceptível e/ ou indetectável (pois é sutilíssimo) e sua velocidade é tão alta que relativamente todas as coisas do universo estão paradas, ou seja, em repouso relativo a essa coisa super célere e ultra penetrante (nada pode impedir seu ingresso ou sua passagem no/ pelo universo receptáculo).

... "Desde, portanto, que ele governa e "atravessa" (diaión) todas outras coisas, é designado corretamente por meio do nome "dikaion", o som do kappa (k) sendo acrescido por uma mera questão de eufonia (soar bem). Até este ponto, como eu disse há pouco, há consenso entre muitas pessoas sobre o justo (dikaion). E quanto a mim, Hermógenes, conservando o máximo de seriedade em relação a isso, persisti com minhas indagações e recebi ensinamentos em segredo de que isso é o justo, ou a causa - e alguém a mim disse que foi por esta razão corretamente chamado Zeus (Día)." Sócrates então diz que continuou perguntando após esse ensinamento e recebeu opiniões divergentes [de que esse Zeus ("Día") seria o Sol, o calor ou a inteligência (Nous)], por isso permaneceu perplexo.

Interessante notar que Dia tem alguma proximidade com outros nomes através de diferentes pronúncias: se pronunciarmos o "dê" (d) com som de "dj", teremos Dja, que também pode ser falado "Djia" e daí poderia ir sendo alterado para Já e Ya ou até mesmo para Ea. Este último o nome de um deus mesopotâmico. "Ja" é a inicial de Japetus que também pode ser pronunciado Iapetus, o titã criador da raça humana, pai de personagens famosos da mitologia grega: Atlas, Prometeus e Epimeteus. A etimologia do nome Japetus é incerta, alguns propuseram que o nome possa vir de uma palavra grega equivalente a "perfurador", mas outros acham que o nome não tem origem grega. Poderia Japetus/ Iapetus vir de "Ea Ptah", a junção do nome de um deus criador mesopotâmico com um egípcio? Ou poderia ter alguma relação entre os nomes Japetus e Júpiter, deus romano equivalente a Zeus? Além destas possibilidades, Ya ou Ia é a inicial de Yhwh, ou seja, Javé. Por fim, se retornarmos o "Z" de Zeus ao som de Dj, teríamos Djeus, um nome bem próximo de Deus. 

A história das religiões (e dos "nomes divinos") é praticamente não-rastreável: ela se inicia muito antes da escrita em práticas espirituais primitivas como o "xamanismo". Ao longo dos milênios, podem ter ocorrido variadas adaptações nomenclaturais, reinterpretações de nomes, além de sincretismos, separações de práticas religiosas etc.

Sócrates então relaciona a palavra "coragem" (andreia), não diretamente com "homem" (andros), mas com "anreia", ou seja, contra fluxo. A coragem então seria ir contra o fluxo que é contrário ao justo, pois justo é o fluxo relacionado a Dia (Zeus), criador da vida, que atravessa/ preenche todo o universo. Em seguida, o filósofo relaciona "macho" e "homem" (arren e anèr) com "fluxo ascendente" (anoi roêi) e "mulher" (gynè) com "nascimento" (goné) e com "florescer", no sentido de dar vida.

Ao explicar a palavra "arte" (tekhne), Sócrates diz que sua origem deve ser "ter inteligência" (ekhonoe) e explica que muitos nomes foram "sepultados" por acréscimos ou subtrações de letras, seja por uma priorização da vocalização/ pronúncia/ eufonia, ou seja por ação do tempo (desuso ou esquecimento de palavras com o passar dos séculos).

Investigando a palavra "mal" como sinônimo de "vício" (kakía), Sócrates diz que todo o mal ou vício trata-se de um mau movimento da psiquê em relação a teoria do fluxo que adentra/ atravessa o universo. "Covardia" (deilia) também seria um mau movimento e sua "etimologia grega" viria de "demasiado" (lian) e "grilhão" (desmos). Outro mal do mesmo tipo seria a perplexidade/ dificuldade (aporia) e por isso, a virtude/ excelência (aretê ou arete) seria contrário a esse mal - uma "facilidade de movimento" (eyporían ou euporían). Isto porque a boa (agathês) psiquê é sempre livre e "sempre flui" (aei réon). Deste último termo teria surgido a palavra "aretê".

Sócrates responde a Hermógenes que a palavra aiskhron (vil/ feio/ asqueroso) vem de aei iskhonti ton royn (sempre tolhe o fluxo), isto porque algo vil/ feio/ asqueroso é contrário ao fluxo que preenche e atravessa o universo, pois este é justo e divino (de Dia, Zeus). A palavra que designa o contrário de aiskhron, kalos (bom, belo, nobre) viria do termo "nomear" (kalésan), pois o que dá os nomes verdadeiros às coisas é belo, pois é produto da inteligência, seja humana ou divina. A palavra usada pelo filósofo para definir inteligência aqui é phronésis (traduzida como sabedoria anteriormente).

Após investigarem mais alguns nomes, Hermógenes sugere a busca pela origem da palavra lysiteloyn, que parecia ser empregada como sinônimo de "proveitoso". Sócrates diz que tal palavra originalmente não foi designada como na linguagem dos comerciantes, mas sim referente aquele elemento mais rápido do que todas coisas que são (certamente relacionado ao "algo" justo celeríssimo e sutilíssimo que preenche e atravessa o universo etc).

O tradutor Edson Bini explica que o autor se refere a "agathon" (bom) neste trecho, ao invés do "dikaion" (justo/ justiça) anteriormente citado no texto. O texto trata desta teoria incomum ou complexa de Platão e o original grego (de acordo com o site https://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plat.+Crat.+417&fromdoc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0171), parece citar a palavra psyquê neste trecho, a qual não encontrei na tradução.

O diálogo continua com Sócrates dizendo que o "algo" (justo ou bom) celeríssimo libera (a psiquê, presumo) de um cessar do movimento ou de um "fim" (telos). Esta "liberação" (lyei) rumo ao incessante/ ao imortal, seria a origem e verdadeiro significado da palavra lysiteloyn ("proveitoso").

Após relacionar a palavra "prejudicial" (blaberon) com aquilo que deseja "prender" (blapton) ou "agrilhoar" (háptein) o fluxo (da teoria já mencionada), Sócrates diz que esta palavra foi simplificada com o passar do tempo, enquanto outras como "zemíodes" (danoso) foram pouco modificadas, mas tiveram seu significado invertido. O filósofo explica que todas as palavras relacionadas aos aspectos bons (déon ou diion) abordadas no diálogo, lidam com o princípio da ordem e movimento (dikaion que é justiça, Dia que é Zeus etc) que sempre foi objeto de aprovação, enquanto as palavras que são contrárias a essas, lidam com o constrangimento e agrilhoamento deste princípio.

Sócrates então faz uma breve relação entre as palavras "epithymias" (traduzido geralmente como "desejo") e "thymous" (traduzido como iraindignação etc). Apesar da origem da palavra ser utilizada como indignaçãocólera e sinônimos, como expliquei nas "observações sobre A República", a palavra thymous e todas suas correlacionadas parecem se referir a sentimento ou emoções. Afinal Platão sugere que o "thymous" é o elemento intermediário da alma que deve se unir com o superior, da reflexão, razão, busca pela sabedoria (etc) e ninguém raciocina ou faz reflexões em fúria ou tomado por raiva. Ela deveria ser empregada com esse significado de sentimento explosivo ou destrutivo devido a fatores históricos e culturais da Grécia antiga (séculos 9 aC até 3 aC), típicos de uma sociedade patriarcal e notoriamente machista para os padrões "euro-americanos" deste início de século 21.

Após investigarem brevemente uma série de palavras, Sócrates explica que "doxa" (opinião) viria das palavras "dioxei" (busca) e "toxoy" (arco). A relação com a palavra "arco" indicaria que opinar é uma tentativa, um disparo sem a reflexão intelectual e sem previdência.

Sócrates então explica que "voluntário" (hekoyson) expressa o que não resiste, mas sim, submete-se ao movimento (princípio da ordem...), enquanto "necessidade" (anágken) refere-se ao compulsório e "resistente" (antítipon) ao movimento. Por isso "anagkaîon" encontra-se em analogia ao caminhar por um desfiladeiro.

 Respondendo a Hermógenes sobre as palavras mais nobres, Sócrates diz que "ónoma" (nome) vem de "onomastón" abreviado de "òn hoy másma estin" (ser do qual é a investigação). "Alétheian" (verdade) viria do movimento divino já mencionado, pois é uma "theía ále" (perambulação divina). Tò òn (ser, relacionado à ontos) significaria iòn (ir) sem a letra inicial "iota" (i), similar à oysia (essência) - do mesmo modo "não ser" (oyk on) viria de "não ir" (oyk ion). A seguir ele pergunta a Hermógenes se o momento ideal para se parar a investigação da origem dos nomes não seria quando se chega em uma palavra que não é mais composta de outras. Hermógenes concorda com o filósofo.


A partir daí eles começam a especular como seria um alfabeto ideal e como seriam feitas as escolhas das letras para nomear as coisas formando as palavras. Crátilo então tentará defender que os nomes correspondem à(s) verdade(s) e Sócrates irá contra argumentar mostrando como eles (os nomes) são representações mais ou menos precisas, praticamente refutando o jovem colega de Hermógenes.


Breves Observações sobre "Eutífron" (ou, Da Piedade)

Eutífron (Da Piedade, ou, Da Religiosidade) 

 
Sócrates, após ser processado por Meleto, encontra o adivinho (um tipo de sacerdote ou "profeta" da cultura helênica clássica) chamado Eutífron e inicia um diálogo com este. 
Eutífron pergunta a Sócrates, porque Meleto o processou. Sócrates responde que não foi por uma causa banal, pois o jovem Meleto supõe saber como os jovens são corrompidos e quem são os seus corruptores. Assim o jovem se dirigiu ao estado para o acusar de corruptor. 
Sócrates diz que assim como um bom lavrador cuida primeiro de suas plantas mais jovens, Meleto deve estar militando pelos mais jovens para que sejam melhores possíveis. Sócrates continua já com evidente ironia, afirmando que, depois de militar pelos mais jovens, Meleto deve militar pelos mais velhos para ser o culpado por produzir inumeráveis bens (ou bençãos) para o estado.
Eutífron então mostra alguma admiração por Sócrates, respondendo que Meleto, ao fazer tal acusação contra o filósofo, está atacando a cidade/ estado em sua própria "héstia"*.
*Edson Bini traduz a palavra grega héstia como "lar", enquanto André Malta traduz como "lareira". Entende-se que era comum na Grécia antiga e/ou clássica, as casas terem um altar e santuário onde o fogo era alimentado para o culto de divindades domésticas. Héstia deusa do lar e do fogo sagrado que representava estabilidade era uma das mais conhecidas (ou a mais conhecida) destas divindades. Platão parece ressaltar a importância desta divindade em suas obras Crátilo, e mais brevemente em Fedro.
Sócrates então pergunta o que Eutífron está  fazendo e este responde que está movendo um processo contra seu próprio pai, devido a um (suposto) crime que este cometera. 
O tema do diálogo então gira em torno sobre o que é ser pio (piedoso) ou ímpio (impiedoso) e sobre o que é ser religioso ou irreligioso. Estes termos são alternados ao longo da obra, indicando uma equivalência ou semelhança entre eles. Assim a palavra piedade (eysebes) poderia ser um "sinônimo" de religiosidade (hosíoy) enquanto impiedade (asebes) seria "sinônimo" de irreligiosidade (anosíoy).
No diálogo, Sócrates diz que o piedoso é sempre idêntico em sua ação, mas o impiedoso não, pois é contrário ao piedoso. (há muitas maneiras de atacar, julgar, punir etc). Eutífron concorda com o filósofo e adiciona: Piedoso é processar quem age mal, pois conforme a mitologia grega, Cronos puniu seu pai Urano por maltratar Gaia e impedir que os titãs vissem o Sol e Zeus puniu Cronos por ter devorado seus próprios filhos. Por isso, Eutífron vai processar o seu próprio pai que teria (supostamente) sido responsável pela morte de um servo. 
 Sócrates diz que em toda discórdia sobre temas perceptíveis pelos nossos sentidos (usa os exemplos da quantidade de itens e da altura e peso de um corpo), é possível recorrer a uma análise/ medição para se chegar a concórdia. E completa dizendo que não é possível usar tal resolução de medir/ analisar mecanicamente, quando a discórdia é sobre o bem e o mau, o belo e o feio e o justo e o injusto. Eutífron concorda e Sócrates completa dizendo que neste caso, a discórdia, seja entre deuses ou entre humanos, se dá sobre uma mesma coisa (um mesmo tema, um único assunto) e que por isso, piedoso e ímpio seriam iguais entre si. Os deuses citados por Eutífron estariam em conflito porque um achava suas ações justas, o outro, considerava-as injustas. 
 Eutífron tenta explicar que (todos) os deuses não tolerariam uma pessoa que matou injustamente. Então Sócrates pergunta a Eutífron se ele já ouviu alguém discutindo se uma pessoa que matou injustamente deve ser punida ou não. Ele explica que, ao invés disso, as pessoas simplesmente negam que agiram mal e afirmam que não devem ser punidas, convencendo Eutífron a concordar com seu argumento. 
 Sócrates propõe então corrigir a ideia de que deuses discordam entre si, e que todos eles devem concordar que um ato ímpio/ injusto é detestável e deve ser punido (como citado em “A República”).
 Eutífron então completa: Piedoso é aquilo que todos os deuses apreciam e o contrário, o ímpio, é o que todos os deuses detestam. 
 Sócrates discorre longamente para separar o piedoso do apreciável, até que Eutífron entenda (ou alegue entender). Afinal nem tudo que é apreciável, é piedoso. 
 Sócrates continua, dizendo que a piedade é parte da justiça, mas não o contrário e pede para Eutífron dar seu parecer sobre que coisas são piedosas (e religiosas, atualmente espirituais). Eutífron separa os temas trazidos por Sócrates, dizendo que a piedade (religiosa) é o cuidado com os deuses enquanto a justiça (ou a piedade justa) é o cuidado com os homens. Sócrates fica insatisfeito e pede para Eutífron explicar que “cuidado” é esse. 
 Quando Eutífron tenta explicar que o cuidado (da piedade religiosa) é servir os deuses, Sócrates indaga-o. O filósofo relaciona o ato de servir, ao serviço: Qual é o serviço de cada pessoa? O serviço determina para que aquela pessoa “serve” na sociedade, ou seja, sua função e utilidade. 
 Para os médicos, servir é cuidar da saúde das pessoas; 
 Para o arquiteto, servir é construir casas, estabelecimentos e afins; 
 Para o construtor naval, servir é construir embarcações etc. 
 Quando a pessoa realiza seu serviço, ela efetua um desses feitos capitais (principais, centrados numa função/ objetivo). Sócrates pergunta então á Eutífron, qual feito capital é efetuado ao se servir os deuses? 
 Eutífron com dificuldade em responder, se esquiva da explicação de Sócrates sobre servir, e diz que servir aos deuses é orar e realizar sacrifícios. Isto também seria gratidão aos deuses. 
 Sócrates diz que na oração os humanos pedem aos deuses e nos sacrifícios eles dão aos deuses. Sendo assim, como toda troca ideal, pedimos o que precisamos e damos o que os outros (no caso, os deuses) precisam. Mas como os deuses são superiores aos humanos, eles não precisam de nada, então Eutífron diz que os deuses não obtêm o que precisam nesta troca, apenas recebem agrados. 
 Sócrates diz que ele está se contradizendo, pois Eutífron havia concordado que agradável e piedoso eram coisas diferentes. Eutífron então se retira, abandonando o diálogo… 
 Embora abordado timidamente no diálogo, a justiça é explicada como algo superior por Sócrates: Ela excede a lei dos homens, sendo uma lei da natureza e uma lei divina. A piedade seria uma parte desta lei: o ato de perdoar faz parte da lei divina e portanto deveria fazer parte da lei humana. Piedade é um ato religioso (espiritual, e não exclusivo de uma ou mais religiões), assim como a justiça que transcende a piedade e a lei dos homens.

 

Sobre uma Educação pautada na vivência e na relação com o Ambiente

Escrevo este humilde texto a pedido da jornalista, educadora e escritora, Dora Incontri, após eu ter observado alguma semelhança entre as "ideias e práticas pedagógicas" de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918) e a construção de conhecimento dos povos indígenas do Brasil. Tentarei demonstrar algumas destas semelhanças à seguir: 

Barsanulfo, professor, jornalista e político mineiro, fundou o colégio Allan Kardec e ministrou aulas utilizando práticas pedagógicas centradas nos alunos, estimulando nestes, a liberdade e a vontade de conhecer. Desta prática, as aulas passeio marcaram memória dos estudantes do colégio, pois segundo os próprios alunos, as crianças adoravam sair da escola para passear e aprender. Entre os indivíduos que estudaram no colégio, Novelino e Germano, contam que Eurípedes considerava as aulas passeio fundamentais ao processo de ensino aprendizagem, pois eram oportunidades de conhecimento, curiosidade, socialização, observação, conversas e debates. 

 Além da utilização do meio ambiente e da cidade, no caso, o local onde se vive, para educar os alunos, a abolição dos castigos e a consideração da possível realidade espiritual, são alguns elementos de naturalidade no ensino que remetem à um estilo de vida indígena, claro que com suas devidas diferenças. O sistema educacional de Barsanulfo mostrou seu diálogo com a educação e cultura européia por suas devidas razões, mas também rompeu significantemente com o modelo dominante de sua época que era rigidamente disciplinar com enfoque na formação para a sociedade dominada pelo sistema sócio econômico liberal que estava começando a se industrializar. 

Os indígenas em seu contato milenar com a natureza desenvolveram não só um modo de vida livre das pressões psicológicas típicas dos sistemas sócio econômicos modernos predominantemente europeus e estadunidenses, mas também construíram conhecimento com base na observação, experiência e vivência. Artigos acadêmicos indicam que os regimes tradicionais de conhecimento indígenas orientam modos de vida amplamente e minuciosamente conectados com as dinâmicas ambientais. Esta conexão é enfatizada pelo princípio de interdependência arraigado nos saberes e práticas que envolvem as relações entre seres humanos, ambientes e seres não humanos. Esse tipo de conexão com o ambiente propiciou e propicia níveis de percepção e de reflexão muito refinados sobre processos de mudanças e de transformações ambientais. 

Portanto os indígenas também utilizam o meio ambiente para construir conhecimento, embora tal construção tenha características de uma especialização em determinados biomas onde cada povo vive. Isto difere das "aulas passeio" ministradas por Eurípedes Barsanulfo somente no aspecto do estilo de vida indígena não contar com as tecnologias e normas sociais de raízes predominantemente européias. 

Além disto, várias, para não dizer todas, culturas indígenas possuíam uma prática espiritual que era parte de sua visão de mundo, ou seja, de suas cosmovisões. Vale lembrar que os seres não humanos citados por indígenas não são apenas animais, plantas e minerais, mas também seres espirituais, embora haja diferenças entre as várias culturas indígenas. 

Mesmo mantidos por tradições passadas através das gerações oralmente de modo geral, tais conhecimentos não eram apartados de seus estilos de vida nem de seus conhecimentos: faziam parte destes. Tirar-lhes estes elementos de suas vidas para adaptá-los aos sistemas sócio-econômicos de ideologia capitalista, não geram apenas conflitos inter-geracionais entre os povos indígenas, mas também lhes expõem às pressões psicológicas de nossa sociedade. 

A partir dos anos 2000, com o avanço da crise ambiental que aflige o planeta, as preocupações dos cientistas se voltaram para aquilo que foi classificado como mudanças climáticas e seus efeitos globais. No início, os espaços de discussão foram ocupados por cientistas e especialistas das ciências naturais, para somente depois as ciências sociais e humanas, adentrarem nesses debates. Isto ocorreu primeiramente a partir da sociologia e da geografia humana, até que então a antropologia focada nestas mudanças climáticas trouxe outras possibilidades para o debate ao considerar os conhecimentos, narrativas, ontologias e cosmovisões de povos indígenas e tradicionais sobre as transformações ambientais que estão ocorrendo nos seus territórios. 

A experiência pedagógica de Barsanulfo infelizmente foi de curta duração e mesmo se houveram algumas outras experiências com características semelhantes, elas tiveram pouca oportunidade de dialogarem entre si, pois o sistema educacional dominante no Brasil e nos demais países de cultura européia (ou influenciada por esta) é hegemonicamente adaptado ao sistema sócio econômico como eu já mencionei. Resumidamente o sistema educacional adaptado aos sistemas liberal e neoliberal, desde a época de Eurípedes Barsanulfo, até este início de século 21, deu enfoque na formação profissional, qualificando os estudantes para o mercado de trabalho e a realidade industrial ou empresarial. Com isto, tal sistema deixou em segundo plano as questões sociais, as questões históricas, as questões ambientais e até as questões humanas, sejam estas últimas, questões culturais, filosóficas ou psicológicas. 

Ainda que o texto não tenha intenção de ressaltar a importância do conhecimento indígena para lidar com a "crise da mudança climática", achei interessante mencionar tal fato. Isto porquê a questão trás a importância de se romper com, ou ao menos, de controlar, o modelo dominante de construção de conhecimento eurocêntrico não só da educação de base, mas também da narrativa acadêmica/ científica que por tanto tempo desprezou (e ainda despreza, apesar de alguns cientistas começarem o diálogo) as culturas indígenas e suas respectivas epistemologias. 

Defender tais epistemologias (a proposta por educadores como Eurípedes Barsanulfo e as das etnias indígenas) faz-se necessário não só para preservar o meio ambiente, mas também para preservar a diversidade das culturas incluindo suas práticas espirituais. Tal defesa não é fazer proselitismo, nem pseudociência - é defender uma construção de conhecimento pautada pelas relações éticas das sociedades em relação umas às outras e em relação ao meio ambiente, ou como diriam os indígenas, em relação ao seres não humanos. Defender tais epistemologias é reviver a importância da filosofia: do diálogo e da ética para as relações mencionadas, pois ética trata de valores universais e estes valores buscam o bem não de certos indivíduos ou de meros grupos, mas buscam o bem do coletivo, da civilização humana e do meio onde ela vive. 

Por fim, o que trago aqui não é só minha opinião: Eu me apoiei no conteúdo de aulas de psicopedagogia e de pedagogia espírita das quais não tenho todas as fontes e também utilizei o artigo "Percepções locais sobre transformações ambientais na região do Oiapoque: reflexões a partir da experiência de formação de pesquisadores indígena" de Igor Alexandre Badolato Scaramuzzi, Rita Becker Lewkowicz, Rosélis Remor de Souza Mazurek e Vinícius Cosmos Benvegnú. 

Para quem interessar, também existem vídeos sobre o tema em canais na internet de ativistas indigenistas e de líderes indígenas, que trazem este tipo de questionamento da epistemologia eurocêntrica/ estadunidense tão adaptada aos sistemas liberais e neoliberais e sua respectiva ideologia capitalista centrada na extração, consumo e acúmulo de recursos materiais. 

Este texto foi originalmente publicado em: https://blogabpe.org/2024/11/18/a-pratica-de-euripedes-barsanulfo-entre-a-educacao-colonial-e-a-indigena/

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...