Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus (Timeu);

(48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) nasceu de um composto de necessidade e razão. A razão conduz a necessidade, porém para explicar isto, Timeu anuncia que deve reiniciar seu discurso, pois até o momento, o princípio do eterno (ser) e da imagem ou imitação do eterno (vir a ser) haviam sido suficientes, mas na verdade há um terceiro gênero no processo todo. Tal "gênero" seria um tipo de receptáculo do vir a ser e assim, seria seu nutriz. (um "elemento" entre o eterno e sua imitação e talvez, um intermediário entre a psiquê e o "corpóreo"?
O personagem tenta explicar a relação entre terra, água, ar e fogo, de uma maneira similar aos processos que conhecemos hoje como condensação, solidificação, fusão e evaporação, porém nem todos com os estes (mesmos) nomes e acrescentou a combustão (como se fosse a passagem do ar ao fogo), além de teorizar uma passagem do fogo ao ar (de fato o fogo aparece no diálogo como algo próximo ao "4º estado da matéria"/ plasma). Por causa dessas mudanças, os elementos jamais deveriam ser chamados de "isso" ou "aquilo" como se fossem estáveis; eles deveriam ser chamados de "semelhantes" pois são sujeitos às mudanças frequentemente, jamais permanecendo no mesmo estado de modo permanente.
49a-51e O que há entre o que é e o que vem a ser então, é um tipo de receptáculo amorfo e invisível de difícil compreensão. Timeu conclui que tal receptáculo, sendo a "mãe de todas coisas que vem a ser" (as coisas geradas, mutáveis etc), a sua parte que se inflama, aparece como fogo, a parte que se condensa aparece como água, a que solidifica aparece como terra etc. Considerando que o autor está se referindo a uma força que age como o meio termo de uma realidade psíquica (espiritual, eterna, imutável etc) e a realidade perceptível sensorialmente (o universo gerado), esta é onde se forma todos elementos em seus 4 estados: plasmático, gasoso, líquido e sólido. Na época da obra (século 4 a.C.) o conhecimento dos 4 estados da matéria era pouco conhecido e difundido entre as civilizações humanas, mas é nítido que a "teoria dos 4 elementos" demonstrada em Timeu não se refere a quatro forças separadas e incomunicáveis entre si: há um constante fluxo de transformação entre eles, como o que ocorre com os estados da matéria, estudados mais profundamente algum tempo depois de Platão.
Este "terceiro gênero" além do ser e do vir a ser, é o que dá forma aos elementos como os citados anteriormente. Isto porque, a matéria e seus estados pertencem ao gênero do "vir a ser", ou seja, são coisas geradas e portanto mutáveis, dispersáveis etc. Mas o terceiro gênero parece se relacionar com a teoria das formas (eidos: ideia/ forma) de Platão; Por isso o personagem Timeu questiona se não seria válido sustentar que há uma existência perpétua da Forma de cada coisa, ou seja, há Formas auto subsistentes. Ele diz que seria impróprio simplesmente descartar esta questão e a seguir, aborda o que é o entendimento e o que é a opinião verdadeira*.
*A palavra traduzida por Edson Bini como entendimento aqui é noús, que parece surgir como inteligência ou conhecimento (de teor divino, sublime...) em outras obras; Já a opinião verdadeira é traduzida do termo doxa alithís - não confundir com "ortho doxa" que é "opinião correta".
O astrólogo considera que entendimento e opinião verdadeira devem ser coisas diferentes entre si* e explica que as formas (eidos) auto subsistentes só são acessadas pelo entendimento e não pela percepção sensorial. Porém, para alguém que interpreta as coisas perceptíveis pelos sentidos (os elementos, a matéria) como as mais estáveis, o entendimento e a opinião verdadeira não poderiam ser considerados diferentes entre si. 
*(negar a diferença entre entendimento e opinião, seria o relativismo: afirmar que entendimento e opinião são a mesma coisa, é negar a construção de conhecimento, a busca pela verdade, os valores universais etc) 
 Sendo assim, estes dois têm que ser considerados distintos entre si: a opinião verdadeira então surge através da persuasão, enquanto o entendimento surge através do ensinamento. A opinião é acompanhada por um discurso irracional (álogon), enquanto o entendimento é acompanhado de um discurso racional (logon). A partir daí, o autor conclui que a opinião, sendo oriunda da persuasão, também pode ser desfeita pela mesma, mas o entendimento não pode ser desfeito pela persuasão: se a pessoa realmente entendeu um assunto, ela não pode ser convencida do contrário. Após identificar estes 2 tipos (as Eidos, ou Ideias/Formas e os "objetos" gerados, perecíveis e móveis pelo espaço), Timeu identifica um 3º tipo, traduzido por Edson Bini como "espaço limitado* o qual existe sempre e é indestrutível, provendo espaço a todas as coisas que vem a ser". (52...)
*O termo espaço limitado foi traduzido da palavra "khoras", enquanto o "provendo espaço a todas as coisas que vem a ser" vem do trecho original em grego clássico "édran dé paréchon ósa echei genesin pasin" (...) Note que é outra palavra (édran) traduzida também como espaço; Outra possível tradução deste trecho então seria: "... fornecendo assento (superfície ou localização) para todas coisas geradas". Além disto vale lembrar que na Época de Platão não tínhamos a teoria da relatividade (a descrição do espaço/ tempo como uma curvatura) nem havia sido provada a 4ª dimensão matematicamente (embora Platão, ao menos aparentemente, insinua sobre este último tema na obra Parmênides). Sendo assim, se "khoras" apresentado em Timeu é algo entre o universo gerado e a psiquê universal ou realidade espiritual, é possível traçar uma relação de semelhança com as teorias posteriores do fluído universal/ magnetismo animal de Franz Mesmer (1734-1815) ou com o conceito de períspirito de Allan Kardec (1804-1869). Ademais, em uma área mais aceita pela ciência moderna, temos a descoberta dos campos eletromagnéticos dos órgãos (cérebro, coração etc) nos anos 1960 e as teorias da consciência no campo eletromagnético do cérebro/ sistema nervoso da virada do século 20 ao 21... Ou seja, a ciência atual obviamente não discute uma "psiquê do universo", mas discute em algum nível "a relação da mente com o corpo humano" e sua estrutura, seja a nível de subpartículas ou de campos eletromagnéticos deste. 
Este 3º "tipo" de ser, chamado de nutriz, que não é o "ser" em si (que existe sempre) nem o "vir a ser" (o que é gerado, mutável, perecível etc), pode ser apreendido por uma espécie de raciocínio bastardo que não é acompanhado pela percepção sensorial e mal sequer é objeto de crença. Neste ponto do discurso, Timeu alerta que é incapaz de fazer todas as distinções sobre o assunto e menciona uma complexa, mas breve descrição que envolve o estado de sono e os sonhos... Obviamente alguém que considera só a matéria perceptível como real, considera os sonhos como meras imagens e/ ou imaginações do cérebro, porém, ao longo de suas obras, Platão claramente menciona que a psiquê não é só o cérebro nem um mero produto perecível do cérebro ou de qualquer outra parte do corpo; A psiquê é alma, que não só sobrevive após a morte do corpo, devido ao fato de não ser divisível nem deteriorável, como também transmigra (vide Fedon, FedroA República e Político). Sendo alma, a psiquê durante o repouso do corpo (sono), continua ativa e possivelmente teria alguma liberdade em relação ao corpo; O sonho então possivelmente seria como fantasias ou "véus" que encobrem a atividade da psiquê que é mais real do que os corpos perceptíveis e do que o "3º gênero ou tipo" de coisas. 
A nutriz então, que recebeu os elementos em seus variados estados, pré existiu o universo e os 4 elementos se encontravam sem  medida e sem razão, até serem ordenados pelo deus (o artesão ou arquiteto, Demiurgo). Timeu diz que os elementos deviam ter traços de suas respectivas naturezas, mas se encontravam em uma disposição que deve ser típica da ausência do deus (e portanto, da ausência da inteligência/ da mente/ alma). O deus, a partir daí, usou das Formas (eidos...) e dos números para que estes elementos se tornassem o mais belos e excelentes possíveis. 

54d-61a Na sequência o astrólogo Timeu segue explicando sua teoria dos poliedros ("os sólidos platônicos"), onde relaciona cada um deles com um respectivo elemento (fogo, ar, água e terra), mais um 5º poliedro relacionado com o universo como um todo. Partindo de um ponto de vista talvez pitagórico (geômetra), o personagem supõe que toda superfície é composta por figuras geométricas, particularmente por triângulos que formariam tais poliedros (possivelmente como moléculas) em caso de cada elemento/ estado da matéria. Talvez foram propostas "partículas triangulares" para os 4 tipos, ou 4 elementos, por uma questão conceitual, devido ao fato destes sucederem 3 fatores constituintes: o ser que é eterno/ imutável, o vir a ser que é gerado/ mutável e khoras que é o receptáculo/ nutriz que deu beleza/ forma aos elementos do universo. Daí o astrônomo classifica o "fogo" como o elemento mais fluido, seguido pelo ar, pela água e por último, pela terra, o menos fluído (mais sólido/ compacto dos elementos). Seguindo sua explicação sobre a constituição do universo, Timeu diz que não há espaço vazio neste, e que o "fogo' é o elemento mais abundante, ou seja, que ocupa mais espaço, seguido pelo ar etc... Ignorando as limitações da época, faria sentido dizer que esta é uma teoria absurda, porém, lembrando da semelhança desta teoria com a ideia dos "4 estados" da matéria, o fogo poderia ser comparado ou substituído pelo plasma, daí esta teoria deixaria de soar absurda. Isto porque, apesar de séculos depois em 1898, o astrônomo Charles A. Young teorizar que o espaço fosse um vácuo absoluto, outros cientistas foram descobrindo indícios de elétrons no espaço interplanetário (Ludwig Biermann, Hannes Alfvén e Kristian Birkeland por exemplo). Nos anos 1960 ficou comprovada a existência do plasma no espaço interplanetário e alguns cientistas já afirmam que ele (o plasma) está presente em significante parte do universo, ou está na maior parte do universo. 

Timeu termina a explicação de sua teoria dos elementos, indicando como eles afetam uns aos outros e como se transformam. Na sequência ele começa a explicação sobre o corpo humano e faz uma breve pausa para refutar uma teoria da época (62c-63e), que dizia que tudo que era dotado de massa corpórea se moveria para o lado de baixo do universo e o restante seria constrangido para cima (certamente o "terraplanismo", mas ligado a um possível atomismo). Isto porquê o autor entende que o céu é esférico e "distribuído" de maneira equidistante em relação ao seu centro. Por lógica então, entende-se que o pesado tende a ficar no centro da esfera e o mais leve fica afastado do centro. Após esta explicação, o personagem tenta explicar como se propaga os processos perceptíveis e imperceptíveis no ser humano, comparando as partículas deste com as partículas dos elementos, para então discorrer sobre os sentidos : tato (dor e prazer), paladar, olfato, audição e visão (cores etc). (64a-69a) Os sentidos seriam parte da natureza necessária, pois o deus é suficientemente sábio para combinar o múltiplo com o uno e decompor, inverso o uno no múltiplo*. (*tema abordado em Filebo). Colocando a beleza e o bem (bondade/ kalos) no universo e nos elementos dos quais foram utilizadas as propriedades inerentes, o Demiurgo gerou o ton aytarke te kai ton teleotaton theon (traduzido como deus mais perfeito e autossuficiente: possivelmente a urainon psiquê/ alma do universo). Por isso o astrólogo diz ser importante distinguir a causa natural da causa divina e insinua que o ser humano precisa da vida material ("natural") para alcançar a divina...

Apesar dos argumentos dialogarem com as demais e investigações filosóficas de Platão, ainda há elementos neste texto que parecem exclusivos desta obra: A alma do universo só é mencionada em Timeu, bem como as investigações filosóficas sobre a origem do universo tridimensional/ "material" e seus respectivos elementos. 

69b-70 O demiurgo então adicionou proporcionalidade e harmonia (dentro da medida do possível) nos elementos criando o universo e sua psiquê - o deus que continha toda vida em si. Agindo como artífice das coisas divinas, ele (o demiurgo certamente) incumbiu sua progênese (a alma do universo ou os planetas?) de construir a gênese das coisas mortais. Recebendo o princípio imortal da alma, eles criaram os corpos mortais para servirem de veículo desta. Também criaram a "alma mortal" que encerram coisas terríveis e necessárias (o prazer, a dor, ousadia, medo, animosidade etc), alojada separadamente da alma imortal que seria vinculada à cabeça. Assim o "pescoço separaria" as "almas", sendo a mortal alojada abaixo deste e dividida em duas partes: no coração e no fígado/ abdômen.

Este trecho parece dialogar logicamente com a teoria tripartite da psiquê apresentada em A República, mas vale algumas observações: Primeiro que a tradução parece indicar que são "2 tipos de alma": a imortal e a mortal, o que pouco condiz com alguma obra de Platão - Talvez com Fédon, onde Platão indica que os amantes do sobressair-se os amantes do lucro são ambos amantes do corpo, se considerarmos que estes 2 tipos de indivíduos são dominados respectivamente pela parte intermediária da psiquê (ligada ao coração) e pela parte inferior da psiquê (ligada ao fígado). Segundo que a ligação da(s) alma(s) com as partes do corpo parece exclusiva deste texto também, embora isso não seja absurdo, já que Timeu é a obra que aborda a origem do universo, portanto toca questões entre a realidade cognoscível/ a psiquê/ os valores universais e a realidade perceptível/ sensorial/ material. Ligar a alma/ psiquê às partes do corpo não é um problema em si, e inclusive, curiosamente é similar ao conceito de alma da civilização asteca.  

A parte da psiquê ligada ao coração então está ligada a animosidade, de modo similar ao apresentado em A República, mas tem a função de controlar os apetites da parte inferior, a "do fígado". Se a parte da psiquê ligada ao fígado e ao abdômen é afetada e conduzida pela parte superior (da cabeça possivelmente), ela pode se tornar serena e jovial, tornando-se capaz da divinação (mantike*) durante a noite, em seu sono. Isto porque a "parte inferior" da psiquê não participa (diretamente) da razão e do entendimento.

*A mantike é tratada na obra Fedro. Ali, Platão mostra Sócrates criticando a separação dos conceitos de mantike (que seria traduzido como mancia, algo referente a uma prática/ magia divinatória) e manike (estado alterado da mente, onde a pessoa pode ter visões - certamente traduzido como mania). O autor não classificava tais experiências de acordo com o método pelo qual elas eram alcançadas/ vividas, mas sim pelos valores inferidos e desejados pela pessoa; Assim a adivinhação, visão / inspiração divina seriam alcançadas pelo agente de divinação (manteis) que desejasse os valores universais (justiça, bondade, coragem etc) e/ ou que fosse belo psiquicamente, ou seja, ético. Desta forma não fazia sentido utilizar o termo mantike para se referir à magia divinatória e manike para classificar todas outras experiências de consciência/ mentalidade alterada, fossem estas transcendentais ou patológicas.

71a-72b: Timeu explica que o deus concedeu o dom da divinação (mantikin) à estupidez humana, pois ninguém em posse de sua inteligência alcança tal estado psíquico. A divinação, de acordo com o astrólogo, só é alcançada em estados de sono, alguma doença ou inspiração divina. Por isso alguém em posse de seu juízo deve lembrar e ponderar sobre acerca dos enunciados produzidos nesse estado divinatório; De modo similar ao que Sócrates propõe à Ion, Timeu diz que essa pessoa (capaz de raciocinar) deve analisar cabalmente e indiscriminadamente todas as visões afim de apurar como e para quem significam algum mal ou bem futuro, presente ou passado. Isso porque a pessoa em estado de "frenesi" (o estado alterado da mente, seja uma inspiração, uma possessão, o sonho etc) está apenas recebendo a "visão", não sendo capaz de pausar e/ ou analisar racionalmente qualquer coisa. Este poder da divinação teria sido concedido ao ser humano para "retificar" a parte inferior de sua alma, auxiliando-o a superar o hedonismo e a não sucumbir aos desejos mesquinhos, pois a parte inferior da psiquê nestas condições "não filosóficas" conseguiria "ver" apenas falsos ídolos e fantasmas. 

Sendo Timeu uma obra platônica, este tema é um ponto chave da diferença entre a construção de conhecimento (epistemologia) de Platão e a maioria esmagadora dos pensadores ocidentais posteriores: Platão afirma que há não só uma realidade psíquica, mas que tal realidade permite o contato entre psiquês durante os "estados divinatórios" chamados de mantike, sejam as "psiquês" almas ou mentes de seres "mortais" na Terra ou de daemons (espíritos guias/ anjos da guarda, semi-deuses). Além destas "almas", parece haver outras entidades ao longo da obra de Platão: sejam as moiras (citadas no "Mito de Er" em A República), os falsos ídolos (aparentemente citados só em Timeu) e o deus (seja o Demiurgo e/ ou o Uno/ Nous, a inteligência divina). Platão não busca dar detalhes sobre tais seres e/ ou entidades porque sua episteme é dialética e tem como ontologia/ teleologia, a melhoria de todas as coisas. Sendo dialética, o autor trabalha com o investigável partindo de sua presunção de ignorância e a investigação é feita pela contraposição de argumentos que levam à reflexão sobre os temas/ as coisas. As coisas tendo um fim, têm formas (eidos: ideias/ formas) e este fim é a excelência/ a virtude composta de valores unos (universais, que unem) e imutáveis (eternos, que não se desgastam com o tempo, portanto precedem o tempo). Assim Platão jamais investigaria os "falsos ídolos" bem como ele recomenda que devemos nos empenhar em estudar as coisas que são (imutáveis, unas e cognoscíveis) ao invés das coisas que não são: Fato bem exemplificado na obra "Sofista" (Do Ser). Em Sofista, ou autor também investiga e descreve os pontos fracos e fortes de pressupostos como o espiritualismo, o materialismo (certamente atomismo), a teoria de que todas as coisas são unas, supostamente de Parmênides e a teoria de que tudo está em movimento e o ser humano é o centro de todas as coisas (de Heráclito, Protágoras etc). Assim Platão apresenta a filosofia com abertura à universalidade, mas sem deixar de fazer análises rigorosas, pautadas pelos valores universais, ou seja, pela ética. A filosofia moderna porém, principalmente após Locke, Kant e Comte, não tem essa universalidade e a ciência nasce desta filosofia. A filosofia moderna então não é só racionalista, como apresentada por René Descartes (1596-1650), mas também tende a dar maior ênfase no método do que na finalidade. Este método dominante na ciência é o empírico e seu pressuposto (pré suposição) é o materialismo que nega a realidade espiritual, e, consequentemente, nega toda a espiritualidade. A ciência então, separada de maneira mais notória após a cunhagem do termo cientista no século 19, nasce como um saber voltado às especializações. Esta ciência em grande parte (empirista, reprodutível) também cai no que Platão alerta sobre a limitação dos atomistas/ materialistas de seu tempo (século 4 a.C.): é uma área de estudos mais voltada e mais útil para a produção de corpos e para a manutenção destes corpos (por exemplo: medicina dos órgãos e dos sistemas orgânicos, química, mecânica etc). Ela jamais pode investigar ações oriundas de inteligências para além do espaço tridimensional e/ ou do tempo, ou seja, não investiga a espiritualidade e as experiências transcendentais/ místicas, além de não abordar a ética nem os valores universais. E estas experiências espirituais, sejam visões em sonho, inspirações divinas ou quaisquer outras, interrelacionam-se com questões psíquicas, éticas e existenciais/ de sentido. Para que a ciência passe a considerar tais questões, ela teria que se regida por uma teoria de sistemas pautada pela ética e seus valores universais, sem paradigmas e pressupostos estritamente materialistas.

Timeu diz que, por esta razão, é comum consultar intérpretes (profeton) das entheois manteíais (oráculos divinos, traduzido como divinações inspiradas, por Edson Bini - são as "experiências psíquicas de teor espiritual" como explicado anteriormente). O astrólogo/ astrônomo distingue o agente da divinação (manteis) dos intérpretes das coisas obtidas por divinação (profeton) e conclui que referente ao que concerne à alma e suas "partes" e com que órgãos do corpo elas se ligam, ele só ousaria afirmar que é verdadeiro com a confirmação divina. Porém, ele continuará a explicação tratando seus próprios argumentos como uma probabilidade (74-79). Timeu diz que as 3 partes da psiquê/ alma (a racional, a "irascível" e a "apetitiva") se encontram na medula e explica sobre os ossos, os nervos e a carne do corpo. Ele traça uma vaga ligação entre humanos, animais e plantas e indica que a vida "não humana" deve ter o "terceiro tipo" de psiquê (a "alma apetitiva"). Em seguida tenta uma descrição da constituição do corpo humano e seus sistemas respiratório e digestório por causa da importância destes para nutrir e manter o seu funcionamento biológico. Timeu entende que não há espaços vazios no corpo e onde o ar deixa de estar presente, o "fogo" preencheria tal espaço. Embora teorias da época aceitassem a ideia do fogo no corpo humano, vale lembrar que pelo próprio teor da explicação dos 4 "elementos" ou "tipos" (do grego, genon) apresentada em Timeu, é possível que o autor se refira ao estado da matéria mais fluido do que o ar (o plasma). Esta ênfase na teoria de que tudo está preenchido de alguma força ou partículas aparece nos argumentos das relações entre todas as coisas do universo: Timeu parte da explicação do corpo humano, citando brevemente os sons, as correntes d'água, o relâmpago, o âmbar (elektron) e a pedra heracleana (magneto ou magnetita) - todas estas coisas tem alguma interrelação, nada sendo isolado ou acaso.

(80-81) Timeu, ainda que com a peculiar descrição de partículas (ou moléculas) triangulares, parece ter uma noção que o sangue se move em uma corrente cíclica no corpo e indica uma relação deste com o transporte de nutrientes obtidos dos alimentos. Ele ainda entende que os corpos que nos circundam se mantém nos consumindo (ambiente e/ ou micro-organismos?) e direcionando cada espécie de substância àquilo que lhe é afim. Assim, Timeu encerra esta parte explicando a juventude do corpo, o envelhecer e a morte, através de sua teoria das moléculas/ partículas triangulares e seus movimentos/ mudanças; Após os vínculos destes "triângulos" da medula se partirem, a alma (psiquê) estaria livre para deixar o corpo. A morte natural tende a mais indolor e mais prazerosa do que a morte não-natural, que é sempre dolorosa. 82-86a: Após teorizar sobre as doenças do corpo, Timeu fala das doenças da psiquê: Ele entende que a falta de senso (anoian, ou falta de sanidade, de mentalidade) é uma doença da psiquê e que há 2 tipos dela: a mania (manike, traduzido como loucura) e a ignorância (amathos). Neste ponto, o prazer e a dor excessivos são relacionados aos maiores tipos de loucura: Quando um indivíduo experimenta um regozijo excessivo, ele se torna atiçado pela pressa de obter mais prazer e quando experimenta muita dor torna-se o contrário do primeiro: aversivo/ provocado para evitar dores apressadamente. Neste estado, o indivíduo fica limitado para ver e ouvir, tornando-se ensandecido e incapacitado de exercer a razão. Timeu diz que ocorre um fator corporal de produção (de substância biológica) excessiva do que pode causar muitas dores ou prazeres... Isto faz com que o indivíduo passe maior parte do tempo enlouquecido ("maníaco") pela busca por prazer ou pela evitação de dores. Ele explica que a sociedade de seu tempo costuma classificar tais indivíduos de psiquê enfermas e destituídos de senso como voluntariamente maus; Porém esse desregramento sexual ocorre principalmente pela produção de uma substância do corpo (traduzida como semente) que adoece a psiquê. O autor explica que este descontrole (a mania pelo  prazer) não deve ser censurado como meramente uma questão de vontade*, pois é um problema do corpo (biológico) e da má condição ou ausência de educação. O mesmo vale para a "doença contrária" (referente as dores): ela tem causas parecidas, sendo estas principalmente corporais.

*Sócrates e Platão questionavam o argumento de que as pessoas eram voluntariamente más; Assim, a justiça para eles não era mera punição: tinha um fim de corrigir a psiquê da pessoa, como abordado nos diálogos Protágoras e Górgias, por exemplo.

Timeu completa sua explicação sobre tais "psicopatologias" alegando que quando os indivíduos neste estado (de loucura/ mania), vivem em um local onde a política e os discursos* também são maus (*certamente discursos de educadores, advogados e/ ou sofistas), não se deve culpar o educado e sim seus cuidadores ou progenitores que foram responsáveis por tal educação falha. Nestes casos é necessário reunir esforços através de uma educação aliada aos estudos próprios (individuais) para corrigir/ tratar a loucura. 

O autor lembra que a psiquê/ alma dada pelo deus ao ser humano é de origem divina e (por causa de sua parte superior, ligada à cabeça) foi feita para ascender aos "céus". Este "céu" é certamente o hiper ouranos, citado em Fedro, o "local dos deuses", onde não há malevolência e as virtudes como a justiça, fulguram. O indivíduo que se deixa levar por seus apetites ou por disputas terrenas fica preso à sua parte mortal e alimenta opiniões mortais (mutáveis, perecíveis), mas aquele que se ocupa de pensamentos verdadeiros, liga-se à sua parte imortal e é apto a alcançar o saber (vide "A República") e o divino. Este último certamente está de acordo com o daemon (espírito guia/ um tipo de anjo da guarda) que lhe foi concedido pelo deus e assim eles podem ser considerados sumamente felizes (eudaimona einai: literalmente estar com um bom daemon). Cada parte da psiquê/ alma deve cuidar do que lhe é devido, por isso o corpo deve ser nutrido devidamente e não ser imerso em exageros de prazer ou de dores. A parte superior da psiquê então cuidaria das "revoluções do universo" (o objetivo da "parte superior" da psiquê parece explicado de maneira mais precisa e mais completa em outras obras de Platão, como  O Banquete, Fedro, Górgias, "A República", Fedon, etc).

No fim de seu discurso (90e-92), Timeu apresenta sua teoria da metempsicose, a transmigração das almas, tendo o ser humano como tema central, com o viés patriarcal típico da "Grécia" de seu tempo. Inclusive, Platão sugere os direitos das mulheres (ao ensino etc) em "A República" certamente porque era necessário eliminar ou diminuir a opressão sobre elas em maior parte das cidades gregas.

 Ele encerra dizendo que assim, a alma do universo (o deus "perceptível") contém todos os seres vivos em si, de modo maximamente bom, belo e perfeito... Este trecho final da obra Timeu parece ser ou abordar o que Aristóteles diz que Platão reservou uma versão diferente a qual só ensinava pessoalmente (via tradição oral) e isto seria indicado em sua "7ª carta" entre os trechos 341b e 341e... O pupilo de Platão teria afirmado que falar da origem do universo e do Deus e sua bondade causava desprezo ou deboche por parte de alguns ouvintes (certamente os que desprezam ou não entendem as excelências/ virtudes) e sabendo disto, seria mais ineficaz ainda escrever sobre tal tema, como indicado na 7ª carta. Isto gera a dúvida: o quão a obra Timeu carrega de elementos realmente "platônicos"? Certamente há muita coisa coerente com a obra de Platão em Timeu, mas seria tal texto incrementado ou realizado por outro autor admirador do filósofo?

Alguns outros textos correlacionados aos temas abordados aqui: 

https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/03/observacoes-sobre-fedro-sobre-o-belo.html

https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/07/observacoes-sobre-ion-da-iliada.html

Observações sobre Timeu; Parte 1

Há alguns poucos anos passei a ler as obras de Platão, entre elas: Protágoras, Hipias Maior, Cármides, Laques, Lisis, Fedro, O Banquete, Hipias Menor, Ion, Eutidemo, Menexeno, Górgias, Menon, A República, Eutifron, Crátilo, Filebo, Teeteto, Sofista, Político, Apologia de Sócrates, Criton e Fedon; Também li partes de Alcibíades, Timeu, Critias, das Cartas e dos Epigramas de Platão. 
Referente as obras vale notar os seguintes pontos: O texto Alcibíades tem um estilo claramente diferente das demais obras de Platão e (não só) eu considero esta obra como sendo de outro autor. Sócrates parece meio manipulador no texto e a obra destaca uma suposta relação entre os personagens - característica inexistente ou rara nas obras de Platão.
Menexeno, cujo o tema envolve a morte e principalmente os discursos fúnebres, apresenta uma crítica válida que Platão possivelmente faria ao meu entender. Porém não há cuidado com a cronologia de eventos históricos no texto, o que reforça um tom satírico - isto não contradiz o teor crítico da obra. Eu só não saberia confirmar se tal obra foi escrita realmente por Platão ou por algum filósofo platônico, mas isso pouco importa já que a obra parece ter seu valor.
 No que se diz respeito à algumas das cartas, elas são discutíveis seja em conteúdo ou no estilo do texto, embora a sétima carta em particular pareça bastante obra de Platão tanto em conteúdo como em forma. 
 Os epigramas talvez tenham menos relevância e muitos deles não são considerados obras do filósofo ateniense. 
 Parmênides eu li cerca da metade do texto e apresentei breves observações sobre tal obra neste blog - sobre os demais textos eu já fiz minhas observações também neste blog.
 Neste texto abordarei o diálogo Timaeus (Timeu) e possivelmente outros textos correlacionados a esta obra, como Critias e a sétima carta.

 O texto começa com uma apresentação elogiosa dos participantes do diálogo: Sócrates (praticamente como ouvinte), Timeu, Crítias e Hermócrates. Os personagens Crítias e Hermócrates são considerados históricos, porém Timeu é desconhecido - não se sabe se é uma invenção de Platão, ou alguém sem fama alguma. Após uma breve recapitulação do diálogo de "A República", Crítias descreve a história de seus ancestrais contando sobre a lendária Atlântida.

Timeu, um astrônomo (certamente astrólogo, já que no século 4 aC, esses temas se misturavam), então fica encarregado de descrever a origem do universo; Ele começa fazendo a distinção entre as coisas que são (referente aos termos gregos "to on" e possivelmente a "ontos": o que é imutável e eterno) e as coisas que 'vem a ser" (o que é gerado, e portanto mutável, relacionado ao termo grego "genesin"); A partir destas ideias que estão de acordo com as de Platão (afinal, certamente o texto é dele...), o personagem diz que as coisas sensíveis, ou seja, que são perceptíveis sensorialmente, pertencem à categoria do que é gerado e mutável (envelhece, morre, é passível de ser decomposto etc) e por isso são alcançáveis pela opinião e pela sensação irracional (os sentidos etc). Estas coisas nunca são realmente, pois estão em constante transformação e como são coisas que "vem a ser", elas tem uma causa - Isto porque elas vem a ser por algum motivo (pode-se dizer que tudo o que é perceptível sensorialmente é um efeito e por isto, tem uma causa). 

As coisas imutáveis, por um outro lado, são alcançáveis pelo pensamento e pelo discurso racional e não pelos sentidos - este argumento aparece em outras obras de Platão, como por exemplo em A República, onde o autor mostra que as virtudes estão nesta categoria: Não podem ser tocadas, cheiradas nem experimentadas por sentido algum; além disto tais virtudes ou excelências são unas e imutáveis: a bondade/ beleza (kalos), a justiça, a coragem e a moderação são universais - valores coletivos que fazem bem para todos, não sendo deterioráveis pelo tempo. Sendo coisas belas e imutáveis, as virtudes não são coisas geradas - não são mera invenção humana; sua existência precede as coisas deterioráveis. 

Outro ponto que fica implícito ao longo das obras de Platão (que também parece o caso de Timeu) é que o corpo humano sendo perecível/ deteriorável, não pode alcançar as virtudes por si só. Assim nenhuma parte do corpo, seja o cérebro, o coração ou qualquer outra, é responsável pela inteligência - a psiquê, seja mente ou alma, é a responsável pela inteligência e pela capacidade de alcançar as virtudes. O como a psiquê se relaciona com o corpo, o autor parece não detalhar, mas deixa claro que é ela que dá vida e anima o corpo. Isto explica a classificação da mesma em 3 "níveis" (a teoria tripartite "da alma") como aparece na obra A República: a parte da psiquê voltada às necessidades básicas e aos prazeres mais rudimentares ou intensos (necessidades fisiológicas, prazeres do sabor, do sexo etc) Certamente esta seria a parte mais neuro/ biológica da mente, afinal neste início de século 21, áreas da saúde mental consideram a existência de transtornos relacionados ao ato de comer compulsivamente e o "vício" em atividade sexuais, inexistindo transtornos que façam a pessoa "viciar" em estímulos auditivos ou visuais; A parte intermediária da psiquê, de acordo com Platão, mostra-se ligada à indignação, às emoções (o autor utiliza várias palavras relacionadas ao termo grego "thymous") e a sentimentos enquanto a parte superior da psiquê, seria a do intelecto e da capacidade de entender e viver as virtudes/ excelências mencionadas (autocontrole, coragem, bondade etc). Assim Platão põe a justiça e a bondade como elementos superiores da psiquê e também, de certo modo, como a finalidade do ser humano. Os filósofos para o autor, não são meros estudiosos nem são estritamente racionalistas: eles são admiradores e buscadores da virtudes e por isso em algum grau significante tornam-se moderados, corajosos, justos e bondosos (belos psiquicamente).

 Sendo a(s) excelência/ virtudes mencionadas anteriormente (o bem/ beleza, moderação etc), una(s) e imutável, a causa do universo gerado também é boa e não teve como base algo perecível/ mutável e sim algo universal e eterno. Sendo assim a causa também é bela e procurou fazer o universo tendo como referência o que é belo e bom (kalos). Apesar da causa ser denominada de Demiurgo (algo como arquiteto), ela apresenta semelhanças com o conceito da causa do universo apresentada por Anaxágoras (um dos professores de Sócrates): Nous, a inteligência cósmica. Porém, diferentemente do filósofo "pré socrático" (naturalista), em Timeu, é apresentada uma psiquê cósmica criada pelo Demiurgo, que parece ter criado o universo para que todas as psiquês se tornem bondosas e belas. 

Timeu entende o cosmo (universo) como a mais bela das coisas mutáveis (suscetíveis ao tempo, "que vieram a ser" etc) e isto seria um indicativo que sua causa, o Demiurgo, utilizou de modelo o imutável o eterno, assim, o universo seria um tipo de "imagem do eterno". O protagonista do diálogo diz à Sócrates que a explicação de tais coisas em si (o estável e de tudo que serviu de modelo para a criação do universo) é invencível e irrefutável à semelhança do elemento explicado, porém como ele, Timeu, é um simples humano/ "mortal", está suscetível às falhas e deve se esforçar o máximo para abordar tal assunto com precisão e clareza. 

Isto parece estar em acordo com que alguns autores dizem sobre Platão: que ele reservou parte de seus ensinamentos para transmitir exclusivamente de modo oral para seus alunos. Explicar sobre o que serviu de "modelo" para a geração do universo seria algo como explicar algo perfeito, divino, ou uma realidade superior que seria incompreendida ou desprezada pela maioria dos leitores, caso fosse deixada escrita. 

O arquiteto/ a causa então teria pego o mutável e visível (certamente o que é perceptível) que estava desordenado e discordante (indisciplinado e contra as regras) e o ordenou*, pois conforme a regra para ele, tudo que é sumamente bom deve ser sumamente belo.

*este conceito de cosmogonia/ criação ou surgimento do universo é similar ao de outros mitos e religiões, desde as poesias gregas de Homero e Hesíodo até a cabala judaica (árvore da vida).

Entendendo que nenhuma coisa não inteligente seria mais bela do que as inteligentes, o Demiurgo confirmou que as coisas (perceptíveis, portanto certamente materiais) não poderiam ter inteligência (noyn, ou noun) sem psiquê. Afinal, Platão indica que a beleza está relacionada ao bem (bondade, justiça etc) que são valores universais, ou seja, elementos psíquicos/ cognoscíveis não sensoriais e alcançáveis pela inteligência. Por esta razão, Timeu diz que o universo ordenado veio a ser como um ser vivo dotado de psiquê e inteligência providenciados por uma força divina;

Apesar de outras obras de Platão indicarem uma realidade para além do universo que era superior e divina (possivelmente chamada de hiper ouranos), alcançável psiquicamente pelo ser humano, ao entender e viver as virtudes/ excelências (vide os diálogos Fedro e A República, por exemplo), a alma (psiquê) do universo aparentemente só é citada nesta obra, o diálogo "Timeu". O conceito de alma do universo parece contradizer parcialmente o diálogo "Político", onde Platão afirma que o universo onde vivemos é mais imperfeito que os deuses e a realidade divina devido ao fato de ser corpóreo/ material. Naquele diálogo fica compreensível que as almas reencarnam através do tempo pelo universo, para após um longo ciclo, se unirem ao "Theos" ou "aos deuses".

Por um outro lado, no diálogo "Crátilo", Sócrates expõe a teoria de que algo sutilíssimo e celeríssimo atravessa todo o universo, fazendo este parecer estar parado, como se este fosse um tipo de receptáculo. Este algo (sutil e célere) seria justo (dikayon) e estaria relacionado ao termo Dia também (que teria relação com o nome Zeus), mas Sócrates deixa o tema inconclusivo devido ao fato de ter recebido diferentes argumentos sobre o assunto - que esse "Zeus" (Dia) poderia ser o Sol ou a Inteligência. Poderia a psiquê do universo ("alma do mundo") mencionada em Timeu, ser um complemento ou alternativa à teoria apresentada em Crátilo?

Timeu segue explicando que o universo visível, sendo a mais bela das "coisas que vieram a ser", seria um tipo de mescla do imutável com o mutável e teria que possuir as mais belas características, por esta razão não seria infinito e sim uno. O universo teria sido criado a partir da semelhança com aquele ser vivo do qual todos os demais seres vivos fazem parte seja individualmente ou universalmente. Isto porque este ser vivo abrange a totalidade dos seres vivos inteligíveis e daí o Demiurgo criou o universo o mais semelhante possível ao mais belo ser vivo teleo (final ou finalizado no sentido de completo). 

Ele entende que para ser visível, houve a necessidade do fogo (a luz?) e para haver tangibilidade, houve a necessidade de terra. A partir daí, Timeu diz que haveria a necessidade de mais elementos (intermediários entre o fogo e a terra), então o arquiteto criou o cosmo (universo) utilizando os "4 elementos" (conceito da época) e os ordenou numa aparente sequência do mais sutil ao mais denso ou compacto: Fogo, Ar, Água e Terra, dando-lhe uma forma esférica. 

Esta teoria dos 4 elementos, apesar de imprecisa e com o viés da antiguidade, tem uma semelhança com os 4 estados da matéria: Plasmático, gasoso, líquido e sólido. Essa semelhança fica mais nítida em partes posteriores do texto.

Após discorrer sobre o movimento (de giro) do universo, Timeu explica que a psiquê (alma...) foi concebida pelo deus para ser mais antiga que o corpo que é fruto da geração e para governar este. O astrólogo explica uma complexa teoria, sobre dobras ou cortes do universo em porções e proporções numéricas das quais eu mencionaria em vão aqui (uma vez que este trecho não me ficou claro).

A partir deste ponto, Timeu continua a explicação que aborda um tema bem peculiar devido ao fato de se tratar de algo imutável e mutável - uma "imagem do eterno". Estes conceitos que parecem contrários entre si poderiam gerar questionamentos como: o universo envelhece por não ser verdadeiramente eterno? Timeu diz que não envelhece, talvez por ter ambas características e ser o mais belo possível - principalmente pelo fato de ter uma psiquê/ alma. Sendo um texto que aborda um assunto possivelmente mais complexo do que o "Sofista" e talvez do mesmo nível de dificuldade de "Parmênides", para um entendimento completo, eu sugiro que leiam o "Timeu" (e obras mais "básicas" de Platão, como "A República") e não se limitem a este meu resumo.

O astrólogo segue, dizendo: "A alma tendo sido tecida ao longo de todo uranon* em todas as direções, a partir do centro para a extremidade (certamente de sua forma esférica) e o envolvendo circularmente a partir do exterior, e ela mesmo girando dentro de si mesma, desencadeou um começo divino de vida incessante e inteligente que dura por todo o tempo."

*(O tradutor Edson Bini parece certo ao assumir que esta palavra se refere a céu, mas no sentido de universo e não da atmosfera típica da Terra); Referente ao movimento da alma que expande do centro às "extremidades" e gira dentro de si, tive uma dúvida se não poderia ter a forma de um toro.

O corpo do universo então é visível, mas sua alma (psiquê) é invisível e composta pela mescla do idêntico, do ser e do diferente. A psiquê "reage" toda vez que entra em contato com algo, seja dispersável ou indivisível. Os círculos que se formam a partir da alma do universo (e seus movimentos giratórios mencionados anteriormente) realizam 2 tipos de movimentos diferentes entre si - o externo relacionado ao idêntico e o(s) interno(s) relacionado(s) ao diferente. Embora tais explicações possam parecer um devaneio ou algum sistema filosófico ultra complexo, neste ponto do texto, o que o autor classifica como idêntico parece relacionar-se com o conceito de eterno, imutável/ uno, pois está vinculado ao movimento circular externo do universo classificado como uma esfera com psiquê; Já o(s) movimento(s) interno(s) estão vinculados com tudo o que é perceptível no universo, ou seja, o mutável, deteriorável, divisível etc. O que faz algum sentido, já que as formas de vida certamente existem dentro do universo e interagem em seu espaço com os corpos e com os sentidos. O movimento externo então ocorreria em contato ou relação com a atividade racional/ cognitiva da psiquê e gerariam o conhecimento e o entendimento, enquanto os movimentos internos surgiriam vinculados ao perceptível e gerariam as opiniões e convicções sólidas;  

Traçando um correlação entre a alma do universo (uranon psiquê) apresentada em Timeu e a alma humana, nota-se que ambas são internas em algum nível, mas a psiquê do universo indica que a parte "externa" de sua alma está conectada a algo superior. Primeiro porquê é do seu movimento que surge o entendimento / o conhecimento e isto está de acordo com o alcance da psiquê apresentado por Platão nas obras Fedro, A República e Fedon: A alma é capaz de alcançar cognoscivelmente as virtudes compostas de valores universais imutáveis e também pode alcançar o hiper ouranos, ou a "morada dos deuses". Platão então não teria usado a Parábola da Caverna somente para explicar o processo da ignorância ao conhecimento/ ao saber, mas também para indicar o acesso a uma realidade superior, divina, mais excelente, eterna, através do despertar da ética e do viver os valores universais (justiça, moderação, coragem, bondade/ beleza). A analogia do libertar-se de uma vida onde só se enxergava formas bidimensionais (sombras) para nossa realidade tridimensional serve para comparar a finalidade de nossa inteligência com a ética e a espiritualidade. Além disto, também utiliza-se de uma linguagem não só filosófica, mas também alegórica (simbólica, de modo similar aos "mitos") para relacionar a geometria com estes temas. Assim, a forma do universo apresentada em Timeu como uma esfera tridimensional e uma representação do eterno parece de acordo com outros argumentos de Platão, também mostrando um diálogo com perspectivas menos racionalistas e mais místicas/ míticas (do diálogo Fedro por exemplo). Por fim, o que haveria além do universo tridimensional? Platão parece insinuar na obra Parmênides: (um)a quarta dimensão...

O astrólogo/ astrônomo então diz que o pai que gerou o universo, ao vê-lo em movimento decidiu torná-lo mais semelhante ao seu modelo: uma imagem (eikona, que significa ícone) móvel da eternidade (aionon, palavra relacionada aos termos aeon/ eon), e essa imagem, se movendo de acordo com o número, é o que chamamos de tempo (chronon).

Este trecho está de acordo com as obras Filebo e Político, onde o autor indica que o meio termo entre o uno e o mutável e/ ou entre o finito e o infinito, é o enumerável (passível de ser contado) - de certa forma os números, não em suas representações gráficas ou vocais, é claro, mas como "conceitos naturais" ou elementos da realidade, particularmente do tempo. 
Classificar o tempo como algo entre o infinito e o finito (etc), não parece contradizer conceitos modernos onde o espaço/ tempo é uma curvatura. Embora o tempo e o espaço se relacionem se mesclando em algum nível (ou sendo aspectos de uma coisa só), o tempo seria sua porção não sensorial: como indica Bergson, séculos após de Platão, percebemos o tempo mentalmente independentemente dos sentidos (afirmação citada também pelo astrofísico e filósofo Arthur Eddington, que escreveu sobre o impacto filosófico da teoria da relatividade). Enquanto o espaço/ tempo é relativo (tudo que está inserido nele ou faz parte dele, está em movimento), há algo absoluto além dele. Utilizando-se de uma comparação similar à que Platão faz em A República, onde as sombras e imagens bidimensionais são menos reais do que nossa realidade tridimensional, a realidade tridimensional seria da mesma forma (menos real) se comparada com uma "quarta dimensão", que certamente é provável matematicamente, mas não é experimentável sensorialmente - Mesmo porquê um corpo tridimensional por si só não poderia interagir plenamente com uma realidade quadrimensional. Platão indica que a psiquê (seja humana ou "cósmica") é o elemento capaz de interagir com que há além da realidade sensorial, ou seja, (além d)o espaço tridimensional.
Talvez na obra Timeu, o autor tenha comparado a realidade perceptível/ sensorial do universo com a "realidade atômica" ao descrevê-la como tendo vários "movimentos" ao invés de um "movimento único" como a psiquê. Poderiam esses vários movimentos se referir de alguma forma às partículas/ subpartículas dos átomos que constituem toda a "matéria" no espaço tridimensional?

Após iniciar a explicação do tempo, Timeu fala do movimento dos astros, obviamente incluindo os planetas, e que o movimento de todos esses corpos celestes no cosmo geram o dia, a noite etc. Vale notar que a palavra grega "planeta" significa errante, ou seja, "que se move". Claro, que Timeu sendo um astrólogo e vivendo em uma sociedade politeísta (as cidades estado helênicas do século 4 a.C.), concebeu os planetas certamente dentro de uma teoria geocêntrica e como possuidores de alma e também, como "uma raça celestial de deuses" (ouranion theos genos). O termo deuses aqui não se refere a seres eternos e sim a seres gerados pelo Demiurgo. Além disto, em variados textos de Platão é possível discernir um Deus superior, como no diálogo entre Sócrates e Filebo, quando nous (a Inteligência Divina) é elevada ao "status" sublime, por trás da causa de todas as coisas...
Depois de teorizar sobre os movimentos dos astros/ planetas e mencionar raças vinculadas aos 4 elementos, Timeu afirma que todas almas foram criadas com uma qualidade secundária ou terciária em relação à uranon psiquê (alma do universo). Apesar disto, Timeu afirma que todas essas almas nascem de maneira idêntica entre si e que todas recebem o mesmo tratamento, insinuando uma equidade entre as almas nascentes no universo. E, como era de se esperar da "Grécia" clássica do século 4, seja por influência do orfismo, do pitagorismo ou de outra cultura estrangeira reencarnacionista (celta, hindu etc), Timeu diz que se a alma que nasceu como um homem resistir todos os vícios (hedonismo, injustiça, crueldade etc) ela poderá renascer em um astro posteriormente para viver uma vida venturosa. Mas se falhou nesta tarefa (vida, encarnação), ele renascerá como mulher. Novas falhas regrediriam a alma a futuras transmigrações da alma para formas de animal ou de elementos mais rústicos. Obviamente neste início de século 21, isso seria uma ideia preconceituosa (misógina), além de simplória e pessimista; Já que a evolução das espécies demoram centenas de milênios para acontecer, faria muito mais sentido a teoria espírita da reencarnação* que indica que uma alma humana muito dificilmente reencarnaria como um animal, pois essa transição dos primatas para uma forma hominídea ficou milhões de anos no passado. *(preferencialmente do século 21, já que a teoria do século 19 dialogava com o racismo científico da Europa) 

Timeu parece retomar o tema dos planetas como "uma raça deuses" com alma, porém agora responsáveis por moldar os corpos dos seres vivos. Tal processo seria gradual e conturbado, indicando uma ligação com o surgimento das sensações (aisthesis) e talvez com a ideia de que as primeiras formas de vida foram mais rústicas, até chegarem nos animais passando para os seres humanos. O personagem compara estas conturbações da psiquê universal ou planetária com o processo da alma humana que nasce em um bebê desengonçado e com devidas limitações cognitivas, até se desenvolver em um adulto. Estas imperfeições e/ ou confusões da alma/ psiquê humana porém, podem ser corrigidas com uma boa educação (certamente indicada no diálogo "A República"). Se forem corrigidas a pessoa se torna íntegra e sadia, mas caso contrário, sua psiquê acabará retornando imperfeita e tola ao Hades (o "mundo dos mortos" ou realidade espiritual)... 
Após explicar sobre os planetas (os errantes, traduzidos como raça celestial de deuses, embora me pareça possível chamá-los de gerados pelo deus celestial), o astrólogo Timeu fala sobre a alma desta "raça criada majoritariamente de fogo que irradia o maior brilho e beleza" (Timeu descreveu os errantes como a raça ligada ao elemento fogo, ao lado das raças que caminham no ar, nas águas e sobre o solo). Ele cita um processo de conturbação da alma (psiquê) como um dos culpados da falta de inteligência no universo (nos planetas/ errantes e/ou nos humanos). Após a redução do fluxo (e revoluções) responsável pelo desenvolvimento "psíquico", a tranquilidade e a inteligência seriam restauradas de acordo com sua explicação; daí o porquê ele compara este processo com o desenvolvimento da criança até se tornar adulto. 
44e-47e Na sequência Timeu explica sua teoria de como teria surgido a raça humana, particularmente o porquê de sua forma hominídea/ bípede; A cabeça seria a parte mais soberana e divina do corpo humano enquanto os membros servem para locomoção e transporte. Ao falar da parte frontal do corpo humano, Timeu descreve a teoria da visão típica da "Grécia clássica" (séc. 4 a.C.), onde o corpo teria algum tipo de chama interior e os olhos emitiriam alguma luminosidade a partir de uma chama também. Interessante notar que as explicações sobre a visão na obra "A República" (seja nas parábolas da Caverna, das Imagens ou do Sol) não seguem necessariamente essa interpretação típica de seu tempo. Não digo que contradizem - elas somente não citam nada sobre uma chama no interior do corpo ou dos olhos e não precisam da explicação errônea do funcionamento da visão, típica da Grécia clássica.
Após explicar a visão, o personagem elogia tal capacidade sensorial (de modo mais intenso do que em outras obras platônicas, como Menon), afirmando que a observação de todos fenômenos astrológicos/ astronômicos (o céu, os astros, o sol, o dia, a noite etc) deveriam inspirar o ser humano a trabalhar sua psiquê/ alma. Ele também afirma a importância da audição e do som porque possibilitam as artes do discurso (diálogo/ maiêutica, imagino eu) e das musas (músicas e possivelmente poesias). Tais artes servem para que o ser humano alcance a harmonia de sua psiquê e evite o uso desta para prazeres irracionais. O ritmo teria sido acrescido aos sons pelas divindades para auxiliar o ser humanos nas finalidades citadas.
Como este texto ficou suficientemente longo, continuarei as observações sobre "Timeu" em uma próxima postagem.

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