Uma breve análise da epistemologia espírita

Conforme expliquei em um texto anterior, decidi analisar o espiritismo fundado por Allan Kardec na França não como mera religião, nem como uma área (não) aceita na ciência, mas como uma tentativa de construir conhecimento (um tanto filosófico) sobre uma série de fenômenos. A síntese apresentada aqui toma como base um texto do autor escrito em sua Revue-spirite journal d'etudes psychologiques de 04/1864: 

 "1. ─ O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações." 
 
 Como citei anteriormente, ao observar uma série de casos e relatos na França do séc. 19, o espiritismo iniciado por Kardec não partia da certeza da "não existência" da alma e dos espíritos. Mesmo porquê pressupor inexistências é se apoiar em negações e contradizer a filosofia em sua raiz platônica. Claro, que alguns podem afirmar que a ciência após Kardec conseguiu rastrear "áreas ativadas" no cérebro quando a pessoa tem alucinações ou supostas alucinações, mas o espiritismo trata de fenômenos mais complexos e amplos do que visões ou audições individuais. O espiritismo em sua postura de não pressupor inexistência, se aproxima da construção de conhecimento da filosofia ocidental em sua raiz/ cerne, que propunha a presunção da ignorância ao iniciar uma investigação. Além disto, ao buscar construir conhecimento de modo mais próximo à raiz platônica da filosofia, o espiritismo acaba demonstrando uma semelhança de postura básica com a suspensão de pressupostos da fenomenologia lançada pelo filósofo e matemático Edmund Husserl (1859-1938). Tal postura inicial para se investigar fenômenos que lidam com o psiquismo humano se mostra universal, pois não relega saberes e relatos relacionados à espiritualidade de diferentes culturas ao status de meras mentiras ou psicopatologias.
E porque Kardec fala de "consequências morais"? Certamente por 2 motivos: Os fenômenos ou relatos estudados envolviam frequentemente a psiquê humana - psicografar, observar objetos se mover com padrão inteligente sem interação de corpos, ouvir vozes, ter visões com ou sem espacialidade (este último caso, é a "percepção" mental, chamada de clarividência ou clariaudiência pelos espíritas) etc. Além disto, vários temas envolvendo a psiquê (a alma encarnada ou desencarnada, de acordo com o espiritismo) tocam questões morais e portanto éticas - assunto da filosofia e não da ciência de pressupostos e métodos reducionistas; 

 "2. ─ Os Espíritos não são, como por vezes os imaginam, seres à parte na criação. Eles são as almas dos que viveram na Terra e em outros mundos. As almas ou Espíritos são, pois, uma só e a mesma coisa, de onde se segue que todo aquele que crê na existência da alma, por isso mesmo crê na dos Espíritos."
 
 Isto diferencia o espiritismo de parte das religiões cristãs institucionalizadas, como a católica e a evangélica. Baseando-se nos textos do evangelho, não há consenso se Jesus, que recebeu o título de Cristo - base dos termos "cristão" e "cristianismo", definiu os espíritos como seres à parte na criação ou não. Sem um consenso referente aos textos do evangelho atribuídos aos apóstolos de Jesus, certamente restam somente interpretações e ideias propagadas por religiosos que viveram séculos após Jesus. Tais interpretações dos evangelhos são obras dos "pais da igreja" ou pré suposições impostas nos concílios da igreja ao longo da história antiga ou medieval. Partindo da lógica que temos alma e esta é imortal, o espírito em nada difere da alma. Chamar separadamente o espírito ligado ao corpo (encarnado) de alma e o desencarnado de espírito não tem utilidade no espiritismo. 

 "3. ─ Geralmente as pessoas fazem uma ideia muito falsa do estado dos Espíritos. Eles não são, como alguns pensam, seres vagos e indefinidos, nem chamas, como fogos-fátuos, nem fantasmas, como nos contos de aparições. São seres semelhantes a nós, com um corpo como o nosso, mas invisível e fluídico em estado normal."
 
 Este tema é melhor explicado em outras obras como o Livro dos Espíritos. O espírito é incorpóreo - de modo similar a nossa atividade mental: ninguém pode pegar um pensamento ou sentimento com um bisturi e dividi-lo - apenas é possível rastrear seus efeitos eletroquímicos no sistema nervoso, pelas sinapses e talvez pelos campos eletromagnéticos do coração, do cérebro etc. A pré suposição dominante na ciência no mínimo desde a época de Kardec, é que a mente é o cérebro, ou que não há mente nem alma: só o cérebro e o corpo humano. Tal pressuposto afirma que se algo não é observável nem reprodutível sob controle humano, não existe. Deste modo a ciência nega o conceito de alma e contradiz a raiz da filosofia ocidental (Platão, por exemplo), pois também reduz a ética e os valores universais ao status de opinião e valores individuais. 
 O corpo "fluídico" citado, que dá a forma ou aparência ao espírito, é explicado, ou teorizado, a seguir. 

 "4. ─ Quando a alma está unida ao corpo, durante a vida, tem um envoltório duplo: um pesado, grosseiro e destrutível, que é o corpo; outro fluídico, leve e indestrutível, chamado perispírito. O perispírito é o elo que une a alma ao corpo. É por intermédio dele que a alma faz o corpo agir e que percebe as sensações experimentadas pelo corpo."
 
 O espiritismo não nega a existência do corpo nem argumenta que este só existe quando percebido por outrem. Assim o espiritismo, embora dê uma ênfase ao espírito, não é um pressuposto meramente idealista nem exclusivamente mentalista, fazendo alegações como: só o espírito é real, todos os corpos são ilusões ou coisas do tipo. Ele simplesmente vai além do materialismo, indicando a importância da alma/ espírito, de modo parecido com os estudos de Platão, que ao mirar no que é uno e imutável (a ética), acabou indicando a imortalidade da psiquê (termo que engloba alma e mente, unindo-os como un só coisa) e a importância do cognoscível. 
 O conceito de perispírito pode parecer mais polêmico por se tratar do que há entre o corpo e a mente (alma), que é uma discussão no mínimo desde a época de René Descartes (1596-1650). Certamente por também não detectar este agente intermediário sob uma investigação controlada (empírica), ocorreu a predominância dos pressupostos materialistas na ciência - ao estudarmos a história da filosofia e da ciência desde Descartes até a época de Kardec, isto fica claro. 
 Note que a utilização do termo "fluídico" é restrita à época de Kardec, principalmente aos espíritas, mas têm semelhanças e possíveis relações com os estudos de Franz Mesmer (1734-1815). Mesmer teorizou que assim como os minerais podem ter magnetismo, os vegetais e os animais (ser humano incluso) também deveriam ter. Apesar de exercer alguma influência na sociedade ao tentar realizar "curas magnéticas", Mesmer foi criticado não só por não conseguir explicar toda sua teoria e prática, mas também foi difamado por opositores e discordantes de suas ideias. Kardec reconhece algum valor nas obras de Mesmer em uma de suas Revistas Espíritas e nestes mesmos editoriais, o professor francês estipula que o perispírito poderia ser explicado futuramente com novas descobertas sobre a eletricidade e o magnetismo. De fato, muitos anos depois, entre 1963 e 1968, David Cohen e James Zimmerman descobriram que órgãos do corpo humano, como o cérebro e o coração por exemplo, possuem um campo eletromagnético - porém os estudos de tais campos e sua respectiva finalidade e relação com atividades neuronais e/ ou psíquicas permanecem tímidos e recebem resistência de grande parte das áreas médicas como a neurologia etc. 

 "5. ─ A morte é apenas a destruição do envoltório grosseiro. A alma abandona esse envoltório como se deixa uma roupa velha, ou como a borboleta deixa a sua crisálida, mas ela conserva o seu corpo fluídico, ou perispírito. A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o homem. A alma e o perispírito, separados do corpo, constituem o ser chamado Espírito."
 
 Em inúmeras culturas espalhadas pelo globo terrestre desde antes das eras dos metais/ antiguidade existiram "xamãs" e outros indivíduos que lidavam com espíritos, fossem esses considerados "da natureza", de ancestrais, ou de ambos. Apesar das diferenças entre tais culturas, todas elas tinham um modo de lidar com a morte ou passagem deste mundo para outra realidade. Obviamente a explicação de Kardec sobre o assunto está mais para teórica/ dialética reflexiva do que empírica, uma vez que em sua época nem os campos eletromagnéticos dos órgãos haviam sido descobertos. O períspirito aparece em explicações espíritas de outros fenômenos além da "morte" do corpo. Tal argumento parece ser utilizado em casos onde espíritos interagem com corpos materiais como o das "mesas girantes" do século 19 que incitou a curiosidade de Denizard antes de escrever sobre o assunto. Estes fenômenos envolvendo o perispírito incluem pancadas, "possessões" e curas e parece ter relação com os de pessoas de épocas anteriores a Kardec, que mencionavam "maus ares" ou "gases sutis" para explicar casos de bruxas e seus animais familiares. Como exemplo deste tipo de argumento existem algumas obras peculiares de Joseph Glanvill (1636-1680) que apresentem ideias certamente mais rústicas e imprecisas do que as da época de Kardec - afinal na Europa do século 17, quando ocorriam variadas caças às bruxas seguidas de execuções, era mais difícil criar toda uma teoria sobre o espírito sem ser ameaçado pelo poder das igrejas. Para Kardec então, o ser encarnado é o espírito com seu corpo "fluídico" (períspirito) mais o corpo (material), enquanto o ser desencarnado é só o espírito e seu respectivo períspirito. O autor constrói tal argumento sem contradizer a ciência de seu tempo, pois existiam e ainda existem grandes lacunas no conhecimento e muitos temas a serem descobertos e investigados. 

 "6. ─ A morte do corpo desembaraça o Espírito do envoltório que o ligava à Terra e o fazia sofrer. Uma vez livre desse fardo, ele tem apenas o seu corpo etéreo, que lhe permite percorrer o espaço e transpor distâncias com a rapidez do pensamento."
 
 Kardec chamava o perispírito de corpo etéreo, possivelmente porque o conceito de éter era aceitável na ciência de seu tempo, mas neste parágrafo abordarei mais o conceito de espírito/ alma. 
 Utilizando-se dos "médiuns ativos", Kardec em sua época, dialoga com espíritos que explicam alguns pormenores de como os espíritos percorrem distâncias e tais assuntos foram publicados em algumas edições das Revistas Espíritas. Resumidamente, o espírito desencarnado, que tem só seu corpo "etéreo" ou "fluídico" ignora praticamente todos obstáculos materiais, porém a locomoção parece influenciada conforme seu desapego ou apego ao mundo corpóreo/ material e conforme suas afinidades com ideias e princípios de outros espíritos encarnados ou desencarnados. A "vida após a morte" ou sobrevivência da psiquê, também abordada em antigas obras da filosofia, é um assunto que trabalha a esperança: A esperança de reencontrar seres amados, de justiça ou de novas chances para se viver. Apesar disto, ela lida com o desconhecido, por isso a opinião humana varia muito sobre o tema: desde medo diante o desconhecido, até dúvida, recusa ou desprezo por tal ideia. A verdade é que o conceito de "não existência" do espírito e de sua imortalidade parece ter ganhado força gradualmente nas elites intelectuais e econômicas da Europa na Era Moderna, mais especificamente na transição da renascença ao iluminismo. O conceito de não existência não é uma construção de conhecimento, como já mencionado neste texto: De acordo com Platão, tudo o que é desconhecido ou onde há dúvida, é passível de ser investigado; Não se pode afirmar sobre a inexistência de algo, pois se algo não existe, não pode ser conhecido. Portanto afirma-se sobre o que se conhece e o resto se investiga (não só cientificamente, mas filosoficamente) ou fica restrito à mera opinião. 

 "7. ─ O fluido que compõe o perispírito penetra todos os corpos e os atravessa, como a luz atravessa os corpos transparentes. Nenhuma matéria é obstáculo para ele. É por isso que os Espíritos penetram em toda a parte, nos lugares mais hermeticamente fechados. É uma ideia ridícula crer que eles entrem por uma pequena abertura, como o buraco de uma fechadura ou a chaminé."
 
 Cientificamente parece que era (e certamente ainda é) impossível abordar tal tema. Apesar de especular sobre a relação do perispírito com a eletricidade e o magnetismo em alguns de seus textos no Livro dos Médiuns e Evocadores e nas Revistas Espíritas, Kardec constrói tais argumentos via diálogo e reflexão, sem análise sensorial amplamente aceita: uma ou outra pessoa pode alegar sentir algum estímulo sensorial de origem desconhecida que poderia ter relação com o conceito de perispírito, mas fenômenos públicos deste tipo são muito raros e não reprodutíveis, devido a origem psíquica/ intencional relativa ao(s) espírito(s). Também vale relembrar que a física (ciência) da época de Kardec era newtoniana: tratava o espaço (tridimensional) como algo absoluto e assim ficava difícil imaginar que os espíritos fossem independentes do espaço. 

 "8. ─ Os Espíritos povoam o espaço. Eles constituem o mundo invisível que nos rodeia, em meio ao qual vivemos, e com o qual estamos em contato incessante."
 
 Como mostrado anteriormente, os espíritos podem interagir através do espaço, mas certamente não se limitam a ele - esta era uma possível interpretação com limitações típicas da maior parte do século 19; O astrofísico germânico, Johann K F Zollner (1834-1882) teorizou que alguns dos fenômenos "mediúnicos" poderiam estar relacionados à quarta dimensão, mas não obteve grande aceitação no meio científico por variados motivos. Tal conjectura não é impossível, mas parece ficar em um impasse; Apesar da quarta dimensão " ter sido uma descoberta matemática que serviu de base para Hermann Minkowski (1864-1909) explicar o "tempo quadrimensional", posteriormente utilizado na teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), ela se trata de algo não investigável pelo método empírico. Assim tal saber certamente permanece pouco conhecido e relegado ao campo de teorias ou taxado como sendo de pouca aplicabilidade. 

 "9. ─ Os Espíritos têm todas as percepções que tinham na Terra, mas em mais alto grau, porque suas faculdades não são amortecidas pela matéria; têm sensações que nos são desconhecidas; veem e ouvem coisas que os nossos sentidos limitados não nos permitem ver nem ouvir. Para eles não há escuridão, salvo para aqueles cuja punição é ficarem temporariamente nas trevas. Todos os nossos pensamentos repercutem neles e eles aí leem como num livro aberto, de sorte que aquilo que poderíamos ocultar a qualquer um quando vivos, não o podemos mais, se ele é Espírito."
 
 Kardec detalha melhor as percepções dos espíritos ao longo de suas obras (revistas inclusas) - Resumidamente ele explica que a moral (que não é algo meramente individual, portanto trata-se de valores universais e ética) influencia na percepção dos espíritos: quanto mais ético/ puro (justo, benevolente etc), mais apuradas as percepções do espírito. De fato é mais difícil ocultar pensamentos e atividades mentais ante um espírito pois estes independem dos corpos, mas mesmo isto tem algumas variações conforme as explicações da obra espírita (de afinidade, possível nível moral do espírito etc). Por fim, a "punição" é um conceito perigosamente simplório: é claro que há justiça tanto na visão espírita como há nas religiões e na filosofia; mas vale lembrar que Kardec e os demais espíritas se pautam principalmente nos ensinamentos de amor piedoso de Jesus e este diz "nem meu Pai julga" e "hipócrita, tirai primeiro o ramo do próprio olho, e então verá o cisco no olho alheio". Desta forma, a "punição' é entre o indivíduo que erra e a lei divina, pois "aquele que se orgulha de sua obra má, teme a luz e foge para a escuridão" - o espírito moralmente inferior nada pode ocultar daqueles que são verdadeiramente benevolentes, justos e piedosos. Estes são alguns indícios (entre outros) de que o espiritismo também está de acordo com a filosofia de Platão - para o filósofo, as virtudes ou excelências como a coragem, a moderação/ auto controle, a justiça e a bondade/ beleza psíquica estão relacionadas à verdade, pois são imutáveis (não se desgastam com o tempo) e unas (universais, não relativas nem meramente individuais). O hiper ouranos citado por Platão na obra Fedro, faz alusão a uma dimensão não só alcançada por algum tipo de transe ou estado alterado da consciência (as manikes e mantikes aobrdadas no texto), mas também a uma realidade sem malevolência onde os "deuses" viveriam.

 "10. ─ Os Espíritos conservam as afeições sérias que tinham na Terra. Eles sentem prazer em voltar para junto das pessoas que eles amaram, sobretudo quando são para elas atraídos pelo pensamento e pelos sentimentos afetuosos que lhes são dedicados, ao passo que são indiferentes em relação àqueles que lhes votam apenas indiferença."
 
 O amor sincero e sem interesses particulares é um exemplo de afeição que se propaga através do espírito para além da mera vida material. Este argumento aborda a importância de bons sentimentos como esperança, amor e serenidade e está de acordo com os ensinamentos de Jesus e até mesmo de outras religiões. Uma visão mais universal como esta tem maior abertura ao diálogo inter religioso pois trata-se de uma espiritualidade aberta e ética. Aqui também nota-se que o espiritismo não trata só da perspectiva racional da consciência, pois aborda os sentimentos de modo transcendente, para além da vida corpórea;

 "11. ─ Os Espíritos podem manifestar-se de muitas maneiras diferentes: pela visão, pela audição, pelo tato, pelos ruídos, movimento de corpos, escrita, desenho, música, etc. Eles se manifestam por meio de pessoas dotadas de uma aptidão especial para cada gênero de manifestação, e que são designados pelo nome de médiuns. É assim que se distinguem os médiuns videntes, falantes, audientes, sensitivos, de efeitos físicos, desenhistas, tiptologistas, escreventes, etc. Entre os médiuns escreventes há numerosas variedades, conforme a natureza das comunicações que são aptos a receber."
 
 Em outros pontos de sua obra, Kardec admite que todo ser humano é médium - o que difere cada um é a frequência e intensidade com que ocorrem as percepções/ contatos mediúnicos; Muitas pessoas podem passar toda uma vida sem perceber fenômeno algum, outros podem confundir; alguns podem ter por um determinado período, enquanto outros têm pela vida todo; Os motivos são os mais variados possíveis, pois envolvem necessidades particulares e coletivas, estágio psíquico e moral que se encontram as pessoas, disponibilidade, cultura etc. Ao longo de sua obra Kardec mostra um certo esforço em classificar os médiuns, mas isto tem as limitações de sua cultura e época.

Entender o espírito humano como incorpóreo não completamente a parte do corpo, mas em relação com este, possibilita uma postura de respeito verdadeiro às áreas da ciência e às religiões - pois o espiritismo trazido por Kardec não é uma religião com hierarquias ou ritos e tem poucos pressupostos ou dogmas: A imortalidade do espírito, a reencarnação e Deus onipresente e não-pessoal, baseado nos ensinamentos de Jesus os quais não detalharei aqui; 
Embora seja possível afirmar que não existam "provas" suficientes de um agente intermediário entre corpo e mente, o conceito de perispírito não é menos provável que o materialismo que reduz a vida ao corpo e aos efeitos eletroquímicos neste. Não foram encontrados marcadores biológicos para todos problemas mentais do ser humano e reduzir sentimentos e sentido existencial a meros efeitos neurológicos é negar cosmovisões, portanto é uma postura antiética. O materialismo, seja um empirismo ou qualquer outro que nega o psiquismo e o espírito, pode afirmar que busca construir um conhecimento com "rigor científico" baseado em "evidências", mas em última instância se apoia em negação e impõe uma visão da realidade que apesar de contrária às religiões em geral, é tão dogmática como muitas visões religiosas da realidade. 
 Embora Kardec não se empenhe em discutir a construção de conhecimento comparando pressupostos, que de certo modo, são pré suposições, Platão o faz ao longo de sua obra, e mais profundamente em  seus textos "Teeteto" e "Sofista". O filósofo grego indica que reduzir tudo à matéria ou ao espírito, são teorias incompletas e assim propõe uma construção de conhecimento aberta, pautada por valores universais, unindo epistemologia, ontologia e ética.
Por sua vez, ao invés de negar visões de mundo, o espiritismo possibilita um enfoque na ética, não muito diferente da filosofia iniciada por Platão: O ser humano deve trabalhar sua moral individualmente de um modo pedagógico e também filosófico, e isto não o isola da realidade material, portanto, ele deve se desenvolver eticamente nas relações em geral; Quando colocado em prática, este trabalho com uma postura universal do ser humano resulta em uma sociedade/ civilização mais justa, equitativa e enfim, ética. Assim o espiritismo não se reduz a um campo da ciência nem a uma religião, ele serve de base epistemológica respeitando normalmente outras áreas do conhecimento, simplesmente reconhecendo uma realidade para além da material. Trata-se de um "pressuposto" ou base teórica mais aberto(a) e portanto mais amplo do que os exclusivamente materialistas ou idealistas, possibilitando diálogo com diversas culturas e com a espiritualidade em geral, seja religiosa ou não. 
Ainda que Kardec pudesse discordar de pontos de uma ou outra religião, em seus textos, ele indica que o tempo mostrará quais estão mais ou menos certas - isso é evitar impor sua visão de realidade sobre os outros - elemento ausente em muitas religiões e na corrente principal da ciência que é materialista, relegando todo relato/ argumento espiritual à condição de alucinação (estado patológico etc) ou à mentira.

Em um próximo texto devo completar a análise deste artigo de Kardec e trazer reflexões filosóficas sobre o que deve haver entre a psiquê humana e o corpo; Há quem diga que isto é questão de pressuposto, mas a importância de tal tema não deve se reduzir a uma mera "neutralidade" racional/ científica, pois não há epistemologia (construção de conhecimento) sem ética e consequentemente não há conhecimento, verdade ou justiça sem universalidade e sem filosofia. 

Ignorância não se combate só com ciência: É preciso filosofia

Ignorância não se refere só ao desinteresse em conhecimento, mas também o ato de ignorar as necessidades do próximo - de ignorar quem é diferente, ignorar pessoas de outras culturas etc. 
Por milênios o ser humano viveu na Terra de variadas maneiras diferentes - isto faz parte da universalidade humana, independente se o ser humano é mais emocional ou racional, mais curioso ou mais intuitivo. Tais fatores humanos individuais juntamente com suas relações sociais e ambientais, certamente foi o que gerou variadas culturas que viveram em períodos de maior ou menor harmonia.

Vejamos um fator humano e cultural notoriamente influente em nossa história: As religiões são algo muito antigo que existe em variadas sociedades humanas. Independentemente se você considerar o "xamanismo" de povos da "idade da pedra" ou as religiões politeístas após a construção de templos da antiguidade ou as igrejas cristãs que se formaram após os concílios do século 4 em diante na Europa. A diferença mais marcante entre estas religiões citadas é que o xamanismo era uma prática mais ligada à natureza e à ancestralidade enquanto as demais apresentam alguma hierarquia com uma ou mais autoridades religiosas. 
Sim, existiu um "cristianismo primitivo" sem igrejas entre os séculos 1 e 3, mas depois disto, a religiosidade cristã sem instituições sobreviveu de modo esparso em minorias pouco ou nada registradas na história humana, então voltemos a falar das religiões que foram institucionalizadas e cresceram; Estas religiões com autoridade as quais me refiro não incluem a religiosidade mística onde pessoas buscam um contato espiritual ou psíquico com o divino - aqui me refiro às igrejas onde bispos ou quaisquer outros sacerdotes usam sua posição de liderança como ferramenta de poder em grande parte do tempo; Isso não deve ser difícil de se estudar, mas não vou fazer um levantamento histórico mais detalhado neste texto.

Toda vez que vemos religiosos criticando pessoas ou grupos de outra fé ou pregando a sua própria religião como verdade absoluta, há um indício desta autoridade e também de um autoritarismo. Isto ocorre não somente por existir um ou mais líderes manipulando ou pressionando massas de fiéis para obter vantagens e/ ou fortunas, mas também acontece porque as pessoas que seguem tais líderes ou seguem as religiões das quais estes líderes alegam fazer parte, não refletem sobre autoridade, autoritarismo, liberdade religiosa etc. Estes fiéis, geralmente em grandes quantidades, se deixam levar por discursos emocionais que lhes dão uma identidade de grupo, que sustentam suas expectativas ou que lhes entregam um suposto pertencimento a um coletivo. Emoções são uma necessidade humana, bem como algum nível de relacionamento social (grupal, coletivo, seja em um grau  menor ou maior) e tal manipulação de "autoridades" religiosas se aproveita de tais necessidades, oferecendo supostas verdades que não exigem reflexão nem estudo. Isto é um fato, tanto é que muitos religiosos não leem os textos de sua própria fé (bíblia por ex.) ou leem somente com o viés e influência de um líder, seja ele pastor, padre etc. Assim se formam massas de pessoas que reproduzem falas preconceituosas e discursos segregadores ou conflituosos de "nós e eles".

Curiosamente muitos dos que gostam de estudar, ou ao menos, dos que dizem que priorizam o conhecimento, pouco ou nada atacam tais atitudes de religiosos: Praticamente não criticam a falta de ética das ações de manipulação ou de ganância de líderes religiosos nem criticam o fanatismo e as contradições éticas dos fiéis que seguem tais líderes/ religiões. Estes supostos estudiosos preferem afirmar sobre a inexistência de coisas, como de Deus, de uma realidade espiritual, de espíritos, de Jesus, de Moisés (de "profeta X, Y, Z"...) etc. Isto é uma contradição oriunda da falta do estudo filosófico, pois a filosofia que discute como se constrói conhecimento (epistemologia) não trabalha pressupondo inexistência(s) - ela investiga o que ela desconhece e afirma o que existe/ o que foi descoberto e entendido. 
Por um outro lado, recentemente neste final de 2025, um jovem gravou um vídeo na internet explicando que tentou argumentar com evangélicos anticomunistas e de direita. Ele teria explicado a história da política moderna (o surgimento da esquerda e da direita após a Revolução Francesa etc), indicando como os textos do cristianismo não possuem praticamente nada contra as práticas das ideologias e políticas de esquerda modernas. Os evangélicos (em resposta) teriam apelado para a ideia de que se trata de uma "guerra espiritual" para além da política e da vida cotidiana. O jovem aparentemente chocado, entendeu que tanto os líderes evangélicos conservadores de direita como seus respectivos seguidores ou fiéis não se importam mais com os fatos, porque sendo uma "guerra espiritual", nada do que acontece no mundo faria eles mudarem de ideia. De fato, ele tem um ponto, mas vale lembrar que se esses conservadores que compõem a direita religiosa, usam argumentos de suposto teor espiritual, então eles podem e devem ser combatidos dentro do tema espiritual. Nada impede alguém mais ético, ou seja, que respeite a universalidade seja da fé ou do direito à vida etc, refute as falácias de evangélicos de direita/ capitalistas a respeito de temas religiosos ou "espirituais". Os argumentos de guerra espiritual apresentados por conservadores e/ ou capitalistas ("direitistas" assumidos ou não) são obviamente mera retórica esvaziada de ética para defender religiosos enriquecidos, manter fiéis na ignorância e controlados e criar inimigos externos - sendo assim esses argumentos são uma questão filosófica de moral e ética e de discussão sobre o que é verdade e/ ou conhecimento; Não há necessidade de se prender exclusivamente a evidências ou a cientificidade para expor tais farsantes.
No final das contas, os estudiosos que criticam todos elementos da espiritualidade, caem no cientificismo que não é novidade alguma, pois existe ao menos desde o século 19; Se for para criticar as religiões, critique o que há de realmente nocivo nelas: líderes enganando massas para obter riqueza e status, contradizendo os ensinamentos de Jesus e seus apóstolos, "fiéis" se alienando em ignorância e em intolerância à universalidade etc. Indique o que é coerente e benéfico, ao invés de propagar uma "nova" ideologia dogmática baseada em reducionismos com discursos de cientificidade: O componente emocional e social que existe no simples conceito de religião não pode ser apagado exclusivamente por racionalidade nem por supostas evidências materiais - por isso o argumento tosco da "guerra espiritual" convence muita gente. Afinal espiritualidade e religiões existem há milênios sendo quase tão antigos quanto os sentimentos e as emoções, mas pessoas podem manipular tais conceitos impactando em suas expressões e práticas, assim como também podem mentir e omitir sobre qualquer outro tema, argumento ou ideia. A mera negação de todos elementos espirituais descamba no niilismo grotesco, que geralmente fomenta o hedonismo, a ganância, o armamentismo e/ ou mais egoísmos... 

A racionalidade e o estudo empírico (com evidências etc) são importantes sim, pois foram conquistas humanas principalmente da "era moderna" que durou aproximadamente desde 1430, quando a filosofia ocidental foi retirada do domínio da igreja e a imprensa chegou à Europa, até a Segunda guerra mundial (1939-1945). Neste período que durou cerca de 500 anos, a perspectiva racional do ser humano teve maior liberdade para se desenvolver, assim como teve maior responsabilidade: Sem a propagação e a consolidação da ética entre os seres humanos e em suas respectivas interrelações, o que se viu foram vários conflitos dominados por ganância e/ ou por rivalidades. Por causa disto é importante lembrar que foi a partir da combinação do gigantesco acúmulo de bens materiais em poder de poucos multimilionários e da fomentação de ideologias segregadoras (fascismo e capitalismo, por ex.) e de ideologias racistas, portanto biologistas e niilistas (nazismo e darwinismo social, por ex.) que a era moderna acabou em duas guerras mundiais. Ignorar isto, combatendo toda e qualquer religiosidade/ espiritualidade com mero dogmatismo científico sem ética e sem universalidade é retornar ao niilismo, a ideia de que nada existe além dos corpos materiais e do espaço tridimensional e nada importa além disto; Tal ideologia desembocou na criação de armas químicas e de destruição em massa que colaborou com as maiores tragédias humanas da história.
É impossível combater ignorância com tais ideias materialistas-niilistas, porque isto é combater o esvaziamento da solidariedade, da justiça e da equidade, com mais vazios! Não há racionalidade benéfica sem estes valores que são universais. Não há conhecimento ou verdade, sem ética e sem universalidade, portanto não há conhecimento ou verdade sem filosofia.

A formação psicoemocional/ afetiva e as perspectivas da consciência humana

 O porque vivemos numa era de propagação de mentiras (fake news) e de polarizações (rivalidade entre grupos de opiniões políticas, econômicas ou religiosas diferentes entre si)?

Certamente existem muitas causas e as mais notáveis são observáveis em nosso meio: através das mídias (internet, redes sociais, televisão...) Notícias falsas e mentiras espalhadas através de meios de comunicação em massa podem ser desde notícias que omitem informações importantes, matérias sensacionalistas para atrair leitores (ou cliques) ou difamações de determinadas pessoas ou grupos. Já as polarizações, ou mais precisamente, a criação e/ ou intensificação de rixas entre variados grupos de pessoas, ocorrem não só por diferenças entre opiniões políticas e religiosas, mas também pelo fator mencionado anteriormente: notícias falsas, omissões de informações que afetam o público/ a sociedade, sensacionalismo, propagação de mentiras para atacar alguns grupos em prol de outros etc. 

Mas estamos falando de seres humanos aqui e não de objetos ou coisas. Além dos interesses particulares de grupos que detém o poder de uma religião, de segmentos de mercado e empresas ou de partidos políticos, nós temos enormes quantidades de seres humanos com variadas expectativas, preferências, culturas, formações e vieses... Além das condições econômicas/ sociais, temos a educacional não só referente a escolaridade, mas também referente à criação e ao desenvolvimento humano. E desenvolvimento humano não é só biológico e/ ou social: ele é afetivo/ emocional, abrangendo parâmetro de sentimentos e da expressão destes/ das emoções, referência de bem estar psíquico e/ ou segurança psíquica, sentido existencial, de vida e coisas assim. Estas questões tidas como meramente complementares por muitos, na verdade são centrais para o ser humano;

Aqui falo partindo não só de minha experiência de vida, mas também da experiência como psicólogo; Cada ser humano que crê em uma mentira ou que consome conteúdo sensacionalista tem uma história de vida e possíveis motivos para aderir a tais "ideias". Sim, a educação adequada seria libertadora: aumentaria a chance de cada pessoa entender seu entorno para conviver em paz, com equidade de oportunidade e respeito à toda cultura e à toda forma de vida. Mas para além da educação nas escolas e faculdades, temos a educação "caseira" ou familiar. Esta começa desde que o ser humano é bebê, ou até mesmo desde quando está no ventre da mãe. Ela envolve o afeto, o respeito e a atenção à criança - um ser extremamente vulnerável que precisa da ajuda dos pais (ou de cuidadores). A fase vulnerável do ser humano então dura desde que ele está no ventre da mãe até a adolescência. Claro que há óbvias diferenças entre o bebê e o adolescente, pois este último está se tornando adulto, porém ambos estão em desenvolvimento e são dependentes dos adultos embora em diferentes graus. 

Abordemos a criança: antes de aprender a falar, ela começa descobrir o próprio corpo e o espaço em seu entorno. Ela tem necessidades apesar de não conseguir se expressar pela principal forma de comunicação humana, que é a verbal, seja falada ou escrita. Este deve ser um dos motivos pelo qual o filósofo, médico e psicólogo, Henri Wallon (1879-1962) identificou as emoções como um fator importantíssimo para a criança na fase em que ela ainda não sabe falar e quando começa aprender as primeiras palavras: o olhar, o semblante, as expressões faciais, o tom de voz (etc) são determinantes na comunicação, formando um parâmetro de sentimentos para criança e sua respectiva personalidade. Dependente em praticamente tudo, a criança precisa de segurança, esta que vem de seus pais ou cuidadores. Caso ela não tenha esta experiência, ou caso esta experiência seja severamente deficiente (por variadas razões ou motivos), a criança sofrerá consequências psíquicas - seja em seu parâmetro do que são emoções exprimíveis, do que é segurança, o que é felicidade...

Toda a experiência infantil molda esta significante parte da psiquê humana e se a expressão de sentimentos for danosa, a criança dificilmente consegue reparar tal dano; Imagine uma criança que nos primeiros anos de sua vida não foi bem acolhida pelos pais - Crianças tratadas como estorvo, com pais presentes só de corpo (ou menos que isso) e que dão só o mínimo de atenção, são exemplos de que praticamente não houve receptividade na relação. Se a criança é deixada chorando por qualquer sofrimento por períodos prolongados, sem perspectiva de alívio ou compreensão dos pais, há um impedimento ou tolhimento do desenvolvimento de esperança e por aí vai. Note que são exemplos que tem sua subjetividade, mas são importantes, pois vale lembrar que subjetividade não é mera relatividade e sim o que envolve questões psíquicas não expressas e/ ou reprimidas/ suprimidas por negações, desprezo ou abandono, violência explícita ou velada etc. Para piorar, além da violência contra criança poder ser sutil, ela pode ser cumulativa de diferentes formas ao longo da vida e obviamente isso deixa "marcas" ou sequelas certamente misturadas à personalidade do indivíduo que sofre tais violências.

Certamente alguns transtornos identificados pela psiquiatria e pela psicologia têm essa característica complexa e aí que deveria ficar claro que um mero tratamento medicamentoso não trata o indivíduo, muito menos cura ou resolve seu profundo problema ou transtorno psicoemocional. Casos como esse exigem uma psicoterapia certamente de longo período e um profissional não só tecnicamente competente, mas definitivamente humano. Humano aqui então denota a importância de uma empatia e também a importância da ética - dois temas difíceis de se discutir por uma perspectiva exclusivamente racional por uma abordagem estritamente científica, afinal neste ponto adentra-se a filosofia. Além disto, quando cito sofrimento psicoemocional, devo ressaltar que a emoção neste caso, pode ter uma origem histórica na vida da pessoa e não é algo totalmente separado de sentimentos, embora algumas pessoas possam pensar que emoções sejam expressões meramente imediatas ou breves enquanto os sentimentos são algo exclusivamente subjetivo e/ ou duradouro.

O psicólogo existencialista, Rollo May (1909-1994), em seu livro Love and Will, identifica dois aspectos das emoções e como esta se interrelaciona com os sentimentos. A partir do estudo de casos de seus pacientes, May entende que a emoção não é meramente um impulso pois pode ser uma indicação de um desejo não só de possuir algo, mas de formar algo. É neste ponto que ela se relaciona com o(s) sentimento(s), bem como com a imaginação e a forma de nos comunicarmos com indivíduos relevantes para nós, moldando nosso modo de agir e interagir. Assim, o primeiro aspecto das emoções é de força propulsora pois relaciona-se com o passado da pessoa, a determinação da experiência pregressa (infantil, arcaica...) e a causalidade de possíveis sofrimentos ou transtornos. Por isso, o autor afirma que a psicanálise lançada por Sigmund Freud (1856-1939), estava correta em identificar e reviver este aspecto primário da psiquê humana e sua importância essencial na psicoterapia. Rollo May porém não para aí, e possivelmente se distancia da psicanálise freudiana, ao indicar que o segundo aspecto, identificado como sentimentos, parte do presente para o futuro do ser humano: Isto porque tal aspecto envolve sentir ou captar o sentimento das pessoas com quem interagimos, possibilitando o trabalho da intuição, além de possuir uma intencionalidade (por isto o ser humano pode ter expectativas, esperança, finalidade etc). Como psicólogo existencialista, Rollo May não se limita a estudos de viés deterministas e usa de uma construção de conhecimento massivamente filosófica (desde autores clássicos até os modernos) para colaborar com a ciência psicológica. 

Há quem diga que a filosofia é um saber vago, outros podem afirmar que ela tem normas ou regras totalmente apartadas das ciências, mas na verdade nenhuma destas afirmações são verdadeiras. Partindo do primeiro corpo de obras preservado da filosofia ocidental, temos uma construção de conhecimento que não é fragmentada e nem é estritamente empírica, mesmo porque tal empirismo requer ênfase na materialidade, e consequentemente, na sensorialidade. A filosofia deixada por Platão nos oferece uma construção de conhecimento universal pautada pela ética, se deixarmos de lado os elementos de sua obra especificamente voltados às cidades/ estado gregas do século 4 a.C. Obviamente não seria caso de discutir Platão com possíveis pacientes da saúde mental, e sim, de estabelecer um ponto de partida ou base da construção de conhecimento para entender a psiquê humana, afinal não há ética alguma em reduzir o ser humano a um mero corpo ou a determinadas partes do corpo, como o sistema nervoso ou o cérebro, por exemplo. A filosofia ocidental nesta raiz ou base fundada por Platão, indica que não se constrói conhecimento partindo da afirmação de que algo não existe. 

É por via de uma série de argumentações/ diálogos que o autor chega à conclusão que a psiquê humana, seja mente ou alma, não se reduz ao corpo físico. Embora certamente houvessem limitações para se estudar a parte biológica do ser humano no séc 4 a.C, Platão entendeu que a psiquê poderia ser "dividida", ou mais precisamente, classificada em 3 níveis. Estes 3 níveis da psiquê são parâmetros não detalhados minuciosamente, que podemos entendê-los como o nível mais biológico, voltado para as necessidades básicas e obtenção de prazer corporal, um nível intermediário ligado à indignação (thymous), certamente mais emocional e talvez ligado ao coração; e um nível mais racional e de capacidade ética, o qual o ser humano alcançaria as virtudes, a universalidade do bem etc. Não se trata de dividir o ser em partes totalmente distintas entre si nem de considerar o entendimento platônico como um dogma, mas sim de lançar uma base de construção de conhecimento que respeite relatos para além da vida física - que respeite não só  comportamentos perceptíveis e emoções, mas também respeite sentimentos, sentido existencial e espiritualidade ou religiosidade humana.

Neste ponto volto a dar exemplos como psicólogo: tive 5 pacientes que me trouxeram casos cuja temática flutuava entre questões espirituais (ou religiosas) e psicológicas. Em nenhum deles eu impus minha cosmovisão ou pré suposição sobre o relato deles, bem como não reduzi as experiências deles a uma alucinação ou a mentiras como faria uma leitura estritamente materialista, empírica e/ ou biologista. Se a abordagem psicológica realmente é ética e tem a finalidade da melhoria do paciente, ela deve considerar o relato como uma possibilidade verdadeira. No exemplo que citei, 4 pacientes afirmaram não ter uma religião específica no momento e realmente consideraram a existência da alma humana e de uma realidade espiritual, enquanto 1 paciente religioso, preferiu entender seu próprio relato como uma alucinação da qual tirou um aprendizado. Tanto o contexto como o impacto das experiências de possível teor espiritual variou de paciente para paciente - cada experiência teve seu significado e em geral isso faz parte da perspectiva mística da consciência humana, bem como pode fazer parte de uma perspectiva mais simbólica, da forma de contar histórias sobre temas complexos e/ ou se expressar sobre temas profundos. 

A psiquê humana não é exclusivamente racional e é por isso que o ser humano precisa de afeto desde bebê. Questões afetivas se ligam aos sentimentos, às emoções e ao possível sentido existencial do ser humano. O sentido existencial, ou sentido de vida das pessoas ao longo da história parece que esteve atrelado à cultura e à espiritualidade ou religiosidade. Povos das estepes asiáticas, da tundra, celtas da antiguidade europeia, o xintoísmo antes de registros históricos, os yorubás da África ocidental, inuítes, mazatecas, incas, tupis e tantos outros povos da América... muitos deles tinham a espiritualidade vinculada ao estilo de vida, seja mais ou menos social. Entre os menos sociais certamente estavam indivíduos com estilo de vida mais recluso, enquanto as práticas religiosas mais sociais foram difundidas em grupos de indivíduos com certa padronização de ritos e/ ou de conceitos.

Além disto, em inúmeras culturas espalhadas pelo globo terrestre ao longo da história houve mitos sobre a origem do mundo, do cosmos, do ser humano e da vida. E também existiram práticas espirituais com estilos de vida em harmonia com a natureza muito antes de religiões iniciáticas ou das religiões institucionalizadas via construção de templos e hierarquizações - exemplos incluem a busca do espiritual ou do divino através de práticas de transe místico via música, dança, consumo de substâncias, recolhimento, meditações etc. Estas perspectivas místicas e míticas, citadas por estudiosos como Jean Gebser, não são necessariamente contrárias à perspectiva racional da consciência humana - Platão por exemplo trata de todas elas ao longo de sua obra: Fedro e Íon tratam do transe psíquico, da inspiração divina ou espiritual e da transcendência; Político e A República trazem exemplos da perspectiva mítica etc.

A perspectiva racional do ser humano então não é superior às demais - todas fazem parte da consciência. Povos dominados por outras perspectivas da mente produziram suas coisas boas e viveram em paz com outros povos e com a natureza por séculos ou milênios, assim como povos tomados por uma perspectiva mais racionalista, como as cidades-estado helênicas dos séculos 5 a.C. ao 2 a.C e grande parte das nações europeias do final do século 17 em diante conseguiram desenvolver tecnologias, elaborar complexas construções de conhecimento e estruturas sociais. O que faz com que povos falhem em conviver na Terra não é uma ou outra perspectiva, mas sim a falta de ética. Isto porque um dos pontos centrais da ética é a universalidade que significa uma moral para além do indivíduo e voltada à todos, ao coletivo, e portanto à diversidade de cultura, de espiritualidade e de perspectivas da consciência. Aqui o tema toca a psicologia novamente: um indivíduo que tem pouca adaptabilidade ao sistema sócio econômico (neo) liberal deve ser considerado doente? Transtornado? Talvez até meados do século 20, muitos pensassem que sim. Mas hoje, após a luta anti manicomial, às críticas à indústria farmacêutica, incluindo aos psicofármacos, já é possível ver o quão anti ético é menosprezar ou patologizar quem tem dificuldades em se adaptar às condições de vida de ideologia capitalista. Não só muita gente vem sofrendo ou adoecendo justamente porque vive dentro do sistema sócio econômico neo liberal, mas como muitos outros que vivem fora dele (indígenas, quilombolas etc) sofrem por serem pressionados a se submeterem a tal sistema. Não há ética, portanto não há progresso real em oprimir pessoas, seja em pequenas ou grandes quantidades. E não se trata só do sistema, mas também das ideologias por trás dele - o que se incentiva e o que é apresentado como verdade ou como mais importante. Quem define isto é a construção de conhecimento, também chamada de epistemologia, mas principalmente tomada pela ciência com o decorrer dos anos. A ciência é um saber de perspectiva racionalista, porém menos amplo e mais voltado à especialização, pois abandonou a abertura da filosofia de autores como Platão, René Descartes, Jan Amós Comenius, Viktor Frankl, Arthur Eddington e Jean Gebser, fechando-se em pressupostos reducionistas os quais não detalharei aqui. Apesar de suas conquistas benéficas e importantes ainda hoje no séc 21, a ciência é predominantemente vertical, bem como grande parte das religiões, a economia, a política, as forças armadas das nações e os meios de comunicação. Ela é imposta de cima para baixo com um diálogo (ou mais precisamente, um discurso) enviesado beneficiando a quem tem mais poder, seja econômico, político, religioso ou qualquer outro. Ao desconsiderar ou inferiorizar outras perspectivas da consciência, a maior parte da produção científica passa longe da horizontalidade. É compreensível que depois de séculos afastada destas perspectivas, os cientistas que são os principais construtores de conhecimento da atualidade, tenha dificuldade de se reaproximar de tais perspectivas. Porém o ser humano TEM um pouco de todas estas perspectivas em sua consciência - talvez porque seja uma tendência social e/ ou evolutiva, fazer uma integração delas, afinal como mencionei anteriormente, o bebê nasce com necessidades afetivas e estas necessidades são de emoções como expressões do sentimento e formação de um sentido existencial. Nem todos encontram sentido na vida, é claro, muitos vivem bem sem um sentido ou achando que não têm um. Outros sofrem ou adoecem, enquanto muitos não conseguem encontrar porque são oprimidos pelas ideologias por trás do sistema econômico e por trás da construção de conhecimento da saúde mental, seja ela psiquiátrica, neurológica, farmacológica, ou até mesmo (mais tragicamente e absurdo em minha opinião) psicológica. 

A psicologia é centrada no diálogo com o paciente - por isso ela é a última que deveria ser engolida por ideologias mecanicistas e/ ou segregadoras, sem universalidade, sem respeito à diversidade e sem ética. Os problemas trazidos por pacientes em psicoterapia sejam mais ou menos graves, possuem toda uma história de vida por trás, mas principalmente uma série de sentimentos, interpretações, gostos, valores entre outras questões que permanecem subjetivas por longos períodos de tempo. É preciso explorar todas essas camadas da psiquê humana com respeito e com finalidade ética. A ética não admite imposição de pressupostos nem de visões de realidade, sejam ateístas, religiosas, materialistas (etc), pois ela é aberta e por aberta não devemos entender aleatoriedade ou aceitação de toda fala sem crítica; Se trata de ser crítico mas universal e isto possivelmente é difícil porque exige esforço contínuo não só do paciente, mas do psicólogo como profissional de saúde mental e como construtor de conhecimento. 

Por uma Construção de Conhecimento Abrangente e Profunda

Este texto é uma tentativa de discussão filosófica sobre saúde mental, ética, visão de realidade (cosmovisão e pressupostos da construção de conhecimento), tomando como partida algumas experiências impactantes que eu tive entre os anos de 2016 e 2024. 

Uma Síntese de Minhas Experiências 

No ano de 2019 passei a buscar por uma espiritualidade por algumas razões que citei em outros textos. A maioria foram experiências psíquicas estranhas e difíceis, que não detalharei por enquanto, mas basta saber que as causas disso certamente foram minhas contradições que eu espero estar superando, bem como uma mentalidade distanciada da ética (espero estar me tornando mais ético também). Eu não tinha religião há muitos anos desde que abandonei o catolicismo quando eu cursava o ensino médio entre os anos de 1997 e 2000. Mesmo assim, devido à experiências estranhas que eu tive por volta de 2019, eu fui a alguns terreiros de umbanda por influência da minha namorada na época e depois frequentei um centro espírita por indicação de um amigo. Com a intensificação da pandemia de Covid e as necessárias medidas de segurança, tive que me virar sozinho predominantemente recluso em minha casa de março de 2020 até o final de 2021. Depois disto passei a frequentar missas e ações de solidariedade e certa assistência social até 2022 ou 2023, pois entendi que não há espiritualidade real sem uma busca por equidade entre os seres humanos... Mas por volta do 2º semestre de 2023, senti a necessidade de cuidar de mim mesmo; já havia tentado psicoterapia 3 vezes sem grandes resultados, pois meu problema incluia fatores para além dos meramente psicoemocionais: eram profundos, existenciais e espirituais. Busquei em uma "vertente" do Sanatana Dharma (vulgo "hinduísmo"), uma espiritualidade que incluísse a meditação, um auto conhecimento espiritualizado que se relacionasse não só com um sentido de vida, mas uma universalidade para além da solidariedade e equidade materiais. Em suma, eu precisei viver mais "mentalmente" e mais eticamente. 

Entre minhas contradições citadas anteriormente estavam entender intuitivamente o valor na amizade e de sentimentos bons como o amor e não viver de acordo com isto: Desde que terminei o ensino médio até o ano de 2019, eu buscava me adaptar ao sistema socioeconômico vigente (neoliberal) de ideologia capitalista e para aliviar minha insatisfação com esse tipo de vida comum e miserável, eu buscava prazeres - principalmente os mais corporais e certamente mais químicos como prazeres do paladar e do tato. Me soa até redundância afirmar que os prazeres eram em comer coisas tidas como saborosas e realizar atividades sexuais (estas últimas, tanto faz a parceira, mas havia uma ênfase na intensidade do prazer, seguida pela quantidade de prazer e quando acompanhado, preferia a mulher de "beleza padrão"). Os prazeres sensoriais mais sutis me agradavam, mas eu os desprezava por me parecerem menos intensos: músicas como as dos gêneros clássico/ sinfônico e trilhas sonoras, belas paisagens como as da natureza preservada etc. Prazeres são um tema que envolve valores individuais e portanto os tipos de música ou de paisagens não são regras aqui - refletem simplesmente minhas experiências. A vida então era arrumar um emprego, permanecer nele até quando os abusos dos superiores ficavam insuportáveis e gastar ao menos uma parte do dinheiro sempre que possível com os prazeres mencionados, ou seja, era uma vida que ignorava grandemente os sentimentos, a ética... e o sentido. Sim, era uma vida sem sentido e bastante contraditória, mas note que era socialmente aceitável: O "normal" do povo de todas nações neoliberais/ capitalistas é trabalhar, pagar as contas e buscar prazeres, principalmente esses mais intensos... ou mais toscos. Hoje vejo isso como uma vida animalizada, mas "não animal", afinal o animal age conforme seus limites que são principalmente instintivos. Já o ser humano é capaz de ser mais que isso e não me refiro meramente a racionalidade aplicada ao conhecimento técnico ou ao desenvolvimento de tecnologias. Todo ser humano tem uma noção do que é bom e do que é mal ao próximo, ou seja, sabe racionalmente ou intuitivamente o que é nocivo para a maioria dos humanos e o que é benéfico. Essa noção é psíquica e ética - não é meramente um instinto de sobrevivência biológica que encontramos nos animais. Sim, eu sei que algumas espécies de animais têm uma complexidade que lhes permitem comportamentos além do meramente instintivo/ de sobrevivência, porém não vou falar deles aqui, e sim do ser humano ou "homo sapiens", partindo de minha vida: Ela parecia animalizada até o ano de 2019, talvez como a de muitos seres humanos, mas depois de minhas "experiências estranhas" mencionadas, particularmente as ruins (porque ocorreram algumas boas também), eu tive que buscar algo mais. Esse algo a mais consiste em deixar os egoísmos de lado em prol de uma vida mais altruísta, mas que também priorize atenção, força de vontade, paciência... enfim, coisas que devem ser inferidas ou vividas sinceramente em nossa atividade psíquica/ interior. Estas coisas me parecem o que algumas pessoas chamam de virtudes. Virtudes, para quem não sabe, são valores universais e são universais porque fazem bem à todos. Não faz bem só para uma comunidade, grupo ou cultura, mas faz bem para toda a vida. 

A Importância da Psiquê e a Universalidade da Ética
Eu sei que valores universais e ética não são temas superficiais e sei que muita gente não aceita bem estas ideias e assuntos; Niilistas e relativistas, por exemplo, negam tais coisas, sejam por serem pessimistas ou derrotistas, ou por estarem sempre pensando em obter mais riquezas materiais e/ ou mais prazeres sensoriais. 
Por um outro lado, também nada animador, muitos dos ditos religiosos (os fiéis/ o povo) não se importam ou não entendem o que são valores universais e vivem em rotinas religiosas e/ ou em obediência à determinados líderes religiosos. Líderes religiosos enriquecidos pouco diferem de um mega empresário ou de um agente do estado (seja político, militar ou qualquer outro) corrompido.
Justamente por haver uma priorização do lucro, do dinheiro e da posição social é que a ética fica praticamente de fora das lideranças na sociedade/ economia neoliberal: Desta forma as pessoas em posição de poder econômico, religioso e político de nossa sociedade apresentam uma psiquê nociva às massas, pois viver principalmente para adquirir o máximo de bens materiais, para adquirir poder na sociedade e/ ou para desfrutar o máximo de prazeres sensoriais geralmente não inclui se preocupar com o próximo ou com um futuro a longo prazo e é comportar-se como se houvesse só a realidade "material". Isto parece indicar que em geral, tais pessoas não crêem que a mente exista além do corpo - A maior parte das pessoas em posição de poder devem acreditar na inexistência da alma, de uma realidade espiritual e de Deus e essa premissa da inexistência de vários ou todos elementos espirituais, não significa que todo materialista e/ ou ateísta seja anti ético, mas que a priorização da vida sensorial e material tridimensional (*) acima de todo e qualquer elemento espiritual e/ ou filosófico, interliga-se com a incitação ao imediatismo, à ganância, ao hedonismo e/ ou à indiferença ante aos valores universais como justiça, bondade, equidade etc; Sei que há pesquisas sobre a religiosidade das pessoas pelo mundo e que podem haver muitos religiosos que parecem indiferentes em relação à ética, mas onde há domínio da economia neoliberal de ideologia capitalista, parece que a maioria das pessoas vive como se fossem só o corpo perceptível sensorialmente: sem alma, ou mesmo sem uma mente abstrata (uma mente/ psiquê ou espírito não palpável, sem a possibilidade de ser dividida, decomposta etc), isto porquê há uma fomentação da busca incessante por dinheiro e bens materiais. 
Eu dificilmente conseguiria convencer as massas e sequer um materialista, de que a alma existe, mas sei de sua existência por via da experiência própria e também sei que é possível entendê-la por via do diálogo filosófico e sua respectiva construção de conhecimento. Porém ainda não vou me aprofundar em argumentos para explicar filosoficamente a psiquê - o que eu sei é que o uso da inteligência para ganhar rios de dinheiro prejudicando outros não é um bom uso da psiquê, porque esta, seja mente ou alma, não fará uso de fortunas materiais nem sequer se aproveitará de uma vida que prioriza os prazeres mais intensos ou mais corporais. 

Neste ponto farei observações mencionando mais a cosmovisão "espiritualista" da realidade, livre de dogmas das religiões e de pressupostos ou paradigmas dominantes na ciência. Mesmo porquê as "experiências psíquicas estranhas ou difíceis" que eu tive, ou são mediúnicas (de acordo com a espiritualidade livre dos dogmas das religiões) ou são "alucinações" (de acordo com a pré suposição dominante na ciência atual: materialista, que é também niilista e deduz que a vida é só biológica/ orgânica). E ao escolher uma visão de realidade, obviamente escolho a mais ampla que permite tentar buscar um entendimento mais completo e em diálogo com a ética (que não é palpável nem redutível, mas importantíssimo tema da filosofia). 
A mente, ou alma, liga-se ao corpo, mas certamente não é este: não tem substância perceptível: o que se percebe são os seus efeitos, sejam eles a atividade racional, sentimental ou emocional. Quando pensamos, sentimos (etc), é possível monitorar áreas ativadas e desativadas do nosso sistema nervoso (cérebro, neurônios, dendritos etc) e até mesmo outras partes do corpo ativadas, como o coração, sistema endócrino etc. Obviamente os cientificistas, que são reducionistas, materialistas/ niilistas, e, geralmente biologistas, afirmam que tais fenômenos detectáveis não são efeitos e sim a "mente" em si, ou afirmam que não há mente e que sentimentos, pensamentos e vários outros elementos psíquicos são só a atividade eletroquímica do corpo. Primeiramente isso é um salto da construção de conhecimento (eu diria um salto epistemológico) porque não prova a inexistência da alma ou da mente (pressupor inexistências é afirmar conhecer o que não existe... uma contradição já exemplificada em obras da filosofia, como as de Platão). Em segundo lugar, afirmar que a psiquê humana é só biológica, bem como afirmar que a realidade é só tridimensional, é mera imposição de uma pré suposição (pressuposto) reducionista, que exclui cosmovisões, estabelecendo um paradigma (modelo) de construir conhecimento. Com tal atitude, nega-se inúmeras culturas e toda espiritualidade (religiões inclusas) como se estas fossem uma série de casos de alucinações ou de mentiras. Diga-se de passagem, tal ideologia com tal tipo de afirmação acaba invalidando, ou no mínimo, inferiorizando, todos relatos de experiências espirituais, sejam elas místicas, religiosas ou de qualquer outro nome. Este paradigma e/ ou pressuposto então é um dogma... e onde ele é mais presente? Na ciência/ no meio científico.
Em algumas nações como o Brasil, tal pressuposto talvez ainda seja pouco relevante, mas ele começou a ganhar força nas elites europeias desde a publicação das obras de John Locke (1632-1704), conforme indicado por Robert H. Wozniak em seu livro "Mind and Body - From Descartes to William James" e se estabeleceu como a visão de mundo por trás da ciência durante o positivismo do séc 19. Embora haja razão para que o materialismo seja historicamente relacionado ao filósofo e historiador Karl Marx (1818-1883) - a questão que trago aqui, embora toque a sociologia e a economia, é mais da relação entre psicologia, ciência e filosofia. O materialismo ao que me refiro então é oriundo do empirismo britânico da época de Locke e Newton e que seguiu rumo ao positivismo e ao biologismo no século 19 com outros autores como Comte, Spencer, Malthus etc. Este tipo de pressuposto sobreviveu com altos e baixos em diversas áreas da ciência pelo século 20, adentrando a psicologia nas primeiras décadas de tal século com o crescimento do behaviorismo a partir dos EUA. Por volta dos anos 50 do séc 20, tal ideologia biologista adquire uma nova força com as descobertas da genética, ambas apoiadas por alguns "filósofos da ciência", incluindo um membro da Sociedade (neo) liberal de Mont Perelin admirado até mesmo por alguns anarquistas e sociais democratas que conheci... Tais pré suposições que afirmam que a mente humana é só eletroquímica, por exemplo, parecem ter relação com a separação entre ato sexual e paixão (eros), um tipo de objetificação do ser humano, notada pelo psicólogo Rollo May (1909-1994), em seu livro de 1969, Love and Will. A visão da realidade de que o ser humano é um mero corpo (e seus subsequentes argumentos reducionistas) sobrevive no "mainstream" da ciência até este início do século 21. Isto não seria um problema se tal pressuposto não adentrasse a psicologia, submetendo-a às áreas da medicina como psiquiatria e neurologia... Apesar da sobrevivência no meio acadêmico, essa visão de mundo niilista fôra uma ideologia criticada após as duas guerras mundiais (cuja a última acabou em 1945): observações de Jean Gebser (1905-1973) e de Viktor Frankl (1905-1997) indicam como o niilismo fomentou ideologias eugenistas como o nazismo**, fomentaram a corrida armamentista e as guerras e fomentaram a desumanização expressa por torturas e execuções em massa de povos diferentes. (**Sim, existiram nazistas místicos, mas tal movimento é prioritariamente racista, e, portanto biologista.)
Os pressupostos materialistas oriundos do empirismo e que perpassaram o positivismo, sobrevivendo até os dias de hoje, é uma ideologia reducionista e niilista porque reduz o ser humano a um mero corpo e esteve ligado com movimentos altamente nocivos da ciência "euro-estadunidense", como já citei em vários textos meus: Fomentou e propagou ideias como o racismo científico, a drapetomania, a cranoscopia, o darwinismo social e também incentivou uma "farmacocracia"(psicopatologização do comportamento e sofrimento humanos, crescente indicação e utilização de fármacos e alta lucratividade da indústria farmacêutica). Ou seja, tais pressupostos e sua respectiva visão de mundo reducionista tiveram seus momentos de grande influência na história da humanidade, principalmente nas ditas "potências econômicas" ou "países de primeiro mundo" e estiveram ligadas às opressões e genocídios de muitos povos. Essa visão de mundo ou pressuposição dialoga muito bem com sistemas econômicos que objetificam o ser humano (como por exemplo os mercantis, liberais e neoliberais - todos de ideologia capitalista) e não é filosófica porque contradiz a raiz da filosofia ocidental: Platão não só deixava o "pressuposto" da construção de conhecimento aberto para uma cosmovisão mais ampla possível, como tinha uma outra pauta (ou ontologia): o bem e/ ou a melhoria de todas as coisas. Não detalharei aqui a construção de conhecimento de Platão e suas respectivas cosmovisão e aplicabilidade, porque já expliquei em outros textos sobre tal proposta do filósofo ateniense: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/09/consideracoes-sobre-platao-e-suas.html ; https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2025/01/observacoes-sobre-sofista-do-ser.html ; https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2025/06/por-um-conhecimento-humano.html ; https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/06/a-filosofia-ocidental-surge-de-um.html
 
Voltando à minha trajetória que inclui não só experiências particulares, mas também meu estudo de psicologia e de filosofia, algumas tentativas de explicar os "fenômenos psíquicos estranhos" que ocorreram comigo estão no texto deste link: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2025/01/psique-sentido-de-vida-e-mediunidade.html
Após iniciar minha busca por melhoria psíquica, principalmente ética, eu passei a reparar mais em minha própria mentalidade: sentimentos, sentido e pensamentos... Não é fácil prestar atenção no que faz sentido para nós mesmos e também é difícil notar as próprias contradições. Por exemplo, meus comportamentos anteriores às experiências mediúnicas me pareciam normais ou indignos de nota antes de eu passar pelas dificuldades: eu só comecei a perceber e entender minhas atitudes e mentalidade antiéticas gradualmente enquanto buscava minha espiritualidade que inclui um desenvolvimento ("moral" e) ético. 
O processo é contínuo e ainda hoje, ao escrever este texto, enfrento algumas dificuldades. Porém o que me espanta é que há um vasto processo psíquico para se desenvolver nesta "jornada ético-espiritual" - um processo que envolve nossa postura no dia-a-dia em situações sociais e de solidão, nosso modo de observar e julgar situações e pessoas, nossa tolerância, autocontrole, esperança etc. 

Sentimentos se misturam com valores e estes últimos podem ser individuais ou universais. Valores individuais são prioridades de cada indivíduo que podem ou não misturar-se com valores universais. Um indivíduo pode priorizar a busca por prazeres em vida ante outras coisas como formar uma carreira profissional ou acadêmica, proteger o meio ambiente, ajudar pessoas em situação de necessidade ou vulnerabilidade etc. Outro indivíduo por exemplo pode priorizar a conquista de um status social, uma posição de poder em um estado ou em uma grande empresa, enquanto outros podem valorizar mais as amizades, a vida afetiva seja com um parceiro, com os filhos ou com os pais etc. Esses valores são tema da psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961) e foram estudados pela óbvia importância na saúde mental das pessoas: elas se relacionam com que um outro autor chama de sentido de vida. Viktor Frankl foi o neuropsiquiatra e filósofo que desenvolveu a logoterapia, tida como uma abordagem existencial/ humanista da psicologia onde o sentido de vida é uma questão central. A ausência desse sentido geralmente está ligada ao vazio existencial ao qual o autor notou que é reforçado por ideologias que desumanizam e/ ou que estimulem um estilo de vida superficial (o niilismo que reduz o ser humano a um mero corpo sem alma, o capitalismo que gera o consumismo etc) e tal vazio gera sofrimento. Os sofrimentos não "tratados" podem vir a se agravar tornando-se transtornos psíquicos, claro que isto não é regra para todos os transtornos, pois alguns tem origens mais biológicas, outros são multicausais etc.
Estes e alguns outros autores da psicologia observaram o ser humano de maneira transdisciplinar: a nível biológico, social, psicológico/ existencial e espiritual. Não há contradição alguma nisto, na verdade são análises do ser humano mais completo, ou ao menos, são uma análise mais dialética e ampla que não exclui nem despreza cosmovisões e visões antropológicas. Estas questões existenciais e espirituais que envolvem valores e até mesmo possíveis simbolismos, mostra a importância da psicologia não se separar da filosofia - mesmo porque o fundador da psicologia moderna, Wilhelm Wundt (1832-1920), não separou este campo de estudo da filosofia, relegando-o exclusivamente à ciência.  
 
Tudo que experimentei influenciou minha forma de pensar, ver a realidade e agir. Isto porque há aprendizado e tudo isto faz parte de minha memória, minha esperança e pode colaborar mais ou menos com meu sentido existencial. Essa atividade mental nem sempre coesa, praticamente não cessa e por isso temos sonhos ao dormir. O corpo repousa porque precisa de descanso, mas a mente segue ativa e o sono foi um dos fatores dos quais me fizeram perceber que sou mais psiquê do que corpo - além de se manter ativa no repouso do corpo, a quantidade de informação e a oscilante, mas contínua experiência de sentimentos faz de minha psiquê algo muito maior e mais complexo do que o corpo. O acúmulo desta atividade psíquica e a formação/ modificação da personalidade via aprendizado (etc) fazem dela, algo de maior importância. Não se trata de negar ou desprezar o corpo, mas de entender suas limitações ante a vastidão de experiências psíquicas. 
As experiências que eu tive durante o sono ou repouso de meu corpo são importantes devido ao fato de me provarem como pensamentos, sentimentos e até visões de mundo e questões éticas permanecem ativas mesmo com o corpo exausto, caído e buscando repouso. Explicar em detalhes como elas ocorreram não me parece producente, então segue um resumo: minha psiquê (ou eu mesmo) parecia sair do (meu) corpo, mas eu não percebia espacialidade - O que importa é que nos vários meses que tais experiências ocorreram, eu discutia mentalmente de maneira tão ou mais real do que uma discussão através da verbalização feita por meu corpo; Eu discutia sobre sentimento, ética, visão de realidade e embora eu não enxergasse meus interlocutores, eu identificava alguns deles. É como se a identidade da psiquê não precisasse do corpo e seus respectivos elementos perceptíveis. A psiquê se provou algo que não sucumbe e logo não poderia apodrecer nem morrer. Eu não sei como ou porquê este processo se manifestou, mas esta realidade psíquica me fez entender todo ser humano como "médium": estamos entre uma realidade corporal/ espacial/ tridimensional e uma psíquica mais profunda e verdadeira - certamente o que o espiritismo e variadas religiões chamariam de realidade espiritual.
 
Saúde Mental é questão Filosófica também
A saúde mental então não é importante só porque o sofrimento emocional e a dor psíquica são invisíveis e mais difíceis de ser compreendidas do que a dor física/ corporal: Ela é importante porque a psiquê existe, pois temos pensamento e sentimento independentemente de nossos sentidos; Um cego ou um surdo têm tais "elementos" psíquicos como qualquer outro indivíduo e além disto a saúde mental se refere à psiquê e toda sua profundidade e complexidade; Sentimento é algo central na vida humana e certamente questões existenciais como o sentido de vida também são.
A consciência humana então se dá por variadas perspectivas, sejam elas simbólicas como as tratadas por mitos e por interpretações de sonhos no decorrer da história humana; seja ela mística, através das experiências transcendentais ou mediúnicas; Ou seja ela racional, ao tentar explicar e entender toda a realidade, seja em nosso entorno ou em nós mesmos - nas questões psíquicas profundas mencionadas no decorrer deste texto por exemplo. 
Estas perspectivas, apresentadas pelo filósofo Jean Gebser através de uma interessante análise historiográfica da arte (e da consciência humana) em seu livro The Ever-Present Origin, não são necessariamente contraditórias entre si. Elas podem dialogar entre si, desde que trabalhadas e alicerçadas na ética e em seus valores universais que visam o bem para todos; mesmo porque contrariar isto, é escolher segregação - invalidar relatos de determinados indivíduos, culturas e povos. A verdade não está num ponto do espaço nem em determinada ideologia ou reunião de pessoas - ela é inseparável da ética, pois é um valor universal. É inseparável do bem, do amor, da justiça e da equidade.
Assim, a construção de conhecimento deve levar em consideração também as perspectivas místicas e míticas, mas se nos prendermos meramente a elas ou se permanecermos nela como base para discussões, certamente teremos algo como uma prática espiritual ou religião - por isso a importância de utilizarmos a perspectiva racional para buscar entender e propagar entendimento - esta busca racional porém não deve menosprezar as demais perspectivas e sim deve somar-se a elas sem imposições e hierarquizações; este parece ser o desafio de uma nova construção de conhecimento ética. Esta talvez seja a construção de conhecimento de uma perspectiva integral ou "aperspectiva" - não é neutralidade pela neutralidade e sim universalidade de uma base imutável, plena, similar à proposta de filosofia feita por Platão há séculos.

Sobre os relatos espirituais e a necessidade de explicá-los
Mas porque tentar explicar experiências espirituais? Elas não são individuais? A resposta é sim e não: São individuais porque cada pessoa tem determinados tipos de experiência e encontra seu próprio caminho no seu próprio ritmo para viver uma espiritualidade. Porém tais experiências também são coletivas no sentido de que muitas pessoas que as têm podem apresentar elementos em comum. É aqui que é importante notar que eu conheci casos de pessoas (além de mim mesmo) que passaram por experiências espirituais difíceis ou ruins e tiveram alguma dificuldade em conseguir ajuda!
A 1ª pessoa que conheci a passar por tal situação, frequentava meios religiosos e místicos - em um destes ambientes teve uma experiência muito difícil que passou a gerar-lhe sofrimento constante. Em seu meio religioso, ela entendeu que não conseguiria resolver a situação e recorreu às áreas de saúde mental: psicologia e psiquiatria. Até aqui faz sentido, pois se não foi encontrada uma solução ou melhoria em determinado meio, busca-se em outro... porém neste caso os resultados não foram promissores. O tratamento psicológico não abordava o aspecto espiritual de seu problema, como se esse não tivesse relação alguma com suas visões (possivelmente consideradas alucinações) e subsequentes dificuldades emocionais/ comportamentais. Isto não é inesperado, já que questões espirituais e/ ou religiosas são um tabu na psicologia: há o risco de profissionais não saberem lidar com tal tipo de caso e acabarem impondo sua visão de mundo sobre o paciente, seja esta de uma determinada religião, ou seja esta uma visão materialista e/ ou niilista que invalide ou menospreze os relatos do paciente e sua respectiva cultura/ cosmovisão. O tratamento psiquiátrico então, se limitou ao medicamentoso, numa óbvia tentativa de combater "alucinações" e ansiedade. Por quase 3 anos que mantive contato com esta pessoa, ela mostrou sofrimento psicoemocional, sem mostrar progresso algum com os tratamentos. Ela admitiu a provável origem espiritual de seu problema/ sofrimento e depois voltou atrás, insistindo que não conseguiria resolver tal questão por uma via que não fosse a psicofármaca. 
O 2º caso foi de um colega frequentador de um ashram ("templo" de sanatana dharma). Ele fez um relato completo de experiências espirituais que lhe causaram grande sofrimento e dificuldades. Tais relatos eram muito semelhantes às experiências que eu tive, mas eu entendi as minhas como espirituais por perceber fatores inteligentes por trás delas, enquanto o colega afirmou não crer em demônios (nisto também não creio) nem em espíritos que fazem algum mal. Ele seguiu seu relato explicando que fez meses de tratamento psiquiátrico medicamentoso e durante este período não obteve melhora. O colega terminou o relato contando que buscou outras vertentes do sanatana dharma até começar notar uma melhora de sua situação através de uma prática/ vida espiritualizada.
O 3º caso na verdade são dois casos do mesmo tipo: Um paciente meu durante o ano de 2024 e um outro caso que foi noticiado em certas mídias, de uma mulher umbandista vítima de violência em uma comunidade terapêutica administrada por evangélicos. Este caso noticiado eu não detalharei aqui, mas meu (ex) paciente relatou ter possíveis experiências espirituais principalmente em 2 momentos de sua vida: Primeiramente durante sua juventude quando perdeu a mãe; Ele afirmou que em tal época teve experiências de contato espiritual com a mãe recém falecida e que apesar de ter cogitado frequentar o candomblé devido a afinidade que sentia por tal religião, encontrou a solução para seus problemas naquela época com um pastor evangélico. O pastor, sem pedir nada em troca, teria dado conselhos espirituais para ele, que lhe ajudaram a lidar com a situação que envolvia desde luto até um sofrimento psicoemocional e existencial. Porém em outros momentos de sua vida, o paciente teve experiências similares mas não tinha certeza se eram espirituais ou alucinatórias - isto porque passou a fazer o uso de substâncias psicoativas. Neste período tentou se internar em uma comunidade terapêutica e se arrependeu - disse que saiu pior do que entrou devido às violências que sofreu lá dentro. 
O último caso é de um jovem que conheci seguindo páginas de Luta Antimanicomial. O rapaz tem alguns vídeos na internet explicando como foi mal tratado em hospitais psiquiátricos que são referência de seu estado. Os relatos de suas experiências foram invalidados pelos médicos e ele foi intimidado a tomar os remédios psiquiátricos sem questionar os efeitos colaterais durante suas internações. Ele explica que foi resolvendo seus problemas lentamente com a leitura de variados autores desde a psicologia analítica até obras de auto ajuda e de espiritualidade. Um dos passos para a melhoria do rapaz ocorreu quando ele decidiu responder/ dialogar com a "voz" que ouviu por um determinado período - voz esta que obviamente era considerada alucinação pelos médicos e familiares dele. Por fim, ele não se considera totalmente "curado", nem abandonou todos tratamentos de saúde mental recusando todos os diagnósticos que recebeu, mas aponta as contradições de alguns deles.
Eu não sei se há um estudo significante sobre pessoas que passam por tais tipos de experiência e como eles buscam lidar com elas. Imagino que não exista tal estudo devido ao fato do meio "acadêmico" se apoiar em pressupostos predominantemente materialistas como mencionei anteriormente. 
É partindo destes problemas que eu vejo a necessidade de se discutir a construção de conhecimento e sua relação com as experiências ou relatos de teor espiritual
Há uma suposta "religião" ou espiritualidade surgida no século 19 que não possuía hierarquia e tinha um número pequeno de dogmas e estes dogmas pouco interferiam na investigação e na pesquisa de temas mundanos - não tinha nada do que as típicas religiões dominantes tinham, como afirmações anti científicas ou conservadoras (tradicionalistas) de que o corpo era sagrado, por isso não deveria permitir autópsias, vacinas, tatuagens etc etc... O espiritismo surgido na França também não era formado de centros espíritas onde se davam passes (não sou contra isto), seguidos por cantorias e/ ou palestras. O professor e tradutor francês, Hippolyte Léon D. Rivail (1804-1869), que assumira o pseudônimo de Allan Kardec, propôs estudar os relatos que envolviam fenômenos de teor espiritual, portanto o espiritismo surgiu não como uma religião, e sim como um tipo de intermediário entre a espiritualidade e a ciência. E sendo tal intermediário, inevitavelmente o espiritismo toca a filosofia não como conhecemos hoje após sua segmentação iniciada no final do séc 19 e propagada através do séc 20, mas como uma construção de conhecimento mais próxima da filosofia apresentada por Platão muitos séculos antes. Platão indica que o estudo dos corpos/ da matéria é adequado para a produção e manutenção destes (em Sofista), mas em sua busca pelo "uno" (uma universalidade, mas que une todas ideias) e pelo "imutável" (o que não é destruído pela ação do tempo e que possivelmente precede o tempo - ideia discutida em Menon, A RepúblicaTimeu e possíveis outros textos), o autor não só chega à ética (as virtudes/ excelências), mas também indica a imortalidade da psiquê em textos como: FedroFedonA República entre outros (o termo psiquê foi usado para tratar tanto da mente humana lidando com o mundo, como para a alma que transcende o corpo, como se fossem a mesma coisa).
Seguindo esta ideia de dar abertura a tais relatos e investigá-los em uma construção de conhecimento com pressupostos (pré suposições) mais abrangentes do que os biologistas, materialistas, niilistas e afins, restam poucos autores que realizaram estudos: além de Platão que deu ênfase na ética, só encontrei Kardec que analisou uma série de fenômenos envolvendo temas espirituais (desde objetos se movendo sozinhos até contatos psíquicos com forças imperceptíveis, "mortos" e/ ou espíritos) ocorridos no século retrasado. 

Tentar entender tais fenômenos analisando também a obra de Kardec então se faz necessário - isto não é abraçar tudo o que o autor francês do século 19 escreveu, mesmo porque devem haver pontos obsoletos em seus argumentos e limitações de sua época e cultura local. Mas vale notar que o estudioso francês, diferente de supostos médiuns reverenciados no espiritismo brasileiro, buscou construir conhecimento e por isto esforçou-se em seguir regras da ciência de seu tempo e manteve a postura filosófica de suspender pré suposições (de modo similar às propostas de Platão e da fenomenologia de Husserl), de dialogar com equidade (ainda que com as limitações de sua cultura e época) e de analisar criticamente conteúdos da espiritualidade (diferente da aceitação sem questionamentos das obras de médiuns). Por outro lado os romances espíritas posteriores ao espiritismo do séc 19, bem como as palestras de centros espíritas brasileiros, não possuem essa preocupação nem esse rigor, pois são elementos constituintes de uma religião, diferentemente da obra de Kardec. As religiões devem ser respeitadas, mas são opções de modo de vida das pessoas e não devem ser impostas sobre indivíduos e grupos que pensem de modo diferente. Já, analisar os estudos de Kardec sobre fenômenos espirituais, se trata somente de incluir as observações do estudioso como possibilidades na construção de conhecimento - um conhecimento que respeite os relatos sobre experiências humanas. Afinal as ciências humanas não devem desconsiderar relatos humanos só porque eles parecem "místicos" ou "míticos" e a construção de conhecimento é anterior à ciência moderna que começou misturada com a filosofia na renascença italiana com o questionamento da igreja e floresceu no século 19 após o iluminismo europeu, com o surgimento do positivismo e a cunhagem do termo cientista. Isto porque a construção de conhecimento, ou epistemologia, é filosófica: não é meramente ocidental (europeia e estadunidense) nem deve ser separada da ética e portanto, deve ser mantida junta desta, para que tenha universalidade. 

Por estas razões, em alguns próximos textos trarei tais análises...

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus (Timeu);

(48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) nasceu de um composto de necessidade e razão. A razão conduz a necessidade, porém para explicar isto, Timeu anuncia que deve reiniciar seu discurso, pois até o momento, o princípio do eterno (ser) e da imagem ou imitação do eterno (vir a ser) haviam sido suficientes, mas na verdade há um terceiro gênero no processo todo. Tal "gênero" seria um tipo de receptáculo do vir a ser e assim, seria seu nutriz. (um "elemento" entre o eterno e sua imitação e talvez, um intermediário entre a psiquê e o "corpóreo"?
O personagem tenta explicar a relação entre terra, água, ar e fogo, de uma maneira similar aos processos que conhecemos hoje como condensação, solidificação, fusão e evaporação, porém nem todos com os estes (mesmos) nomes e acrescentou a combustão (como se fosse a passagem do ar ao fogo), além de teorizar uma passagem do fogo ao ar (de fato o fogo aparece no diálogo como algo próximo ao "4º estado da matéria"/ plasma). Por causa dessas mudanças, os elementos jamais deveriam ser chamados de "isso" ou "aquilo" como se fossem estáveis; eles deveriam ser chamados de "semelhantes" pois são sujeitos às mudanças frequentemente, jamais permanecendo no mesmo estado de modo permanente.
49a-51e O que há entre o que é e o que vem a ser então, é um tipo de receptáculo amorfo e invisível de difícil compreensão. Timeu conclui que tal receptáculo, sendo a "mãe de todas coisas que vem a ser" (as coisas geradas, mutáveis etc), a sua parte que se inflama, aparece como fogo, a parte que se condensa aparece como água, a que solidifica aparece como terra etc. Considerando que o autor está se referindo a uma força que age como o meio termo de uma realidade psíquica (espiritual, eterna, imutável etc) e a realidade perceptível sensorialmente (o universo gerado), esta é onde se forma todos elementos em seus 4 estados: plasmático, gasoso, líquido e sólido. Na época da obra (século 4 a.C.) o conhecimento dos 4 estados da matéria era pouco conhecido e difundido entre as civilizações humanas, mas é nítido que a "teoria dos 4 elementos" demonstrada em Timeu não se refere a quatro forças separadas e incomunicáveis entre si: há um constante fluxo de transformação entre eles, como o que ocorre com os estados da matéria, estudados mais profundamente algum tempo depois de Platão.
Este "terceiro gênero" além do ser e do vir a ser, é o que dá forma aos elementos como os citados anteriormente. Isto porque, a matéria e seus estados pertencem ao gênero do "vir a ser", ou seja, são coisas geradas e portanto mutáveis, dispersáveis etc. Mas o terceiro gênero parece se relacionar com a teoria das formas (eidos: ideia/ forma) de Platão; Por isso o personagem Timeu questiona se não seria válido sustentar que há uma existência perpétua da Forma de cada coisa, ou seja, há Formas auto subsistentes. Ele diz que seria impróprio simplesmente descartar esta questão e a seguir, aborda o que é o entendimento e o que é a opinião verdadeira*.
*A palavra traduzida por Edson Bini como entendimento aqui é noús, que parece surgir como inteligência ou conhecimento (de teor divino, sublime...) em outras obras; Já a opinião verdadeira é traduzida do termo doxa alithís - não confundir com "ortho doxa" que é "opinião correta".
O astrólogo considera que entendimento e opinião verdadeira devem ser coisas diferentes entre si* e explica que as formas (eidos) auto subsistentes só são acessadas pelo entendimento e não pela percepção sensorial. Porém, para alguém que interpreta as coisas perceptíveis pelos sentidos (os elementos, a matéria) como as mais estáveis, o entendimento e a opinião verdadeira não poderiam ser considerados diferentes entre si. 
*(negar a diferença entre entendimento e opinião, seria o relativismo: afirmar que entendimento e opinião são a mesma coisa, é negar a construção de conhecimento, a busca pela verdade, os valores universais etc) 
 Sendo assim, estes dois têm que ser considerados distintos entre si: a opinião verdadeira então surge através da persuasão, enquanto o entendimento surge através do ensinamento. A opinião é acompanhada por um discurso irracional (álogon), enquanto o entendimento é acompanhado de um discurso racional (logon). A partir daí, o autor conclui que a opinião, sendo oriunda da persuasão, também pode ser desfeita pela mesma, mas o entendimento não pode ser desfeito pela persuasão: se a pessoa realmente entendeu um assunto, ela não pode ser convencida do contrário. Após identificar estes 2 tipos (as Eidos, ou Ideias/Formas e os "objetos" gerados, perecíveis e móveis pelo espaço), Timeu identifica um 3º tipo, traduzido por Edson Bini como "espaço limitado* o qual existe sempre e é indestrutível, provendo espaço a todas as coisas que vem a ser". (52...)
*O termo espaço limitado foi traduzido da palavra "khoras", enquanto o "provendo espaço a todas as coisas que vem a ser" vem do trecho original em grego clássico "édran dé paréchon ósa echei genesin pasin" (...) Note que é outra palavra (édran) traduzida também como espaço; Outra possível tradução deste trecho então seria: "... fornecendo assento (superfície ou localização) para todas coisas geradas". Além disto vale lembrar que na Época de Platão não tínhamos a teoria da relatividade (a descrição do espaço/ tempo como uma curvatura) nem havia sido provada a 4ª dimensão matematicamente (embora Platão, ao menos aparentemente, insinua sobre este último tema na obra Parmênides). Sendo assim, se "khoras" apresentado em Timeu é algo entre o universo gerado e a psiquê universal ou realidade espiritual, é possível traçar uma relação de semelhança com as teorias posteriores do fluído universal/ magnetismo animal de Franz Mesmer (1734-1815) ou com o conceito de períspirito de Allan Kardec (1804-1869). Ademais, em uma área mais aceita pela ciência moderna, temos a descoberta dos campos eletromagnéticos dos órgãos (cérebro, coração etc) nos anos 1960 e as teorias da consciência no campo eletromagnético do cérebro/ sistema nervoso da virada do século 20 ao 21... Ou seja, a ciência atual obviamente não discute uma "psiquê do universo", mas discute em algum nível "a relação da mente com o corpo humano" e sua estrutura, seja a nível de subpartículas ou de campos eletromagnéticos deste. 
Este 3º "tipo" de ser, chamado de nutriz, que não é o "ser" em si (que existe sempre) nem o "vir a ser" (o que é gerado, mutável, perecível etc), pode ser apreendido por uma espécie de raciocínio bastardo que não é acompanhado pela percepção sensorial e mal sequer é objeto de crença. Neste ponto do discurso, Timeu alerta que é incapaz de fazer todas as distinções sobre o assunto e menciona uma complexa, mas breve descrição que envolve o estado de sono e os sonhos... Obviamente alguém que considera só a matéria perceptível como real, considera os sonhos como meras imagens e/ ou imaginações do cérebro, porém, ao longo de suas obras, Platão claramente menciona que a psiquê não é só o cérebro nem um mero produto perecível do cérebro ou de qualquer outra parte do corpo; A psiquê é alma, que não só sobrevive após a morte do corpo, devido ao fato de não ser divisível nem deteriorável, como também transmigra (vide Fedon, FedroA República e Político). Sendo alma, a psiquê durante o repouso do corpo (sono), continua ativa e possivelmente teria alguma liberdade em relação ao corpo; O sonho então possivelmente seria como fantasias ou "véus" que encobrem a atividade da psiquê que é mais real do que os corpos perceptíveis e do que o "3º gênero ou tipo" de coisas. 
A nutriz então, que recebeu os elementos em seus variados estados, pré existiu o universo e os 4 elementos se encontravam sem  medida e sem razão, até serem ordenados pelo deus (o artesão ou arquiteto, Demiurgo). Timeu diz que os elementos deviam ter traços de suas respectivas naturezas, mas se encontravam em uma disposição que deve ser típica da ausência do deus (e portanto, da ausência da inteligência/ da mente/ alma). O deus, a partir daí, usou das Formas (eidos...) e dos números para que estes elementos se tornassem o mais belos e excelentes possíveis. 

54d-61a Na sequência o astrólogo Timeu segue explicando sua teoria dos poliedros ("os sólidos platônicos"), onde relaciona cada um deles com um respectivo elemento (fogo, ar, água e terra), mais um 5º poliedro relacionado com o universo como um todo. Partindo de um ponto de vista talvez pitagórico (geômetra), o personagem supõe que toda superfície é composta por figuras geométricas, particularmente por triângulos que formariam tais poliedros (possivelmente como moléculas) em caso de cada elemento/ estado da matéria. Talvez foram propostas "partículas triangulares" para os 4 tipos, ou 4 elementos, por uma questão conceitual, devido ao fato destes sucederem 3 fatores constituintes: o ser que é eterno/ imutável, o vir a ser que é gerado/ mutável e khoras que é o receptáculo/ nutriz que deu beleza/ forma aos elementos do universo. Daí o astrônomo classifica o "fogo" como o elemento mais fluido, seguido pelo ar, pela água e por último, pela terra, o menos fluído (mais sólido/ compacto dos elementos). Seguindo sua explicação sobre a constituição do universo, Timeu diz que não há espaço vazio neste, e que o "fogo' é o elemento mais abundante, ou seja, que ocupa mais espaço, seguido pelo ar etc... Ignorando as limitações da época, faria sentido dizer que esta é uma teoria absurda, porém, lembrando da semelhança desta teoria com a ideia dos "4 estados" da matéria, o fogo poderia ser comparado ou substituído pelo plasma, daí esta teoria deixaria de soar absurda. Isto porque, apesar de séculos depois em 1898, o astrônomo Charles A. Young teorizar que o espaço fosse um vácuo absoluto, outros cientistas foram descobrindo indícios de elétrons no espaço interplanetário (Ludwig Biermann, Hannes Alfvén e Kristian Birkeland por exemplo). Nos anos 1960 ficou comprovada a existência do plasma no espaço interplanetário e alguns cientistas já afirmam que ele (o plasma) está presente em significante parte do universo, ou está na maior parte do universo. 

Timeu termina a explicação de sua teoria dos elementos, indicando como eles afetam uns aos outros e como se transformam. Na sequência ele começa a explicação sobre o corpo humano e faz uma breve pausa para refutar uma teoria da época (62c-63e), que dizia que tudo que era dotado de massa corpórea se moveria para o lado de baixo do universo e o restante seria constrangido para cima (certamente o "terraplanismo", mas ligado a um possível atomismo). Isto porquê o autor entende que o céu é esférico e "distribuído" de maneira equidistante em relação ao seu centro. Por lógica então, entende-se que o pesado tende a ficar no centro da esfera e o mais leve fica afastado do centro. Após esta explicação, o personagem tenta explicar como se propaga os processos perceptíveis e imperceptíveis no ser humano, comparando as partículas deste com as partículas dos elementos, para então discorrer sobre os sentidos : tato (dor e prazer), paladar, olfato, audição e visão (cores etc). (64a-69a) Os sentidos seriam parte da natureza necessária, pois o deus é suficientemente sábio para combinar o múltiplo com o uno e decompor, inverso o uno no múltiplo*. (*tema abordado em Filebo). Colocando a beleza e o bem (bondade/ kalos) no universo e nos elementos dos quais foram utilizadas as propriedades inerentes, o Demiurgo gerou o ton aytarke te kai ton teleotaton theon (traduzido como deus mais perfeito e autossuficiente: possivelmente a urainon psiquê/ alma do universo). Por isso o astrólogo diz ser importante distinguir a causa natural da causa divina e insinua que o ser humano precisa da vida material ("natural") para alcançar a divina...

Apesar dos argumentos dialogarem com as demais e investigações filosóficas de Platão, ainda há elementos neste texto que parecem exclusivos desta obra: A alma do universo só é mencionada em Timeu, bem como as investigações filosóficas sobre a origem do universo tridimensional/ "material" e seus respectivos elementos. 

69b-70 O demiurgo então adicionou proporcionalidade e harmonia (dentro da medida do possível) nos elementos criando o universo e sua psiquê - o deus que continha toda vida em si. Agindo como artífice das coisas divinas, ele (o demiurgo certamente) incumbiu sua progênese (a alma do universo ou os planetas?) de construir a gênese das coisas mortais. Recebendo o princípio imortal da alma, eles criaram os corpos mortais para servirem de veículo desta. Também criaram a "alma mortal" que encerram coisas terríveis e necessárias (o prazer, a dor, ousadia, medo, animosidade etc), alojada separadamente da alma imortal que seria vinculada à cabeça. Assim o "pescoço separaria" as "almas", sendo a mortal alojada abaixo deste e dividida em duas partes: no coração e no fígado/ abdômen.

Este trecho parece dialogar logicamente com a teoria tripartite da psiquê apresentada em A República, mas vale algumas observações: Primeiro que a tradução parece indicar que são "2 tipos de alma": a imortal e a mortal, o que pouco condiz com alguma obra de Platão - Talvez com Fédon, onde Platão indica que os amantes do sobressair-se os amantes do lucro são ambos amantes do corpo, se considerarmos que estes 2 tipos de indivíduos são dominados respectivamente pela parte intermediária da psiquê (ligada ao coração) e pela parte inferior da psiquê (ligada ao fígado). Segundo que a ligação da(s) alma(s) com as partes do corpo parece exclusiva deste texto também, embora isso não seja absurdo, já que Timeu é a obra que aborda a origem do universo, portanto toca questões entre a realidade cognoscível/ a psiquê/ os valores universais e a realidade perceptível/ sensorial/ material. Ligar a alma/ psiquê às partes do corpo não é um problema em si, e inclusive, curiosamente é similar ao conceito de alma da civilização asteca.  

A parte da psiquê ligada ao coração então está ligada a animosidade, de modo similar ao apresentado em A República, mas tem a função de controlar os apetites da parte inferior, a "do fígado". Se a parte da psiquê ligada ao fígado e ao abdômen é afetada e conduzida pela parte superior (da cabeça possivelmente), ela pode se tornar serena e jovial, tornando-se capaz da divinação (mantike*) durante a noite, em seu sono. Isto porque a "parte inferior" da psiquê não participa (diretamente) da razão e do entendimento.

*A mantike é tratada na obra Fedro. Ali, Platão mostra Sócrates criticando a separação dos conceitos de mantike (que seria traduzido como mancia, algo referente a uma prática/ magia divinatória) e manike (estado alterado da mente, onde a pessoa pode ter visões - certamente traduzido como mania). O autor não classificava tais experiências de acordo com o método pelo qual elas eram alcançadas/ vividas, mas sim pelos valores inferidos e desejados pela pessoa; Assim a adivinhação, visão / inspiração divina seriam alcançadas pelo agente de divinação (manteis) que desejasse os valores universais (justiça, bondade, coragem etc) e/ ou que fosse belo psiquicamente, ou seja, ético. Desta forma não fazia sentido utilizar o termo mantike para se referir à magia divinatória e manike para classificar todas outras experiências de consciência/ mentalidade alterada, fossem estas transcendentais ou patológicas.

71a-72b: Timeu explica que o deus concedeu o dom da divinação (mantikin) à estupidez humana, pois ninguém em posse de sua inteligência alcança tal estado psíquico. A divinação, de acordo com o astrólogo, só é alcançada em estados de sono, alguma doença ou inspiração divina. Por isso alguém em posse de seu juízo deve lembrar e ponderar sobre acerca dos enunciados produzidos nesse estado divinatório; De modo similar ao que Sócrates propõe à Ion, Timeu diz que essa pessoa (capaz de raciocinar) deve analisar cabalmente e indiscriminadamente todas as visões afim de apurar como e para quem significam algum mal ou bem futuro, presente ou passado. Isso porque a pessoa em estado de "frenesi" (o estado alterado da mente, seja uma inspiração, uma possessão, o sonho etc) está apenas recebendo a "visão", não sendo capaz de pausar e/ ou analisar racionalmente qualquer coisa. Este poder da divinação teria sido concedido ao ser humano para "retificar" a parte inferior de sua alma, auxiliando-o a superar o hedonismo e a não sucumbir aos desejos mesquinhos, pois a parte inferior da psiquê nestas condições "não filosóficas" conseguiria "ver" apenas falsos ídolos e fantasmas. 

Sendo Timeu uma obra platônica, este tema é um ponto chave da diferença entre a construção de conhecimento (epistemologia) de Platão e a maioria esmagadora dos pensadores ocidentais posteriores: Platão afirma que há não só uma realidade psíquica, mas que tal realidade permite o contato entre psiquês durante os "estados divinatórios" chamados de mantike, sejam as "psiquês" almas ou mentes de seres "mortais" na Terra ou de daemons (espíritos guias/ anjos da guarda, semi-deuses). Além destas "almas", parece haver outras entidades ao longo da obra de Platão: sejam as moiras (citadas no "Mito de Er" em A República), os falsos ídolos (aparentemente citados só em Timeu) e o deus (seja o Demiurgo e/ ou o Uno/ Nous, a inteligência divina). Platão não busca dar detalhes sobre tais seres e/ ou entidades porque sua episteme é dialética e tem como ontologia/ teleologia, a melhoria de todas as coisas. Sendo dialética, o autor trabalha com o investigável partindo de sua presunção de ignorância e a investigação é feita pela contraposição de argumentos que levam à reflexão sobre os temas/ as coisas. As coisas tendo um fim, têm formas (eidos: ideias/ formas) e este fim é a excelência/ a virtude composta de valores unos (universais, que unem) e imutáveis (eternos, que não se desgastam com o tempo, portanto precedem o tempo). Assim Platão jamais investigaria os "falsos ídolos" bem como ele recomenda que devemos nos empenhar em estudar as coisas que são (imutáveis, unas e cognoscíveis) ao invés das coisas que não são: Fato bem exemplificado na obra "Sofista" (Do Ser). Em Sofista, ou autor também investiga e descreve os pontos fracos e fortes de pressupostos como o espiritualismo, o materialismo (certamente atomismo), a teoria de que todas as coisas são unas, supostamente de Parmênides e a teoria de que tudo está em movimento e o ser humano é o centro de todas as coisas (de Heráclito, Protágoras etc). Assim Platão apresenta a filosofia com abertura à universalidade, mas sem deixar de fazer análises rigorosas, pautadas pelos valores universais, ou seja, pela ética. A filosofia moderna porém, principalmente após Locke, Kant e Comte, não tem essa universalidade e a ciência nasce desta filosofia. A filosofia moderna então não é só racionalista, como apresentada por René Descartes (1596-1650), mas também tende a dar maior ênfase no método do que na finalidade. Este método dominante na ciência é o empírico e seu pressuposto (pré suposição) é o materialismo que nega a realidade espiritual, e, consequentemente, nega toda a espiritualidade. A ciência então, separada de maneira mais notória após a cunhagem do termo cientista no século 19, nasce como um saber voltado às especializações. Esta ciência em grande parte (empirista, reprodutível) também cai no que Platão alerta sobre a limitação dos atomistas/ materialistas de seu tempo (século 4 a.C.): é uma área de estudos mais voltada e mais útil para a produção de corpos e para a manutenção destes corpos (por exemplo: medicina dos órgãos e dos sistemas orgânicos, química, mecânica etc). Ela jamais pode investigar ações oriundas de inteligências para além do espaço tridimensional e/ ou do tempo, ou seja, não investiga a espiritualidade e as experiências transcendentais/ místicas, além de não abordar a ética nem os valores universais. E estas experiências espirituais, sejam visões em sonho, inspirações divinas ou quaisquer outras, interrelacionam-se com questões psíquicas, éticas e existenciais/ de sentido. Para que a ciência passe a considerar tais questões, ela teria que se regida por uma teoria de sistemas pautada pela ética e seus valores universais, sem paradigmas e pressupostos estritamente materialistas.

Timeu diz que, por esta razão, é comum consultar intérpretes (profeton) das entheois manteíais (oráculos divinos, traduzido como divinações inspiradas, por Edson Bini - são as "experiências psíquicas de teor espiritual" como explicado anteriormente). O astrólogo/ astrônomo distingue o agente da divinação (manteis) dos intérpretes das coisas obtidas por divinação (profeton) e conclui que referente ao que concerne à alma e suas "partes" e com que órgãos do corpo elas se ligam, ele só ousaria afirmar que é verdadeiro com a confirmação divina. Porém, ele continuará a explicação tratando seus próprios argumentos como uma probabilidade (74-79). Timeu diz que as 3 partes da psiquê/ alma (a racional, a "irascível" e a "apetitiva") se encontram na medula e explica sobre os ossos, os nervos e a carne do corpo. Ele traça uma vaga ligação entre humanos, animais e plantas e indica que a vida "não humana" deve ter o "terceiro tipo" de psiquê (a "alma apetitiva"). Em seguida tenta uma descrição da constituição do corpo humano e seus sistemas respiratório e digestório por causa da importância destes para nutrir e manter o seu funcionamento biológico. Timeu entende que não há espaços vazios no corpo e onde o ar deixa de estar presente, o "fogo" preencheria tal espaço. Embora teorias da época aceitassem a ideia do fogo no corpo humano, vale lembrar que pelo próprio teor da explicação dos 4 "elementos" ou "tipos" (do grego, genon) apresentada em Timeu, é possível que o autor se refira ao estado da matéria mais fluido do que o ar (o plasma). Esta ênfase na teoria de que tudo está preenchido de alguma força ou partículas aparece nos argumentos das relações entre todas as coisas do universo: Timeu parte da explicação do corpo humano, citando brevemente os sons, as correntes d'água, o relâmpago, o âmbar (elektron) e a pedra heracleana (magneto ou magnetita) - todas estas coisas tem alguma interrelação, nada sendo isolado ou acaso.

(80-81) Timeu, ainda que com a peculiar descrição de partículas (ou moléculas) triangulares, parece ter uma noção que o sangue se move em uma corrente cíclica no corpo e indica uma relação deste com o transporte de nutrientes obtidos dos alimentos. Ele ainda entende que os corpos que nos circundam se mantém nos consumindo (ambiente e/ ou micro-organismos?) e direcionando cada espécie de substância àquilo que lhe é afim. Assim, Timeu encerra esta parte explicando a juventude do corpo, o envelhecer e a morte, através de sua teoria das moléculas/ partículas triangulares e seus movimentos/ mudanças; Após os vínculos destes "triângulos" da medula se partirem, a alma (psiquê) estaria livre para deixar o corpo. A morte natural tende a mais indolor e mais prazerosa do que a morte não-natural, que é sempre dolorosa. 82-86a: Após teorizar sobre as doenças do corpo, Timeu fala das doenças da psiquê: Ele entende que a falta de senso (anoian, ou falta de sanidade, de mentalidade) é uma doença da psiquê e que há 2 tipos dela: a mania (manike, traduzido como loucura) e a ignorância (amathos). Neste ponto, o prazer e a dor excessivos são relacionados aos maiores tipos de loucura: Quando um indivíduo experimenta um regozijo excessivo, ele se torna atiçado pela pressa de obter mais prazer e quando experimenta muita dor torna-se o contrário do primeiro: aversivo/ provocado para evitar dores apressadamente. Neste estado, o indivíduo fica limitado para ver e ouvir, tornando-se ensandecido e incapacitado de exercer a razão. Timeu diz que ocorre um fator corporal de produção (de substância biológica) excessiva do que pode causar muitas dores ou prazeres... Isto faz com que o indivíduo passe maior parte do tempo enlouquecido ("maníaco") pela busca por prazer ou pela evitação de dores. Ele explica que a sociedade de seu tempo costuma classificar tais indivíduos de psiquê enfermas e destituídos de senso como voluntariamente maus; Porém esse desregramento sexual ocorre principalmente pela produção de uma substância do corpo (traduzida como semente) que adoece a psiquê. O autor explica que este descontrole (a mania pelo  prazer) não deve ser censurado como meramente uma questão de vontade*, pois é um problema do corpo (biológico) e da má condição ou ausência de educação. O mesmo vale para a "doença contrária" (referente as dores): ela tem causas parecidas, sendo estas principalmente corporais.

*Sócrates e Platão questionavam o argumento de que as pessoas eram voluntariamente más; Assim, a justiça para eles não era mera punição: tinha um fim de corrigir a psiquê da pessoa, como abordado nos diálogos Protágoras e Górgias, por exemplo.

Timeu completa sua explicação sobre tais "psicopatologias" alegando que quando os indivíduos neste estado (de loucura/ mania), vivem em um local onde a política e os discursos* também são maus (*certamente discursos de educadores, advogados e/ ou sofistas), não se deve culpar o educado e sim seus cuidadores ou progenitores que foram responsáveis por tal educação falha. Nestes casos é necessário reunir esforços através de uma educação aliada aos estudos próprios (individuais) para corrigir/ tratar a loucura. 

O autor lembra que a psiquê/ alma dada pelo deus ao ser humano é de origem divina e (por causa de sua parte superior, ligada à cabeça) foi feita para ascender aos "céus". Este "céu" é certamente o hiper ouranos, citado em Fedro, o "local dos deuses", onde não há malevolência e as virtudes como a justiça, fulguram. O indivíduo que se deixa levar por seus apetites ou por disputas terrenas fica preso à sua parte mortal e alimenta opiniões mortais (mutáveis, perecíveis), mas aquele que se ocupa de pensamentos verdadeiros, liga-se à sua parte imortal e é apto a alcançar o saber (vide "A República") e o divino. Este último certamente está de acordo com o daemon (espírito guia/ um tipo de anjo da guarda) que lhe foi concedido pelo deus e assim eles podem ser considerados sumamente felizes (eudaimona einai: literalmente estar com um bom daemon). Cada parte da psiquê/ alma deve cuidar do que lhe é devido, por isso o corpo deve ser nutrido devidamente e não ser imerso em exageros de prazer ou de dores. A parte superior da psiquê então cuidaria das "revoluções do universo" (o objetivo da "parte superior" da psiquê parece explicado de maneira mais precisa e mais completa em outras obras de Platão, como  O Banquete, Fedro, Górgias, "A República", Fedon, etc).

No fim de seu discurso (90e-92), Timeu apresenta sua teoria da metempsicose, a transmigração das almas, tendo o ser humano como tema central, com o viés patriarcal típico da "Grécia" de seu tempo. Inclusive, Platão sugere os direitos das mulheres (ao ensino etc) em "A República" certamente porque era necessário eliminar ou diminuir a opressão sobre elas em maior parte das cidades gregas.

 Ele encerra dizendo que assim, a alma do universo (o deus "perceptível") contém todos os seres vivos em si, de modo maximamente bom, belo e perfeito... Este trecho final da obra Timeu parece ser ou abordar o que Aristóteles diz que Platão reservou uma versão diferente a qual só ensinava pessoalmente (via tradição oral) e isto seria indicado em sua "7ª carta" entre os trechos 341b e 341e... O pupilo de Platão teria afirmado que falar da origem do universo e do Deus e sua bondade causava desprezo ou deboche por parte de alguns ouvintes (certamente os que desprezam ou não entendem as excelências/ virtudes) e sabendo disto, seria mais ineficaz ainda escrever sobre tal tema, como indicado na 7ª carta. Isto gera a dúvida: o quão a obra Timeu carrega de elementos realmente "platônicos"? Certamente há muita coisa coerente com a obra de Platão em Timeu, mas seria tal texto incrementado ou realizado por outro autor admirador do filósofo?

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