Observações sobre Sofista (Do Ser) Pt. 1

Platão mostra o diálogo entre Teeteto e um estrangeiro (sem nome), deixando Sócrates fora deste diálogo. 

Para explicar o que é um sofista, o estrangeiro aborda a questão do ser e do não ser. Embora mostre que é possível especular o que um sofista não é, ele recomenda a Teeteto (e outras pessoas) a não levarem investigações por este caminho, pois o “não ser” é predominantemente composto por contradições. Entende-se então que o caminho da investigação seja levantar as coisas que são. Ao expor o que são as profissões e os conhecimentos, por exemplo, será possível perceber que o sofista não pertence a tais classes nem tem tais conhecimentos, indicando que ele é praticamente uma farsa nas coisas que alega ser e saber. 

Esta ênfase em se levantar qualquer investigação e estudo baseando-se nas coisas que são e evitando trabalhar e/ ou apontar as que não são, é o caminho lógico para toda a construção de conhecimento - Não se investiga o que não existe, pelo simples fato de que tal coisa não existe. Como alguém poderia discorrer sobre o que não existe? Não poderia. 

A partir daí qualquer fato relatado deve ser investigado observando as coisas que são. Porém se o investigador/ estudioso/ pesquisador não encontra um determinado fenômeno relatado, ele, o próprio estudioso não é capaz de concluir se o fato relatado existe ou não. O fato relatado então, poderá ser investigado por outro estudioso/ pesquisador, quando houverem meios para se realizar tal pesquisa. Por esta razão é importante que o pesquisador/ estudioso (etc) tenha a postura da presunção da ignorância defendida por Sócrates e por Platão, pois assumindo-se como indivíduo que não conhece o assunto, ele não julga os relatos com um viés baseado em seus supostos conhecimentos, ou pior, com um viés baseado em preconceito, baseado em sua vaidade, orgulho, inveja ou qualquer sentimento negativo. Julgar um fenômeno relatado se baseando em preconceitos ou meras negações é prejudicar o próximo, como indica a própria etimologia da palavra "pre - judicar" (julgar antes, ou antecipar julgamento). 

Dentro deste tipo de campo a ser estudado, naturalmente se encontram temas relacionados às experiências mentais dos indivíduos: Tais experiências não são detectadas por métodos que utilizem meios sensoriais e/ ou que se apoiem na reprodutibilidade das experiências, é óbvio. Se tratam de experiências particulares e complexas que levam em conta toda a história do indivíduo, seus sentimentos, pensamentos, interpretações, gostos, valores, opiniões etc. A limitação do método sensorial para a construção de conhecimento é discutida na obra Fédon (ou Sobre a Psique).

Os interlocutores deste diálogo seguem discutindo o quão complexo (mas necessário) é estudar o que é ser/ existir e o que é "não ser". A partir daí eles investigam as teorias de filósofos anteriores e contemporâneos para lançar as bases da filosofia ocidental, definindo as classes, ou eidos (ideias/ formas propostas por Platão). 

Observações sobre Teeteto (Do conhecimento) Pt. 1

Tido como um dos escritos da última fase de Platão (em seu estágio idoso), a obra trata do diálogo de Sócrates com o jovem Teeteto (Theaitétos) sobre o que é a episteme, palavra ora traduzida como ciência, ora como conhecimento. A segunda opção (conhecimento) parece mais precisa, já que Platão trata do aprendizado, do ensino, enfim da filosofia, ao utilizar a palavra episteme. Além disto, a palavra ciência, após o século 19 parece ter uma utilização dominante para denotar o conhecimento adquirido pelo método empírico, ou seja, especialmente o método da investigação sensorial reprodutível. Isso é assim salvo raras exceções, como por exemplo, no caso da Teoria Geral dos Sistemas.

Sócrates inicia o diálogo sobre o que é o conhecimento deixando Teeteto falar e depois, estabelecendo bases ou padrões teóricos que tratam de conceitos, de certa forma, contrários ou críticos aos materialistas (aos que "só acreditam na existência daquilo que eles são capazes de segurar com as duas mãos"): 

"Sócrates diz: (…) diremos, logo de início, segundo penso, que jamais alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se manteve igual a Si mesma. Não é verdade? 

Teeteto — Exato. 

Sócrates — Em segundo lugar, uma coisa a que nada se acrescente e de que nada se tire, não aumentará nem desaparecerá, porém continuará sempre igual. 

Teeteto — Incontestavelmente. 

Sócrates — E não poderemos apresentar mais um postulado, seria o terceiro, nos seguintes termos: que não existia antes, não poderia ter existido sem formar-se ou ter sido formado? 

Teeteto — É também o que eu penso. 

Sócrates — (…) o principio de que pende tudo o que acabamos de expor é que só há movimento e que, fora disso, nada existe, havendo duas espécies de movimento, ambas de número infinito: uma de força ativa e outra de força passiva. Da união de ambas e da fricção recíproca nasce prole de número infinito porém sempre aos pares: um dos termos é objeto da sensação; o outro, a própria sensação. Damos as sensações vários nomes, tais como: visões, audições, olfações, frio e quente, e também prazeres, dores, desejos, temor e muitos outros. Infinitas são as anônimas; numerosíssimas as que têm nome. Por sua vez, o gênero dos sensíveis tem cognatos correspondentes a cada uma dessas sensações: para as inúmeras visões, cores de perder a conta; para as audições, os sons em igual variedade, e para as outras sensações, outros tantos objetos sensíveis, que lhes são aparentados.

…Sócrates continua: Ainda há a possibilidade, me parece, de sermos um para o outro alguma coisa, ele e eu, ou que venhamos a ser algo em virtude dessa correlação, ligados reciprocamente, não a qualquer outra existência nem mesmo a nós próprios. Só resta essa relação de reciprocidade. Por isso mesmo, se se disser que alguma coisa existe ou devém, será preciso acrescentar que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação a alguma coisa. 

[157e] ... Não descuidemos de um ponto que essa teoria (de Protágoras) é falha. Ainda não falamos dos sonhos, das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem das alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião unânime é que todos esses casos concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, uma vez que em tais casos as nossas sensações certamente se revelam de todo o ponto falsas, e muito longe de ser verdadeira está a afirmação de que todas as coisas que aparecem ao indivíduo também são*, nada, pelo contrário, existe tal como nos aparece.   

*O autor também critica o "vir a ser contínuo" de Heráclito neste trecho.

(…) Sócrates — Queres saber, Teodoro, o que me admira em teu amigo Protágoras? 

Teodoro — Que será? 

 Sócrates — De modo geral, agrada-me sua doutrina, de que tudo o que aparece para alguém, existe para essa pessoa. Só o começo de sua proposição é que me surpreende, por ele não dizer logo no início de sua obra, A Verdade, que a medida de todas as coisas é o porco ou o cinocéfalo ou qualquer outro animal mais esquisito ainda, porém capaz de sensações. Seria o melhor prefácio para um discurso a um tempo brilhante e desdenhoso, com mostrar-nos que, se o admiramos como a uma divindade por causa de sua sabedoria, em matéria de discernimento ele não bate nem os girinos, quanto mais um ser humano. 

Como diremos, Teodoro? Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação; se as impressões de alguém não encontram melhor juiz senão ele mesmo, e se ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras ou falsas, formando, ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em todos os casos serão justas e verdadeiras: de que jeito, amigo, Protágoras terá sido sábio, a ponto de passar por digno de ensinar os outros e de receber salários astronômicos, e por que razão teremos nós de ser ignorantes e de freqüentar suas aulas, se cada um for a medida de sua própria sabedoria? Não nos assiste o direito de afirmar que tudo isso na boca de Protágoras não passava de frase para armar o efeito? No que me diz respeito e à minha arte de parteiro, nem me refiro ao ridículo que provocamos, o que, aliás, se poderia tornar extensivo a toda a arte da conversação. Pois analisar e procurar refutar as fantasias e opiniões de outras pessoas, dado que todas sejam certas para cada um de nós, não será o cúmulo da sensaboria e da tolice, se A Verdade de Protágoras for realmente verdadeira e se ele não estava pilheriando, quando doutrinava dos penetrais sagrados do seu livro? 

Sócrates continua a crítica à teoria de Protágoras: Pois vou ver se consigo explicar melhor meu pensamento. O que perguntamos foi se um indivíduo que aprendeu alguma coisa e dela ainda se recorda, pode deixar de conhecê-la; e depois de demonstrar que quem vê determinado objeto e, logo a seguir, fecha os olhos, deixando, assim, de vê-lo sem deixar de lembrar-se dele, concluímos que ele juntamente se recorda e não conhece, o que é impossível. A este modo, liquidamos o mito de Protágoras e também o teu (Teeteto), visto considerares idênticos conhecimento e sensação. 

Sócrates então passa a descrever os que pertencem ao seu círculo, ou seja os filósofos: Estes sofrem variadas dificuldades e zombarias porque não se apegam às banalidades que a maioria das pessoas se apegam, como riquezas materiais, honrarias, ancestralidade familiar, discursos de bajulação e de jactância. Sócrates então continua: 

[176c] (…) Porém no caso, amigo, de conseguir ele (o filósofo) arrastar alguém para as alturas em que se encontra e de induzir este outro a sair das perguntas: Em que te ofendi? ou Em que me ofendeste? para considerar a justiça ou a injustiça em si mesmas e procurar saber em que uma difere da outra ou de tudo o mais, desistindo de aplicar-se a temas como o de saber se é feliz o Rei ou quem for possuidor de montões de ouro, para estudar a realeza em geral ou a felicidade e a desgraça do homem em universal, em que consistem e de que modo convém à natureza humana adquirir uma e fugir da outra: quando aquele indivíduo de alma pequenina, afiada e chicanista se vê obrigado a responder a todas essas questões, então, é sua a vez de sofrer o mesmo castigo: sente vertigens na altura a que se viu guindado, e por falta de hábito de sondar com a vista o abismo fica com medo, atrapalha-se todo e mal consegue balbuciar, tornando-se objeto de galhofa não apenas das raparigas trácias ou das pessoas incultas em geral, pois todos estes são incapazes de notar o ridículo da situação, como de quantos receberam educação contrária à dos escravos. Eis aí, Teodoro, a condição desses dois tipos. Um, educado realmente com liberdade e lazer (ócio), a quem dás o nome de filósofo, não merece ser vituperado por fazer figura simplória e revelar-se imprestável quando se vê às voltas com alguma ocupação servil, como, por exemplo, não saber amarrar os cobertores na hora de viajar nem temperar alimentos ou preparar discursos bajulatórios. O outro é capaz de fazer tudo isso com rapidez e perfeição, porém não saberá arranjar o manto no ombro direito como o faz o homem livre, e muito menos, apanhando a música do discurso, entoar condignamente o hino da verdadeira vida dos deuses e dos varões bem-aventurados (venturosos). 

Teodoro — Se conseguisses, Sócrates, convencer todo o mundo da verdade do que disseste como fizeste comigo, haveria mais paz e menos males entre os homens. 

Sócrates — É certo, Teodoro. Porém não é possível eliminar os males — forçoso é haver sempre o que se oponha ao bem — nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. É inevitável circularem nesta região, pelo meio da natureza perecível. Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir quanto antes daqui para o alto. Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus (Theo); e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria. Mas a verdade, meu excelente amigo, é que não é fácil convencer ninguém de que as razões consideradas válidas pela maioria para fugir do vício e procurar a virtude não são as que levam um a cultivar esta e evitar aquela, a fim de não parecer ruim, senão virtuoso. A meu ver, tudo isso não passa de história de velhas, como se diz." 

Sócrates então explica que os argumentos da teoria relativista e sensorial de Protágoras, ao afirmarem que "o homem é a medida de todas as coisas" (e que não há uma verdade universal nem absoluta; somente há verdades que cada um percebe) não discerniriam o conhecimento de um médico perante um leigo sobre um determinado sintoma, nem o conhecimento de um cozinheiro diante um cliente sobre como preparar o sabor dos alimentos, nem de um músico ante um outro profissional em relação a como tocar um instrumento ou compor uma música etc. Se a verdade só existisse para cada ser humano que a percebesse, então não haveria como construir conhecimento.

Assim, Sócrates indica que teorias como a de Protágoras são exageradas/ uma grande distorção dos fatos: Apoiada na ideia de que o que é percebido sensorialmente pelo homem é a verdade, esta teoria sensorial e materialista mostra-se relativista, pois tudo o que cada ser vivo percebe individualmente seria a verdade absoluta (e portanto nada seria tal verdade), não havendo uma verdade comum/ universal. De acordo com tais argumentos, tudo seria relativo a cada ser, e assim, não haveria um conhecimento verdadeiro, só a percepção de cada ser poderia ser considerada "conhecimento".

Após refutar a teoria de Protágoras, Sócrates também investiga a teoria dos melissos (Parmênides) de que tudo é um, estático, imóvel (aparentemente o contrário da teoria de Protágoras). Para isso, ele e Teeteto analisam e descrevem o que são os sentidos e por onde eles ocorrem. Entende-se que os sentidos, apesar de captarem imagens, sons, cheiros e sabores, não fazem o processo de identificação, medição, comparação do que é similar ou diferente entre si etc. Estas últimas habilidades são feitas pela alma, ou seja, pela mente (psique), certamente no processo denominado de cognição, séculos após Platão escrever suas obras. É pela atividade da mente, que comparamos sensações passadas com as presentes e especulamos sobre o futuro em busca da verdade. Assim ambos separam a sensação (a percepção através dos sentidos) do conhecimento.

 

Observações sobre "Político (Da Realeza)" Pt. 2

Esta é a 2ª parte das observações sobre a obra "Político (ou, Da Realeza)" a partir do trecho "288a". 

Através do personagem "estrangeiro" ("xenos"), Platão indica várias classes da sociedade separando-as dos governantes (trabalhadores diversos, comerciantes, sacerdotes etc) pois suas funções objetivas não se refere a governar uma cidade ou estado e todas as suas classes de pessoas. 

O diálogo segue com o estrangeiro refletindo e explicando sobre a arte régia, do governante, ao "jovem Sócrates". 

O estrangeiro entende que é preciso um conhecimento ("episteme", traduzido como ciência por Edson Bini) para se governar. Esse conhecimento não é especificamente prático, pois está mais para uma ciência ou arte de observar, gerir e administrar várias outras artes e ocupações da sociedade. Conforme sua explicação, governar não é uma questão a ser resolvida por muitas ou poucas pessoas, por pobres ou ricos nem por voluntários ou escolhidos involuntariamente. 

Sendo uma episteme, a arte de governar, não poderia ser adquirida pela maioria de uma cidade ou estado e sim, seria algo aprendido ou desenvolvido por poucos indivíduos. O verdadeiro sistema de governo descrito pelo "estrangeiro" então, é aquele o qual o governante é detentor da episteme e não alguém que somente parece ter tal conhecimento. 

Neste ponto do diálogo, o jovem Sócrates diz ao estrangeiro, que dificilmente um governo seria realizado sem leis e este o responde que, em certo sentido (ou conforme dizem alguns), a legislação pertence à arte do rei/ do governante. 

Porém, o protagonista (o estrangeiro), segue explicando que as leis nunca abarcam o que é mais justo, ou mais excelente, para todos simultaneamente. As diferenças entre seres humanos e suas ações e as instabilidade de seus negócios fazem com que nenhuma arte consiga estabelecer uma regra de aplicação universal o tempo todo. 

Citando o exemplo de um médico ou professor de ginástica que se ausenta e decide deixar instruções para seus pacientes/ alunos, o estrangeiro explica que, ao retornar de sua ausência esse médico/ professor constataria que seus pacientes/ alunos mudaram de comportamento (por uma razão qualquer) em desacordo com suas recomendações deixadas anteriormente. Neste caso, seria necessário uma mudança das regras/ "leis" instituídas que se tornaram insuficientes ou inadequadas. Se o governante não mudasse as leis em um caso como este exemplo, certamente seu conhecimento (episteme) seria exposto ao ridículo. 

O estrangeiro então prossegue dizendo que em casos como este, a pessoa que tem uma melhoria a oferecer em relação à lei obsoleta, geralmente é aconselhada a persuadir o estado. Porém se alguém decide usar a força (a violência) ao invés da persuasão, para impor uma nova lei no lugar da antiga, estaria cometendo um erro pernicioso por falta de arte. As pessoas forçadas por tal atitude são consideradas vítimas de injustiça, opressão e maldade. Em seguida o estrangeiro diz que o homem sábio e justo que governa um estado, deve realizar o que é benéfico aos cidadãos, fazendo de sua arte a lei. É válido notar que arte (tekhnes) é intercambiável com conhecimento (episteme) neste texto.

Os argumentos seguintes do estrangeiro comparam o(s sistemas de) governo com profissões, especificamente com o médico e o timoneiro: Se os mais ricos assumem todos os cargos destas duas profissões, muitos que não conhecem a arte da medicina ou da navegação iriam exercer tais profissões com base nos seus ganhos e interesses particulares, eventualmente vindo a serem subornados e causando grande dano aos pacientes e/ ou aos navegadores, pessoas na embarcação. Este exemplo compara ambas profissões ao governo da oligarquia. 

Em seguida, o personagem diz que se os cargos de médico e de timoneiro fossem ocupados pelo povo sem o conhecimento necessário para praticar tais profissões, os resultados danosos também ocorreriam devido às escolhas feitas. Estas escolhas seriam feitas por votação da maioria que ignoraria a necessidade do conhecimento para se exercer tais funções. Esta é a comparação com a democracia. 

O texto neste trecho mostra que alguém com o conhecimento da arte régia/ política que questionasse uma incompetência ou injustiça cometida pelos governantes destes sistemas de governo falhos, seria acusado de estar falando das "coisas do céu ou do além" e "incitando a corrupção da juventude". Uma clara referência às acusações feitas contra Sócrates e que o levaram a ser condenado à morte.

No decorrer da obra, são apresentadas 3 formas de governo imitativas do governo real e ideal*, sendo elas: a democracia, a aristocracia e a monarquia. Estas 3 categorias de governo são meras imitações do governo verdadeiro porque seus governantes não têm (ou raramente teriam) o conhecimento/ a episteme para governar. 

*(o governo dos filósofos, ou seja, daqueles que desenvolveram a compreensão da episteme e que propagam esta, ou a "tekhnes" desta, entre aqueles que não sucumbem à natureza bestial, como será mostrado mais adiante).

As 3 formas de governo ainda podem ser divididas em um total de 6 tipos: A monarquia sem leis efetivas seria a "tirania" (a pior de todas as formas de governo), a aristocracia desregulada seria a "oligarquia" e a democracia sem leis seria o "populacho"* (superior à tirania, à democracia, à oligarquia, à aristocracia, perdendo somente para a monarquia e o governo dos filósofos). O governo dos filósofos então seria superior pelo fato de seu(s) governante(s) aplicar(em) um conhecimento voltado à justiça e à serventia da população de sua cidade / estado. 

*Platão separa a democracia em duas: na "lícita" e na "ilícita", mas não dá 2 nomes a esta categoria de governo. 

Esta esquematização parece indicar que em todos os 6 tipos de governo faltam o conhecimento da justiça, da moderação e do servir aos habitantes da cidade/ estado. Certamente porque esse conhecimento refere-se ao que Platão mostra em sua obra a República: a episteme não pode ser desvinculada da ética: a ideia/ forma (eidos) do bem / belo (kalos). Assim, para servir a população com o déficit de conhecimento, a melhor alternativa seria empossar um monarca apoiado em leis voltadas para o governo e serventia da cidade/ estado. A 2ª melhor alternativa, seria deixar o povo cuidar de si mesmo. Porém como o povo é constituído de um grande número de pessoas com interesses diversos, fazer leis para que a maioria governe, seria pouco eficaz e muito confuso ou conflitivo. Então o populacho teria o mínimo possível de leis, ou nenhuma lei escrita. 

A partir destas observações, torna-se perceptível que a monarquia indicada por Platão é diferente das monarquias hereditárias que existiram na Europa medieval e renascentista, pois estas se alicerçaram na ideia de "poder de sangue" e no apoio de uma religião institucionalizada como ferramenta de poder. A democracia para Platão também não é o que está em vigência no início do século 21 e nem é exatamente o que houve nas polis helênicas de seu tempo (século 4 a.C.). Para o autor democracia seria o governo onde a maioria realmente exerceria poder apoiado em leis que tentassem atender os interesses da maior quantidade possível de habitantes da cidade/ estado. Uma "utopia" quase contraditória, já que certamente ocorreriam (muitos) conflitos de interesse e as leis desta "democracia" teriam que ser modificadas ou ignoradas frequentemente. Não se trata de uma democracia representativa, pois Platão parece falar de um enorme número de pessoas tentando governar a cidade/ estado simultaneamente. A democracia dos países liberais/ neoliberais da idade moderna/ pós moderna se parecem mais com um governo de poucos "representantes" eleitos pela população das nações, severamente influenciados pelos interesses de grupos minoritários de multimilionários, os quais fazem lobby adulterando as leis e sobrepondo seus interesses lucrativos sobre o bem-estar da sociedade e sobre as infraestruturas nacionais. Este governo de poucos é o que Platão classifica como aristocracia ou oligarquia. 

O texto continua com o estrangeiro separando os governantes verdadeiros dos juízes, dos militares e dos oradores (nesta última classe, parecem estar os mestres na arte da retórica, da persuasão e das mitologias, divididos em 2 grupos: os sofistas e os poetas/ rapsodos). 

O estrangeiro então diz que a arte verdadeiramente régia (política) deveria decidir o momento oportuno da instauração das medidas importantes a serem tomadas no estado, cabendo as demais artes cumprirem suas determinações. 

Porém a dificuldade sobre o conhecimento da arte régia está ligada à virtude e como partes desta parecem distintas entre si. Esta aparente distinção entre partes da virtude, permite argumentos contrários entre pessoas que defendem só um aspecto desta em detrimento de outro aspecto. 

O estrangeiro cita o exemplo de um grupo de pessoas que defende o auto controle e outro que defende a coragem. Ambos podem apresentar pontos fracos ao exagerarem na priorização de um só destes aspectos da virtude. A grosso modo, as pessoas exageradamente "autocontroladas" podem se tornar teimosas, desinteressadas por tudo fora de suas rotinas ou totalmente estagnadas, enquanto as demasiadamente "corajosas", tendem a ser belicosas, ambiciosas e invejosas. Estes 2 agrupamentos de atitudes são nocivos para as sociedades.

A arte política então como qualquer arte, é composta de elementos e dos melhores possíveis, continua explicando o estrangeiro. Assim ela (a política) deve testar seus elementos (cidadãos) de modo a confiar àqueles que podem propiciar ensinamento, para que alcancem a meta em vista. A arte régia deve supervisionar mestres designados e tutores que atuam sob a lei para propiciar educação ajustada à composição que esta criando. Aqueles que fracassam absolutamente em temperança ou em coragem (ou que não desenvolvam virtude alguma, ou seja, aqueles que se chafurdam na ignorância ou na maldade) tendem a serem arrastados para um estado de "atheóteta"* e por isso devem ser sentenciados à indignidade (destituição de direitos e/ ou de bens), ao exílio ou à morte. 

*Esse termo que aparece entre o fim "trecho 308e" e início do "309a", significa um ateísmo, mais no sentido de irreligiosidade e descrença nos deuses dos estados helênicos/ gregos da época de Platão. Seria a impiedade, um crime naquela cultura/ "nação". Obviamente não faz sentido esperar que Platão apresente ideias totalmente condizentes com o atual início do século 21, tanto que nas polis gregas do séc. 4 a.C., tratamentos desumanos, como a escravidão e a pena de morte, eram aceitos pelo governo e pela sociedade.

Nota-se que apesar dos costumes impiedosos da "Grécia clássica", o autor se esforçou em projetar um governo centrado na educação e na filosofia, que trata da ética e seus valores universais (a virtude e seus aspectos) como tema central. 

O estrangeiro segue explicando que aqueles que não sucumbem a uma natureza animalesca, ao serem educados, tornam-se nobres e unidos como a arte régia exige. Estes teriam maior propensão à coragem ("andreas", também inclui certa virilidade) com um caráter (ethos) mais forte, como a base da trama (urdidura), que dá firmeza ou estabilidade à uma peça têxtil. Ou teriam menos disposição a se desviarem, sendo organizados, como os espessos fios macios de uma peça têxtil. A arte régia tenta combinar estas características da virtude, "atando a parte eterna de suas almas com um laço divino e a parte animal com laços humanos". 

O jovem Sócrates pergunta o que o estrangeiro quer dizer com essa última frase, ao que ele responde (conforme tradução de Edson Bini): 

"Quero dizer que a opinião efetivamente verdadeira e assegurada acerca do nobre (ágathon), do justo (dikaion), do bom (kalos) e de seus contrários é divina, e que quando é gerada nas almas, o é em uma raça de origem divina. " 

Esta frase, principalmente seu último trecho (309c), parece difícil de traduzir e pode significar: "Acerca do nobre, do justo, do bom e de seus contrários, quando a opinião verdadeira e assegurada toca visivelmente nas almas, nasce uma reputação divina no espírito" (theían fimí en daimonío gígnesthai génei). 

O estrangeiro então segue perguntando: "Reconhecemos então que o político e bom legislador é o único a quem pertence propriamente o poder - pela inspiração da (musa) arte régia - de inculcar essa opinião verdadeira naqueles que receberam educação de maneira correta, ou seja, aqueles que aludíamos há pouco? 

Jovem Sócrates: é provável que sim." 

O estrangeiro conclui que não se deve unir os maus com os maus nem os bons com os maus. Os bons devem se unir entre si, assim como se une os diferentes aspectos da virtude mostrados em seu exemplo anterior. Talvez isto dê margem a alguma interpretação segregacionista, elitista ou punitivista do conteúdo, mas tal interpretação seria certamente um equívoco, por ser um anacronismo (ignorar as limitações típicas das pessoas da época e do local quando/onde o texto foi escrito - a "Grécia" do séc. 4 a.C.). 

A seguir ele critica os casamentos feitos em busca de dinheiro e poder. O ideal para o estrangeiro é casar pessoas que mostrem diferentes aspectos da virtude entre si, como no exemplo anterior. Assim, pensando na geração / criação dos filhos, por exemplo, seria bom casar uma pessoa corajosa/ valente com uma pessoa auto-controlada/ organizada, para que se evite exageros que descambem em comportamentos nocivos. Estes seriam os "laços comuns" (certamente os humanos) entre diferentes "classes de pessoas" úteis à trama da arte régia, contanto que estas classes tenham uma opinião comum a cerca do nobre e do bom. Tal união geraria os membros ideais para ocuparem os cargos do estado, para que não faltasse ação e agilidade nem cautela e justiça na política. Então o estrangeiro conclui: Assim, a arte régia uniu o ethos do povo corajoso (andreíon) e sóbrio (sofrónon), mediante a amizade e o sentimento solidário em uma vida comum; e tendo completado o magnífico e melhor dos tecidos, com ele traja todos os habitantes da cidade/ estado - tanto escravos como homens livres; continue com esta rede, e no que diz respeito a todos estes habitantes, nada faltando, você se tornará uma cidade de bem-aventurados, comece e acredite. 

(este último trecho Edson Bini traduz como: "conserva-os juntos graças a esse tecido, e nada omitindo que deva estar em uma cidade feliz, governa-os e por eles zela.") 

Parte anterior: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/03/breves-observacoes-sobre-politico-da.html

Fontes:

PLATÃO Diálogos IV, tradução de Edson Bini, (2020) edipro;

https://www.perseus.tufts.edu/hopper/collection?collection=Perseus%3Acorpus%3Aperseus%2Cwork%2CPlato%2C%20Statesman acessado em 07/06/2024

 

Observações sobre "Político" (Da Realeza) Pt. 1

Platão mostra o diálogo entre o estrangeiro (xenos, em grego) e um jovem “xará” de Sócrates. O diálogo em seu início trata de uma breve tentativa de classificar o político; 

258d - 268c Após separar o conhecimento teórico do prático, eles começam a definir o político como alguém que tem um conhecimento teórico. Depois definem que ele dá certos tipos de ordem, executa leis e faz demandas. O político também governaria um estado independentemente de seu tamanho e serviria seres com psiquê (alma) e não meros objetos. Entre os seres “almados” (enpsiquen), ele governaria humanos e não os animais; Porém se governasse somente os mansos e manipuláveis, ele seria um mero sofista e, por um outro lado, se governasse pessoas questionadoras e/ ou rebeldes, seria destronado, não sendo um político/ governante de fato. 

268d - 272c Após isto o estrangeiro começa sua argumentação baseada nos mitos gregos, focando em contar uma versão “modificada” do mito da era de ouro governada por Cronos; O tradutor Edson Bini compara este mito com a história do Éden da gênese bíblica, quando os “seres humanos” viviam em uma plena condição de ócio constante, sem necessidade do trabalho para sobreviverem. 

Entende-se que, de acordo com o texto de Platão, o universo (cosmos) corpóreo é imperfeito desde sua origem, e que, seu período mais perfeito foi sob a condução (governo) de Deus (theos/ theon) e/ ou do megisto daimoni (uma mega-divindade ou mega-espírito, possivelmente Cronos ou o artesão/ demiurgo) e os daemons (semi-divindades, espíritos bons). Apesar de herdar algumas qualidades abençoadas daquele que o gerou, o universo, devido sua corporalidade, tem sua imperfeição, e por isso, sofreria sucessivas inversões de seu movimento circular, quando deixa de ser conduzido pelo timoneiro (Cronos? demiurgo?) Destes períodos de movimento invertido, somente alguns indivíduos escolhidos por (seu?) theos (Deus) teriam outro destino (não seriam atingidos pela inversão). O estrangeiro diz que este timoneiro do universo larga seu timão e retira-se para o posto de vigia, quando todas as almas completam todos os nascimentos tantas vezes quanto foram prescritas. Poderia este trecho do texto de Platão, ter relação com o conceito de “apocatástase”, a salvação de todos os seres, ensinado pelo cristão neo platônico, Orígenes de Alexandria (185-253 dC)? 

Continuando o diálogo, o estrangeiro diz que descreveu este mito para destacar um grosseiro erro cometido anteriormente: A ideia de que um político ou rei governa uma multidão de seres humanos como um pastor guia sua manada não serve para explicar os humanos de seu ciclo, pois é a descrição do governo feito pelo divino (pelo timoneiro…) 

277c - 278c Ele diz então que sente-se como se soubesse do assunto em sonho, mas quando desperto, esquecia o que sabia. A partir disto, o estrangeiro diz que primeiro deve-se aprender o mais fácil, para depois aprender o mais complexo, citando um exemplo de crianças que aprendem a ler as sílabas curtas e fáceis que conseguem pronunciar primariamente, para depois aprender aquelas mais difíceis que elas começam a falar falsamente/ erroneamente. O estrangeiro conclui que alguém que começa com a falsa opinião (e aceita ela como se fosse verdade) não poderia atingir nem uma diminuta parcela da verdade nem adquirir sabedoria. 

O estrangeiro segue o diálogo buscando exemplos comparativos com a tecelagem; após separar elementos e processos do trabalho com o tecido, o estrangeiro diz que a tecelagem, sendo um tipo de arte de combinação, forma um todo, ou seja, forma um item apropriado para um determinado fim, graças a conclusão do processo de entrelaçamento da trama e da urdidura (posicionamento dos fios ao longo do tear). Este item, chamado de roupa de lã, é o objetivo da arte chamada de tecelagem; Após isso, o estrangeiro propõe examinar o caráter do excesso e da deficiência, com o objetivo de ter uma base racional para atribuir louvor ou censura adequadamente à prolixidade ou brevidade nas conversações deste tipo (com o objetivo de construir conhecimento): 

284a-d Estrangeiro: "Se as naturezas não se dirigem senão para a maior ou para a menor, nunca o são para a média*: não é isso? 

Sócrates mais jovem: Isso."

[* “o que está na devida medida”, de acordo com a tradução de Edson Bini.] 

"Estrangeiro: Não são por essa avaliação destruídos os universos das artes e dos seus ofícios, e não destruímos também a política desejada e o referido tecido cuja definição já contamos? Pois todas elas, sem dúvidas, mantêm a medida da moderação cuidadosamente, vigilantes no que tange ao excesso e à deficiência, não como se fossem negligentes em suas ações, e dessa forma preservam a moderação e sempre fazem o bem e trabalham bem. 

Sócrates mais jovem: Decerto que sim. 

Estrangeiro Se aniquilarmos a política, nossa busca pelo conhecimento da ciência real (da realeza, do governo) será em vão, não é mesmo? 

Sócrates mais jovem: Certamente. 

Estrangeiro: Bem, tal como fomos compelidos no caso do sofista* a ser o não-ser, porque naquela altura a razão (logos**) nos escapou, agora, portanto, o mais alto e o mais baixo são medidos não apenas em relação uns aos outros, mas também para a geração média (do que está na medida). Não é o que devemos fazer? Pois sem isso ser admitido, a existência do político, ou de qualquer outra pessoa que tenha conhecimento dos assuntos práticos, não pode ser formulada de maneira incontestável."

*Alusão ao diálogo Sofista, sobretudo 235a em diante; 

**Neste ponto, “logos” é traduzido como argumento por Edson Bini; 

O estrangeiro então diz que deve-se medir o maior e o menor não só em sua relação recíproca, mas também na relação com o estabelecimento do que está na medida, pois se este existe, também eles existem; (...) Uma existência jamais é possível na ausência de outra existência; 

Isto parece estar em acordo com uma construção de conhecimento que vai além do reducionismo, ou seja, que não é reducionista. Alguns exemplos seriam: o estudo dos campos eletromagnéticos além do mero estudo das partículas e o estudo dos campos eletromagnéticos dos órgãos dos seres vivos, ao invés de estudar apenas os conjuntos de órgãos do corpo separadamente; 

[284e] "Sócrates mais jovem: Isso está correto, mas e depois disso? 

Estrangeiro: É evidente que dividiremos a arte da medição em duas, como foi dito. Cortando-a, damos a uma delas, a função de medir o número e os comprimentos e as profundidades e as larguras e a velocidade em relação aos seus opostos; e a outra, se ocupa da medição em relação ao moderado e ao apropriado e ao oportuno (kairon) e ao devido (deon) e a todos padrões situados na média dos extremos."

Neste trecho, Platão parece querer dizer que além de medir as coisas em relação umas com as outras (medir em comparações, ou em relatividade), é preciso medir as coisas em relação a uma média. Esta média nem sempre parece meramente matemática, como é mostrada no último parágrafo: Deve-se medir as coisas em relação ao que é apropriado ou devido. Isto é um indício que Platão dava importância em buscar estudar as coisas para se alcançar o melhor resultado possível e este melhor resultado não é meramente corpóreo/ sensorial: é ideal e ético, certamente relacionando-se com o conceito de bom e belo (kalos) de Platão; 

285d "(...) me parece que a maioria dos indivíduos não consegue notar que algumas coisas “que são” (tôn ónton) apresentam semelhanças sensíveis de fácil percepção; Não é difícil indicá-las quando alguém está desejoso de proceder a uma fácil demonstração - que não implica problema algum e sem recorrer ao meio verbal - a alguém que solicita uma explicação destas coisas. Por outro lado, as maiores e mais valiosas concepções não apresentam imagem alguma claramente elaborada para o uso humano, imagem que aquele que quer satisfazer a mente do investigador possa aplicar a algum de seus sentidos e, por meio de uma mera demonstração, atingir esta meta. É necessário então, nos empenharmos por meio da prática para adquirir capacidade de apresentar e compreender uma definição racional de cada uma delas. De fato, as coisas incorpóreas, que são as mais excelentes e as mais importantes, só podem ser exibidas pelo discurso racional, e é no seu interesse que tudo que estamos dizendo é dito. Entretanto é sempre mais fácil praticar com coisas de pouca importância do que com coisas de maior importância."

Interessante notar que, ao defender a importância de discutir “coisas incorpóreas” pelo discurso racional, Platão acaba demonstrando a importância de se buscar a ética e os valores universais - pois são temas de extrema importância de serem colocados em prática não só nas leis que regem as sociedades, mas também na construção de conhecimentos, como por exemplo, na ciência, na filosofia etc… 

Continuação: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/06/observacoes-sobre-politico-ou-da-realeza.html

Observações sobre Filebo (do Prazer e da Ética) Pt. 2

Continuação do diálogo Filebo:

Na parte anterior do texto, Platão mostra que Sócrates ensinou aos seus interlocutores, que há 4 gêneros de coisas ou de fenômenos: O finito (uno), o infinito, o misto de finito com infinito (de certo modo, o enumerável) e a causa (nous, a inteligência divina, o conhecimento divino). O prazer se situa no gênero de fenômenos infinitos. A inteligência por sua vez, é aparentada à causa, embora a inteligência humana possa estar no gênero misto, ou enumerável. 

Sócrates segue dizendo que o prazer e a dor nascem do gênero misto: Quando há uma quebra da harmonia nos seres vivos, surge a dor, e, quando há a recuperação desta harmonia, ou seja, a restauração da natureza, ocorre o prazer.

(...) 32a Sócrates – A sede, por sua vez, é destruição e dor. O inverso é prazer a atuação do úmido no ato de encher o que secou (reabastecimento). Do mesmo modo, a desagregação e a dissolução contra a natureza, causadas em nós pelo calor, é sofrimento, como é prazer a volta ao estado natural e ao frescor. 

Protarco – Perfeitamente.

Sócrates – Da mesma forma, a congelação contra a natureza que o frio opera nos humores do animal é sofrimento; mas, quando eles retornam ao seu estado natural e voltam a dissolver-se, esse processo conforme a natureza é prazer. Em uma palavra, vê se te parece razoável dizer que na classe dos seres vivos, formados, como declarei, da união do infinito com o finito, sempre que essa união vem a destruir-se, tal destruição é dor, e o contrário disso: em todos eles é prazer o caminho para sua própria natureza e conservação.

32c-34a (…) Sócrates conclui que as necessidades dos seres vivos, particularmente dos seres humanos, como a sede e a fome são um tipo de dor, enquanto a satisfação de tais necessidades é um tipo de prazer. A esperança de um prazer ou de um saciar vindouro, bem como o medo de uma dor ou de uma escassez (necessidade) vindoura, são antecipações feitas pela psique (mente, alma). Portanto estes exemplos de Sócrates não afetam só o corpo, mas também a psique e, além disto, podem causar expectativas. Embora estes exemplos de prazer e dor sejam mais puros, Sócrates diz que existem casos misturados, como por exemplo, os de sentir calor e frio, que podem ser tanto aliviantes como desconfortáveis, ou mesmo, nocivos. 

Sócrates explica que de todas as pathemáton (afecções ou emoções) a que nosso corpo está sujeito, algumas se extinguem no próprio corpo antes de alcançar a alma, deixando-a impassível, enquanto outras atravessam o corpo e a alma, causando-lhe abalo (seismón) a um tempo comum ambos e peculiar a cada um. As que não passam pelos dois escapam a nossa alma, como não lhe escapam as que passam. Ao dizer que uma afecção não passa pelo corpo, ou que escapa da alma, não deve-se interpretar a expressão como falasse do esquecimento. O esquecimento é perda da memória e, no presente caso, a memória ainda não nasceu. É absurdo falar de perda do que não existe e ainda não nasceu. Então, Sócrates recomenda que em vez de dizer, quando algo escapa à alma, que esta esquece (léthen) os abalos do corpo, será preferível dar o nome de insensibilidade (aenesthesin) ao que denominamos esquecimento. Mas quando o corpo e a alma são afetados pelo mesmo agente e se movem a um só tempo (comovem), o nome de aesthesin (sensação ou percepção) a esse movimento, é o mais apropriado. Isto seria a conexão da alma e do corpo em um único estado emocional comum e em um único movimento. A memória seria a preservação desta percepção ou sensação, enquanto a recordação (reminiscência) seria quando a psique, sozinha e independente do corpo, lembra de qualquer coisa que experimentou junto ao corpo.

34a-35d Então Sócrates explica que as reminiscências e a memória desempenham papel central no processo de lembrar das boas e das más sensações… Mesmo daquelas atribuídas normalmente ao corpo como fome, sede etc. 

A seguir Sócrates afirma que quando vemos algo de longe, naturalmente nos perguntamos o que é. Daí podemos formular uma opinião certa ou errada.

O fato de perceber algo de maneira incompleta ou mal, ou o fato de não perceber algo, não nos dá uma visão completa de uma verdade. Então as coisas podem parecer maiores ou menores do que realmente são.

Isto é nítido na visão que as pessoas têm da dor e do prazer: O prazer chama mais atenção, é mais desejado, parece maior, mais intenso etc. A dor e a dificuldade sendo diminuídas, muitas vezes são ignoradas pelas pessoas que não as sentem diretamente. 

A memória gravaria as sensações na alma a partir das percepções e experiências. Portanto entende-se que o corpo mantém-se separado da alma e suas respectivas afeições. 

Após criticar aqueles que se entregam aos prazeres materiais a ponto de entrar em estados de torpor, histeria, vício etc, Sócrates dá exemplos dos males da alma: 

 Sentimento de inveja e prazer na desgraça alheia; Ignorância; Orgulho, vaidade, valentia; Rir da situação ridícula de um amigo… 

“Sócrates – Há duas espécies de coisas: a que existe por si mesma e a que sempre deseja outra. 

Protarco – De que jeito e que coisas são essas? 

Sócrates – Uma é de natureza nobre; a outra lhe é inferior. 

Protarco – Seja mais claro. 

Sócrates – Já vimos belos e excelentes jovens e também seus valorosos apaixonados. 

Protarco – Sem dúvida.” 

Sócrates – O que afirmo é que os remédios, todos os instrumentos e todos os materiais são sempre aplicados em vista da geração, e que cada geração se faz em vista desta ou daquela essência, e a geração em geral, em vista da essência universal. 

Protarco – Ficou bastante claro. 

Sócrates – Nesse caso, se o prazer for, de algum modo, geração, necessariamente terá de sê-lo em vista de alguma essência. 

Protarco – Como não? 

Sócrates – Assim, a coisa em vista da qual se faz em vista de qualquer coisa pertence a classe do bem; mas o que é feito em vista de qualquer coisa, meu caro, devemos colocar numa classe diferente. 

Protarco – Forçosamente. 

Sócrates – Estando, pois, o prazer sujeito à geração, andaríamos certo se incluíssemos numa classe diferente da do bem? 

Protarco – Certíssimo, sem dúvida. 

Os prazeres, ou a maioria deles, ficariam em uma categoria abaixo das propriedades mentais como a inteligência, a bondade, a moderação. 

Ao avaliar os prazeres, Sócrates classifica como mais baixos os que se misturam com a dor e os de grande intensidade física. 

Os prazeres dos cheiros e sabores viriam em seguida… 

Então os auditivos e os visuais (No diálogo Hípias Maior isto é reforçado) 

Os maiores e mais nobres seriam os mentais: Relacionados à inteligência, o conhecimento, à humildade, à solidariedade, ao amor, à bondade etc 

Então ele cita a necessidade do movimento, da mudança e da mistura... 

Sócrates – Resolves, então, que eu ceda e abra de par em par a porta, à maneira de um porteiro comprimido e forçado pela multidão, e deixe entrar todos os conhecimentos, para que os impuros se misturem com os puros? 

Protarco – Não percebo, Sócrates, que mal adviria do fato de aceitarmos todos os conhecimentos, uma vez que ficássemos com os de primeira qualidade. 

Sócrates – Tal como dissemos há pouco: Não é possível, nem disso adviria nenhuma vantagem, que qualquer gênero puro permaneça à parte e solitário. Se compararmos os gêneros entre si, de todos o melhor para nosso companheiro de casa é o que conhecer a todos e a nós outros por maneira tão perfeita quanto possível. 

Sócrates – Mas ainda há um ingrediente indispensável, sem o qual nada se poderá fazer. 

Protarco – Qual é? 

Sócrates – Se não incluirmos verdade na mistura, nada poderá nascer nem verdadeiramente subsistir. 

Protarco – Como fora possível? 

XL – Sócrates – Não há jeito. E agora, se ainda faltar alguma coisa para nossa mistura, tu e Filebo que se manifestem a meu parecer, o argumento já está completo, podendo ser comparado a uma espécie de ordem incorpórea que dirige admiravelmente bem um corpo animado. 

 Protarco – Ficas autorizado, Sócrates, a dizer que essa, também, é minha maneira de pensar. 

 Sócrates – E se declarássemos que nos encontramos agora no vestíbulo da casa do bem, teríamos falado com muita propriedade. 

(...) Sócrates – É que, se em qualquer mistura faltar medida e proporção na natureza de seus componentes, fatalmente se arruinarão seus elementos e ela própria. Deixará de ser uma mistura regular, para transformar-se num amontoado heterogêneo, que será sempre um verdadeiro mal para seus possuidores. 

Protarco – É muito certo. 

Sócrates – Agora, tornou a escapar-nos a essência do bem, para asilar-se na natureza do belo. Pois é na medida e na proporção que sempre se encontra a beleza e a virtude. 

Protarco – Perfeitamente. 

Sócrates – Como também declaramos que a verdade entrava nessa mistura. 

Protarco – Certo. 

Sócrates – Assim, no caso não podermos apanhar o bem por meio de uma única idéia, recorramos a três: a da beleza, a da proporção e a da verdade, para declarar que todas elas reunidas, podem ser consideradas verdadeiramente como a causa única do que há na mistura, a qual passará a ser boa pelo fato de todas o serem. 

Sócrates classifica os bens na seguinte ordem, no final do diálogo: 

O moderado, a medida e o apropriado; 

O belo, bom (kalos), perfeito, suficiente (simétrico); 

A sabedoria, inteligência, mente (nous) que busca a verdade; 

Os conhecimentos (epistemes), artes (tekhnes) e opinião correta (doxos orthos); 

Os prazeres sem dor e prazeres puros da alma relacionados ao conhecimento (episteme) e às vezes aos sentidos; 

Interessante notar as conclusões possíveis a partir do diálogo entre Sócrates e Protarco, ou, mais precisamente do texto "Filebo" de Platão: 

Este e outros textos de Platão, já indicam que a matemática estava na filosofia desde o século 4 a.C. (possivelmente antes, com Pitágoras) e na verdade, ela nunca deixou a filosofia. Vide o filósofo e matemático fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, que na virada do séc 19 ao 20, já discutia se a matemática era uma invenção humana ou uma lei natural descoberta pelo ser humano. O próprio Husserl mudou de ideia sobre esta questão ao longo de sua carreira! 

A ideia de "uno" e "infinito" discutida em Filebo de Platão são conceitos surgidos na filosofia que inevitavelmente tocam a matemática: O autor explica que o que é passível de medição, ou seja, o enumerável, seria o meio termo do uno com o múltiplo, ou do finito com o infinito, e seria gerado pela causa - Nous. Nous, por sua vez, foi traduzido ao português ora como conhecimento, ora como inteligência. Mas se trata de uma inteligência divina, criadora (perfeita e/ ou superior ao ser humano, pois certamente "está lá" desde o "início" do universo) como o próprio autor explica; o arquiteto ou demiurgo. Inclusive a matemática obviamente trata de duas coisas imateriais ou, ao menos, "não-materializáveis" / incorpóreas: o zero e o infinito. O primeiro parece mensurável, mas é ausência de algo, ou inexistência, enquanto o segundo obviamente nem é mensurável ou passível de medição, porque não tem fim. Sendo assim, isso não é (ciências) exatas - ainda é uma questão filosófica, passível de ser discutida racionalmente, mas que não pode ser plenamente coberta por um método empírico de investigação, afinal quem poderia medir o infinito? Quem poderia fazer uma demonstração material do zero?

Sendo a matemática algo mais amplo do que um estudo empírico, ou mais vasto do que um saber de pressuposto materialista pode cobrir, ela pode ser discutida juntamente com as questões da finalidade das coisas, as melhores maneiras das coisas serem (ontologia de Platão) e com a ética de acordo com Platão, a ideia (eidos) do bem (kalos). 

 Enfim, a matemática faz parte da filosofia e é analisável por este saber. Embora ela trate principalmente do enumerável e passível de medição, ela tem ao menos alguns fundamentos em conceitos mais abstratos/ filosóficos como o zero e o infinito. E mesmo a parte especificamente enumerável / passível de medição mencionada por Platão também é alvo de investigação filosófica, pois o filósofo identificou que todo estudo humano trata desta "parte" da lei natural ou matemática e que a beleza, relacionada com o bem (kalos) está nesta lei desde a sua causa, ou seja, há a beleza e o bem, desde o "ínicio do universo", a "criação de tudo" pela causa - Nous.

 

Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...