Psiquê, sentido de vida e mediunidade

Escrevo  este texto após algumas reflexões sobre o que veio acontecendo comigo nos últimos 6 anos. São anotações mais para mim mesmo do que para outras pessoas, mas deixarei tais anotações expostas aqui neste blog por "tempo indeterminado"...

Seriam os pensamentos mundanos mais eletromagnéticos do que os éticos e espirituais? Penso isso pelo fato de me parecerem mais "grosseiros ou densos" do que a atividade mental entorno da solidariedade, da busca por viver valores universais… 
Falando em valores universais, sobre este tema só consigo pensar em filosofia ou em espiritualidade então recorro a breves resumos sobre teorias destes dois aspectos:
Platão, em sua obra "A República" dividiu a psiquê em 3 partes: 
a instintiva: dos apetites e necessidades mais básicas ligadas aos prazeres "afrodisíacos" e dos banquetes;
a da indignação (“thymous” e termos correlacionados a este) e dos impulsos sentimentais e desejos emocionais; 
e a da razão, da busca pela sabedoria e das virtudes, da ética. 

Os astecas em sua espiritualidade (ou religião) falam da alma em 3 partes do corpo: fígado, coração (alma), parte superior da cabeça (destino) de modo similar à Platão. 

Tive algum tipo de "insight" ao pensar como se iniciaram meus problemas de "obsessão mediúnica" em 2019: naquela época eu me sentia deslocado/ solitário mas era muito sexista e meio que por consequência, hedonista. Também lia muito sobre mitologia e começava a ler sobre misticismo e então comecei a sentir o que eu chamava de “escorregão mental”. Na verdade era pior do que um "escorregão", porque era acompanhado de sentimentos externos horríveis como ódio, malícia e um desejo de me fazer mal. Externos porque notoriamente não eram meus sentimentos: pareciam tentativas de contato mental como se fosse telepáticos ou espirituais, porém sem me transmitir mensagem alguma.

Enfim, o assunto envolve algumas coisas íntimas, mas em suma eu pensava coisas erradas e isso devia atrair tais coisas ruins. Algumas semanas ou meses depois começarem as experiências ruins que me fizeram buscar ajuda espiritual; Excluindo a primeira delas, uma sensação horrível de arrombamento psíquico que me parecia algo como um espírito odioso tentando me possuir, muito do que senti além de intrusões mentais eram choques ou formigamentos em meu entorno que muitas vezes percorriam o espaço e me atingiam em variados pontos do meu corpo. Daí a percepção “eletro e/ ou magnética”... Às vezes essas "coisas" que percorriam o ar ou um campo (eletro)magnético perto/ em volta de de mim, causavam-me dor ao me atingirem e às vezes causavam alguma sensação mais química quando acertavam qualquer parte de meu sistema digestivo (boca, esôfago, estômago…) 

No decorrer dos 4 ou 5 anos seguintes, conforme passei a me esforçar em melhorar moralmente/ eticamente e também passei a abandonar alguns gostos e desejos, eu obtive algumas melhoras e tais experiências diminuíram significativamente. Logo o sentido de vida mostrou-se intimamente ligado a tais fenômenos, os quais entendi como mediúnicos - A umbanda e o espiritismo me ajudaram a entender a situação geral muito melhor do que a ciência, pois esta última simplesmente alternava entre negar minhas percepções e classificar várias delas como meras alucinações. Alucinações estas, que de acordo com a ciência (psiquiatria e/ou neurologia), teriam causas variáveis e mal definidas, certamente classificadas com alguma razão (mas ambiguamente) de multi causais. Eu considero que já tive alucinações sim: Somente uma ou duas vezes em minha infância entre 1988 e 1990, quando fiquei febril devido a alguma doença (gripe acho eu): Tentando dormir em meu quarto eu olhava para porta entreaberta que dava no corredor do apartamento onde havia uma luz acesa. Eu suava enquanto ouvia minha mãe conversar com uma prima minha na cozinha. Com alguma sonolência, eu "vi" sem certeza alguma elas se aproximarem da porta aberta. No dia seguinte, já sem febre, perguntei à minha mãe, se ela e minha prima foram em direção ao meu quarto na noite anterior. Ela (ao lado de minha prima) respondeu-me que não. 
Isso eu considero alucinação: Percepções sob um estado patológico e que são incertas, justamente por estarem relacionadas a algum mal funcionamento do corpo (do sistema sensorial ou  nervoso, suponho eu, que não tenho conhecimento em medicina, mas tenho em psicologia, história da psicologia, filosofia, história da ciência e da filosofia).

Todo o espectro de fenômenos os quais a umbanda e o espiritismo classificam como relacionados ao que eles chamam de perispírito parecem ligados ao que entendi como eletromagnético… e de fato, em algumas publicações do espiritismo francês do séc 19, foi teorizado que o perispírito poderia ter ligação com o magnetismo e a eletricidade, ou seja, com o eletromagnetismo que ainda era desconhecido na época. Somente na década de 1960 foram descobertos os campos eletromagnéticos de órgãos do corpo e mesmo assim pouco foi estudado e descoberto sobre suas finalidades e causas… 

Minhas melhores experiências desta categoria, sejam classificadas de místicas ou de mediúnicas, nada tiveram com sexismo ou hedonismo (na verdade estas foram em geral horríveis) - Elas tiveram relação com desejo sincero e felicidade por fazer o bem ao próximo e com implorar por esperança. O resultado destas duas atividades/ situações mentais minhas foi transcendental, ou seja, o que entendo como êxtase espiritual. Isso não quer dizer que eu tenha controle sobre tais experiências e imagino que um dos motivos disto seja o fato de envolver algo como "uma consciência ou existência" além desta na qual vivo "normalmente". Entre todas experiências espirituais ou mediúnicas que tive, estes êxtases foram as mais reais de todas. Inclusive foram mais reais do que meu estado de vigília comum aqui na Terra, embora me pareça fútil explicar tais fenômenos para quem não experimentou nada igual ou similar...

Já a última experiência ruim que tive foi na festa da virada de 2024 para 2025 junto a minha família e colegas… as nossas conversas giraram em temas cotidianos como trabalho e algumas futilidades (praticamente nada relacionado ao que faz sentido para mim) e após comer bastante e beber duas ou três taças de bebida alcoólica, fomos dormir. A experiência ruim que mostrarei a seguir tem muito mais a ver comigo do que com qualquer pessoa presente naquele evento: primeiro porque o que descreverei aqui ocorreu comigo em minha psiquê, segundo porque apesar da minha posição e relações (histórico e contexto), o evento trata de meu sentido de vida/ de existência: após um brevíssimo sono de menos de 5 minutos eu me vi voltando ao meu corpo numa aparente escuridão e ele estava imundo - essa "sensação" me pareceu tão real quanto meu estado de vigília, não sendo um mero sonho (embora mais uma vez, seria como falar com as paredes tentar explicar isso para quem não vivenciou etc...) Essa imundice era principalmente de 2 tipos: um campo que devia ser sutil em volta de meu corpo, mas estava denso ou pesado de alguma maneira; e algo mais psíquico como sentimentos e desejos ruins, estes, imagino que mais de outrem do que meus, porém irreconhecíveis - não os via como espíritos de conhecidos, no máximo eu “via” sombras ou vultos turvos me cercando de modo mais vago do que preciso. Enfim, a sensação foi semelhante a um pesadelo muito ruim, mas muito mais real, o que me fez acordar gritando - um grito que comecei sem meu corpo e terminei vocalizando através dele. Devido a tal situação, achei melhor voltar para minha casa naquela madrugada.

Não se trata de taxar pessoas (ou almas) pois essa minha percepção é intimamente ligada à minha psiquê e ao meu sentido, como eu expliquei. Entendo que na Terra não há definitivamente almas melhores ou piores, pois tudo está submetido ao tempo sendo mais momentâneo do que a realidade puramente psíquica. Neste ponto não me refiro a atividade mental cotidiana nem a uma suposta realidade espiritual genérica e sim à realidade puramente psíquica mais próxima do que Platão indica em algumas de suas obras: A realidade cognoscível que busca as virtudes, as essências ou o que é imutável (a ética, o espiritual que o autor chamava de daemons, ocasionalmente traduzido como divino). Sendo assim, tal realidade divina não se apega às coisas mais terrenas como prazeres dos “banquetes”... os prazeres aos quais me submeti àquela tarde/ noite. A (minha) mediunidade por fim mostrou-se uma hiper sensibilidade a tudo que se relaciona com minha psiquê: meu sentido de vida, o que eu faço, o que eu penso, desejo, o quanto me empenho em minhas conversas, atividades etc… No momento só posso tentar entender minha situação e os fenômenos percebidos por mim através de uma investigação filosófica, ou seja, por via de uma construção de conhecimento pelo diálogo (nem que seja comigo mesmo) e pela reflexão racional/ racionalização. Não vejo como pensar cientificamente sobre minha vida e meus desafios enquanto a ciência manter-se predominantemente reducionista e determinista. Enquanto essa ciência ignorar ou desprezar meus relatos, dando respostas arbitrárias com pré suposições distantes da ética e que ignoram particularidades, contextos sociais, culturais, existenciais e espirituais.

Além disto, minhas dificuldades psicoemocionais/ espirituais destes últimos anos serviram para eu buscar o sentido de minha vida. Sentido este que estava completamente encoberto por minhas contradições, medos e até por algumas mesquinharias que eu tinha. O sentido de vida então não pode ser algo fugaz nem meramente material como juntar dinheiro, bens ou experimentar prazeres sensoriais - Trata-se de algo existencial que envolve manifestações psíquicas mais duradouras do que emoções: algo como bom sentimento; Às vezes é difícil, ao menos eu acho difícil lidar com a mediunidade e com os sentimentos que nem sempre são bons, pois ainda tenho que lidar com os sentimentos ruins; Apesar das dificuldades devo viver, pois sentido de vida não é meramente um objetivo ou um rumo; trata-se de ser, trata-se de viver genuinamente o presente... com esperança.

Observações sobre a Apologia de Sócrates e sobre Sócrates e Platão

Segue um breve resumo e observações sobre a Apologia de Sócrates (o julgamento de Sócrates), seguido por observações mais gerais do trabalho de Platão:

 Sócrates foi levado a julgamento e começa se defendendo dos acusadores, afirmando que estes mentiram ao chamarem-o de "hábil em falar”. Ele explica que apenas apresentava fatos, falando a verdade e que seus discursos eram improvisados, não embelezados como o de seus acusadores. 

De fato, nos diálogos escritos por Platão, seu mestre Sócrates não apresenta linguagem empolada cheia de termos difíceis ou muito complexos. Embora os conteúdos ocasionalmente possam parecer complexos como mostrado nos textos Parmênides, Sofista e Teeteto, a linguagem de Sócrates em si é geralmente simples. Talvez para nós leitores que ganhamos acesso à obra de Platão após 2 milênios (!), a linguagem dos diálogos possa parecer um pouco esquisita ou difícil de entender, mas isso possivelmente se deve a diversos outros fatores: Por exemplo, Platão tinha um status social diferente de Sócrates, pertencendo a uma classe certamente "superior" a de seu mestre, então pode ter feito adaptações e modificações nos diálogos. Além disto os textos de Platão certamente passaram por muitos tradutores diferentes ao longo de séculos, e tais tradutores tem suas próprias particularidades, sejam de idioma ou mesmo de interpretação. 
Comparei ao menos 4 tradutores de diferentes textos de Platão e notei que em geral eles se mostraram poucas diferenças entre si, certamente sendo fiéis ao conteúdo da obra, com eventuais possíveis deturpações de impacto pouco relevante. Particularmente gostei do trabalho de Edson Bini que indicou vários termos originais do grego antigo em suas traduções. Isto me inspirou a checar o site "perseus.tufts" sobre alguns pontos de dúvida que eu tive nos textos de Platão.
A linguagem simples de Sócrates então indica um ponto central da filosofia ocidental em sua origem, pois está conectada à presunção da ignorância, onde assume-se que não se conhece um assunto ao começar estudá-lo: Platão destaca isso não só nesta obra, mas também em suas críticas à retórica (como em Górgias, por exemplo), afinal sem uma linguagem simples e transparente, fica difícil abordar a ética e os valores universais. Não se trata só de buscar a excelência, a justiça, a moderação, a coragem e o bem, mas também de colocá-los em prática para o bem do coletivo... e se é para o bem do coletivo, é para o bem comum do maior número possível de pessoas e de seus representantes (governadores e legisladores, enfim a cidade/ estado). Sendo para o bem do coletivo, a filosofia como uma construção de conhecimento alicerçada na ética não poderia ter uma linguagem complexa e totalmente alheia ao povo, mesmo Platão apontando em sua obra, a diferença entre as 3 classes típicas da sociedade/ de pessoas.

Sócrates diz temer mais do que seus acusadores, alguns autores que ao longo dos anos, inventavam mentiras sobre ele. Estes, que convenceram a muitos atenienses, o acusaram de “tornar o discurso inferior, superior” e de não crer nos deuses (a impiedade da Grécia clássica). Estas acusações tentaram classificar Sócrates como um sofista (orador que vendia seus serviços para convencer os outros) e como um naturalista (filósofo geralmente tido como ateu, devido a explicar fenômenos da natureza “em demasia”), porém o filósofo não cobrava dinheiro de pessoa alguma e acreditava no divino. O filósofo diz que existem indivíduos que o acusa há muito tempo e outros que fazem acusações recentes. Assim ele se defende primeiro dos argumentos tipicamente usados por seus opositores e críticos de longa data, como por exemplo, o poeta cômico Aristófanes, para depois se defender das acusações recentes.


 Sócrates conta que (em sua juventude) a píthia (sacerdotisa que realizava o oráculo de Delfos) lhe disse que era o mais sábio entre os homens e que por isso, achando que nada sabia, foi questionar outros supostos sábios sobre suas respectivas “sabedorias”. Assim Sócrates descobriu que vários homens tidos como sábios, apenas se achavam sábios, enquanto ele mesmo, ao menos, reconhecia que nada (ou pouco) sabia. 

 Esta é a postura básica, ou seja, o pré requisito que deve servir de base para qualquer indivíduo em todas as áreas do saber. Assumir que não conhece os temas (fatos, fenômenos etc) que não foram estudados para manter-se “aberto” à possibilidade de aprender. Isto inclui não emitir a própria opinião como verdade absoluta. Ao manter tal postura, o indivíduo não deve admitir um discurso alheio imediatamente como verdade; ele pode e deve questionar/ investigar o que está sendo apresentado por outrem.

 Sócrates passou a questionar diversos sábios, políticos, poetas, artesãos, entre outros, e descobriu que os mais bem-vistos eram os mais carentes de uma conduta reflexiva, enquanto os mais banais, lhe pareceram os mais razoáveis. Por causa desta perambulação, Sócrates passou a ser odiado por muitos.
 Sócrates então, diz crer que O Deus (*) é sábio, mas a sabedoria humana nada vale. Por isso, em conformidade com Ele, seguiu investigando e interrogando para identificar aqueles que pensam que sabem, e então refutá-los. 

(*) Certamente o theos citado pelo filósofo em variados diálogos; Alguns tradutores utilizam maiúscula, enquanto outros usam a letra inicial minúscula;

Nesta perambulação, Sócrates não tinha tempo para exercer outras atividades e vivia na penúria. Porém, os jovens filhos dos abastados que dispunham de ócio, ouviam Sócrates e se juntaram em seus questionamentos. Isto teria enraivecido os homens proeminentes da sociedade, que geralmente eram ambiciosos e/ ou violentos e passaram a acusar Sócrates de corromper a juventude. Sócrates então conclui que tais homens enraivecidos não sabem dizer o que ele ensina aos jovens para "corrompê-los", e por consequência disto, se emudecem ou utilizam-se de argumentos já prontos como os do poeta Aristófanes.
 Os pseudo sábios (ou os "bem vistos" pelo povo) refutados por ele, não conseguiam provar que conheciam algo de fato, então passavam a acusar Sócrates, em torno de 3 argumentos falaciosos:
1. Que Sócrates não acreditava nos deuses. Possivelmente um ataque feito mais pela classe religiosa / supostamente espiritualizada, como sacerdotes e poetas, afinal a religião predominante ou popular na Grécia clássica era o politeísmo;
2. Que Sócrates tornava superior o discurso inferior. Certamente uma acusação das altas classes sociais da Grécia clássica. Artesãos enriquecidos ou indivíduos com grande poder político, tinham medo de serem questionados perdendo suas fortunas caso o povo descobrisse seus crimes; 
3. Que Sócrates falava das coisas suspensas no ar e sob a terra. Esta acusação certamente se juntava a de “ensinar coisas numinosas”, ou seja relativas ao espiritual (daimonia). Possivelmente a classe dos sofistas e retóricos (oradores) insinuava que Sócrates falava de coisas “do além”, de coisas que “não existiam”;
 De fato, embora as acusações pudessem se misturar (um poeta, por exemplo, criticou Sócrates, usando a 3ª acusação), Sócrates completa esta sua argumentação, explicando que viciados pelo prestígio, seus 3 acusadores, Meleto, Anito e Licon, vieram representar respectivamente as 3 classes mencionadas anteriormente. O acusador Meleto aparece somente dando breves respostas, certamente porque Platão, ao escrever o texto, priorizou a fala de seu mestre, Sócrates.
 A partir daí Sócrates refuta as acusações de Meleto, explicando que era impossível não crer em deuses, ensinando sobre os numes e o numinoso, que tinham relação com o conceito de divino e origem nos próprios deuses. 

Ele adiciona que devido ao ódio de muitos, mesmo refutando as acusações, deve perder a causa (acabar condenado), e que mesmo assim, não teme a morte, pois não deve-se priorizar a própria vida (corporal, sensorial) ante a busca pela justiça e benevolência. Deve-se agir e fazer coisas justas e belas, mesmo que haja um risco de morrer. A morte é sempre algo desconhecido, que não se sabe, por isso temer a morte diante a oportunidade de se fazer o bem, é ignorância, é pensar que se sabe o que não se sabe. 
Como defesa, Sócrates faz um discurso dizendo que não conhece coisa alguma do Háidoy (o mundo dos mortos, reino de Hades), exceto o que é injusto e feio e não deve ser feito. 
Ele explica que em suas andanças, apenas incitou jovens e velhos a zelarem pela verdade, pela sabedoria e a aperfeiçoarem suas psiquês (almas). Após pedir algumas vezes para que os demais não façam tumultos e algazarras (Platão não registra tais casos em seu texto), Sócrates diz: "Saibei que se me matardes, sendo eu o homem que digo que sou, não me ferireis mais do que a vós próprios; com efeito nem Meleto nem Anito seriam capazes de ferir-me, o que julgo impossível, pois acredito não ser permitido pelas themitón (*) que um homem melhor seja ferido por um homem pior." 
Ele completa esse argumento explicando que foi destinado à cidade (de Atenas) para dar seus aconselhamentos privados e não publicamente na política, por algo divino pertencente a(s vozes d)os daimons. [theion ti kai daimónion gignetai (phone)]. Isto porque, se agisse publicamente na política, ele seria morto antes de chegar na idade que chegou. Sócrates diz que para viver como viveu, na pobreza, sem ganhar fortunas ou bons cargos, não faz sentido que tivesse outro motivo além dele ser uma dádiva dos deuses para a cidade.

(*) Edson Bini destaca que essa palavra que lembra o nome Themis (deusa/ titã da justiça) se refere às leis humanas ou divinas. Certamente há o teor divino/ espiritual, pois Sócrates não temia a morte por crer na justiça, que o theos e os daemons (os bons espíritos, guardiões) eram virtuosos/ justos etc.

O desfecho do julgamento de Sócrates é famoso: Após refutar seus acusadores ele recebe uma chance de escapar da pena de morte caso parasse com suas atividades consideradas como "corruptoras" da juventude na Atenas de seu tempo (o século 4 a.C). Sócrates, porém, continua afirmando que iria até o fim da sua vida, exercendo a filosofia e perguntando se aqueles que militam em favor do dinheiro (a fim de possuir sempre mais) e da fama não sentem vergonha. Pois, por fazerem parte de uma cidade com a reputação de ser tão sábia e forte como Atenas, deveriam se preocupar com a reflexão, a verdade e a alma, para que se torne sempre melhor. 
Por esta razão o "tribunal" lhe retira a chance de viver e ele é condenado a beber sicuta (um veneno mortal), tendo que esperar os próximos dias na prisão.

 A filosofia socrática e platônica é essencialmente uma, pois Sócrates não deixou escrito algum: Praticamente todos seus ensinamentos foram registrados por Platão. Independentemente se Platão adicionou suas próprias ideias às de Sócrates, é notável que a filosofia de ambos não é um saber isolado da realidade. Ambos autores aprenderam determinados conceitos de alguns filósofos naturalistas "gregos" (pré socráticos), como Parmênides, Anaxágoras entre outros. Além disto, a filosofia socrática-platônica, que é a raiz e cerne de toda a filosofia ocidental, trata de questões sociais e psicológicas e tem sua centralidade na ética. Esta ética busca um (ou busca o) valor universal, certamente a ideia (eidos) do bem/ belo (kalos), que deve ser desenvolvido por cada indivíduo e propagado com equidade a nível coletivo/ social. Neste processo de trabalhar a noção do bem das pessoas, Sócrates e Platão criticam abertamente a priorização das honrarias, da competitividade (*), do acúmulo de capital e de riquezas materiais (*). 
(*) Estas são as típicas priorizações ou preferências de 2 tipos de indivíduos identificados e nomeados pelo filósofo respectivamente de filónikon (o briguento, ou amante da vitória) e filokerdes (o amante do lucro ou do dinheiro) na obra "A República".

 Afinal a pessoa que prioriza a vida luxuosa, certamente busca cada vez mais status (posição de poder e/ ou fama) e/ ou busca mais e mais prazeres sensoriais de qualquer natureza, mas geralmente os mais “grosseiros”, classificados por Platão como os "prazeres dos banquetes" e os "afrodisíacos". Ao que parece, atualmente são entendidos como os prazeres mais neuroquímicos - do paladar ao saborear alimentos, do tato na atividade sexual etc. Esta busca contínua (regular, insistente ou prioritária) por status, competição e/ ou por muitos bens/ prazeres, naturalmente afasta a pessoa de uma vida centrada na justiça, na empatia, na equidade, na solidariedade, na humildade ou em qualquer outra virtude. A pessoa tende a se comportar como um viciado, levando um estilo de vida hedonista e/ ou materialista-niilista. Por estas razões a filosofia ocidental em suas bases, (socrático/ platônica) mostrou-se coerente com a crítica ao materialismo feita em Teeteto e a crítica ao hedonismo em outros diálogos como Filebo e A República. A filosofia em sua origem é aberta à espiritualidade e à religiosidade (como pode ser notado nos diálogos Fedro e Fédon), mas mantém uma postura ética e questionadora.

Platão, o fundador da Academia e de certo modo também fundador da filosofia ocidental, apresentou a ética como um dos temas centrais de seu trabalho desde suas primeiras obras (Fedro, Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon). Nestas obras ele já tentava traçar, ainda que vagamente, a relação de sua ética (as virtudes como temperança, justiça etc) com a psiquê humana;
Das obras "intermediárias" em diante, Platão claramente indica que não há uma verdadeira construção de conhecimento (epistemologia, pedagogia, enfim, filosofia) sem se pautar pela ética. Em Górgias, obra que critica o uso da retórica para fins particulares, o autor traça uma relação entre a lei natural e a lei humana, portanto faz uma comparação de que há uma semelhança entre justiça e o equilíbrio existente entre forças da natureza. Na República por exemplo, as abordagens sobre a realidade divina estão mais sutis e mais racionalizadas (acessíveis pela cognição) em comparação com obras como Fedro, mas ainda estão por trás das características das virtudes: imutabilidade e universalidade. As obras não se contradizem: na verdade Platão aborda os valores universais e a realidade espiritual/ divina através dos estados alterados de consciência (manike), do desejo e do amor em Fedro, e, através da racionalização, do estudo dialético, da reflexão sobre o indivíduo e a sociedade em A República.
Embora dificilmente aceita na academia deste início de século 21, o argumento da realidade divina apresentado na obra Sofista e em outras, dialoga sem problemas com a ética do autor que sempre foi composta de valores universais, ou seja, que não são afetados pelos ciclos de geração e corrupção da realidade "sensível" (sensorial). Além disto, tal ética pode ser encontrada ou desperta pela psiquê humana - a mente e alma como uma coisa só. A psiquê apresentada por Platão não é imortal por mera opinião do autor e sim por uma série de observações que ele apresenta em algumas de suas obras, simplesmente ignoradas ou recusadas pelos materialistas. É óbvio que as observações de Platão não foram feitas com o método de investigação empírico que é dominante na "academia" atual, pois o filósofo explica as limitações de tal método em alguns breves pontos de suas obras (por exemplo, em Protágoras, na "República"...) e acaba preferindo um método de investigação mais racionalista/ dialética (filosófica). 
O empirismo voltou a dominar entre estudos filosóficos a partir da Europa do fim do século 17 e com este método de investigação (empírico), também espalhou-se o pressuposto filosófico do monismo que afirmava que a realidade só pode ser uma: material ou mental. Embora houveram propostas de conciliação entre essas pré suposições, essa disputa resumidamente acaba com a vitória do positivismo que surge no início do século 19 e prega o materialismo como um dogma entre os estudiosos. 
Ainda pelo final do século 17, parece que a proposta de destacar (separar) a ontologia da teleologia foi difundida, inicialmente por Christian Wolff [e/ou outro(s) filósofo(s)]. O impacto disto poderia parecer irrelevante, mas não foi; Tal separação talvez fosse inicialmente inócua, porém vale lembrar que Platão propõe a filosofia como uma construção de conhecimento aberta ao diálogo com a espiritualidade, além de ser uma construção de conhecimento transdisciplinar. O filósofo ateniense discutia a realidade psíquica (que ia da mente à alma, como já expliquei) e ainda traçava a relação dos valores universais/ da ética com a espiritualidade (abordagem notória em Fedro, por exemplo). A ontologia para o autor não é discutir o que existe e o que não existe - é trabalhar a finalidade de melhoria de todas coisas (ver Fedon), psiquê inclusa no que se refere a desenvolver os valores universais/ a ética. 
Separar a ontologia da finalidade (teleos, que foi colocada na teleologia em determinado ponto da história após Platão, seja com Christian Wolff ou com outros filósofos) é impedir o diálogo entre conhecimento e espiritualidade, além de também ser a separação da finalidade ética de Platão do resto da construção de conhecimento. Tal separação praticamente é uma afirmação ou argumentação de que há conhecimento ou verdade sem ética... E isso deveria ser no mínimo polêmico, considerando que não existe proposta "aética" (neutra em relação à ética): Ou ela é ética, ou é antiética. Cito isto principalmente com base nas propostas de Platão para o entendimento da história da filosofia e da construção de conhecimento em geral; não com intento de acusar quaisquer filósofos posteriores a ele, mesmo porque tal acusação seria inútil.
Os materialismo hoje encontra-se elevado a uma posição dominante no meio científico. Meio científico este, que se contradiz ao designar-se como academia - termo criado por Platão e mantido por sua primeira geração de seguidores (acadêmicos). 
Enfim, já detalhei sobre a metodologia da construção de conhecimento de Platão em outros textos... 
A parte talvez curiosa da obra de Platão, é que grande parte de seu conhecimento é atribuído ao seu mestre Sócrates, com doses menores atribuídas a Anaxágoras e Parmênides, menores ainda aos autores dos quais Platão discordava mais, como Protágoras, Heráclito e outros de pensamento similar a estes últimos. Também há semelhanças com o pitagorismo em sua obra, porém é com o personagem (ou indivíduo real?) apelidado de "estrangeiro" (Xenos) que Platão introduz a explicação do ser e de algumas classes (eidos) relacionadas a este tema que parece um dos centrais em seu trabalho. 
ser de Platão é explicado na obra Sofista, embora apareça em outras como A República. Ele não é um mero estudo especializado de ontologia e isolado - é fruto de uma investigação racional ética, portanto é fruto de uma construção de conhecimento... Que infelizmente é pouco aceita na academia desde a propagação dos pressupostos materialistas (e consequentemente niilistas também, ao rotularem e excluírem completamente a "cosmovisão espiritual") do século 19 em diante. Na verdade o ser de Platão hoje parece tratado como uma mera opinião ou até mesmo como um devaneio por muitos do meio científico. O problema disto é que, ao desprezar a construção de conhecimento transdisciplinar em diálogo com a espiritualidade e principalmente com a ética proposta por Platão, a ciência ou "academia" (pós) moderna ignora a base dessa construção, correndo o risco de ser contra um diálogo real com as culturas diferentes e suas cosmovisões e correndo o risco de ser antiética.

Platão e o "Estrangeiro"

O personagem "Estrangeiro" aparece em poucos diálogos escritos por Platão. Certamente muitos o consideram um personagem fictício, porém ele parece um marco entre os textos de Platão classificados como de sua "fase intermediária" e de sua "fase madura/ final'. Estes textos da fase madura são onde Platão desenvolve melhor sua teoria, abordando e expondo temas mais complexos como podemos ver nos diálogos Filebo (do Prazer e da Ética), Teeteto (do Conhecimento), Sofista (do Ser), Político (da Realeza) e Parmênides (das Formas). O Estrangeiro está em 2 destes diálogos: Político e Sofista

O primeiro diálogo aborda uma versão modificada do "mito da era de ouro" e o "deus timoneiro do universo", cita que o cosmos corpóreo é imperfeito porque não herda todas características de seu criador, indica que o estudo do incorpóreo (cognoscível) é mais importante do que estudar os corpos/ o sensorial porque abrange o estudo das virtudes, do imutável e/ou das eidos (enfim, da ética), além de algumas sutis alterações na teoria sobre o legislador/ governante ideal em comparação às idéias apresentadas no diálogo "Politheia" (A República), o segundo diálogo (Sofista) começa abordando sobre a classe tão criticada por Platão, mas acaba discutindo bastante o Ser

Fica claro que Platão busca e trabalha uma realidade superior, que serve de parâmetro para boa parte de sua obra; O Ser relaciona-se com a essência das coisas mencionada ocasionalmente em seus textos e também, mais diretamente com sua ontologia, mesmo porque apesar de utilizado também com o significado de "existir" o ser na língua grega vem (também) da palavra "ontos". Esta realidade mais perfeita ou excelente relaciona-se com a imutabilidade (não corruptível) e com algo uno, ou seja, unido, completo, de certo modo, universal/ mais perfeito. É daí que entende-se que a construção de conhecimento proposta por Platão não só é psíquica (a realidade cognoscível é mais perfeita do que a sensorial, pois é onde se alcança as virtudes como a moderação, a coragem, a justiça e o bem/belo), mas também deve ser colocada em prática (materialmente e psiquicamente/ eticamente) à serviço do coletivo, no caso, da cidade/ estado. Porém o estudo do ser é um dos mais profundos e complexos, possivelmente fazendo dele também, um dos mais incomuns, ao lado do estudo sobre a unidade (visto na obra Parmênides), pois ambos trabalham o conceito de eidos (ideia/ forma) de Platão. Estudar tudo que envolve a ideia/ forma proposta por Platão, é uma construção de conhecimento puramente racional/ cognoscível, portanto filosófica, ou seja, para além da limitação sensorial. Sendo puramente racional ele é automaticamente psíquico e ético, pois ninguém pode pegar um pedaço de ética e estudá-lo com métodos sensoriais e reprodutibilidade sensorial (isso seria absurdo). 

Tais estudos de Platão não se opõem totalmente, mas se afastam nitidamente de filósofos naturalistas gregos como Leucipo, Demóstenes, Heráclito e Protágoras que certamente priorizaram o perceptível sensorialmente. Apesar das semelhanças com Parmênides de Eleia, o fundador da filosofia ocidental também diferencia seu trabalho deste filósofo. Certamente houve similaridades da obra de Platão com a filosofia pitagórica, mas o corpo escrito de tal filosofia foi predominantemente perdido. Sócrates certamente foi uma de suas fontes, embora ainda existam pessoas que duvidam da existência deste filósofo, como se não houvessem pessoas que vivessem da tradição oral... 

No texto "Sofista", o Estrangeiro traz ao diálogo uma escola de idealistas (amigos das ideias), praticamente desconhecida na história. E falando em estrangeiros, não só os pitagóricos (e sua transmigração das almas) apresentavam possíveis conexões com culturas estrangeiras, como Anaxágoras era um "mestiço greco-persa" (O Império Persa Aquemênida era enorme, se estendendo das fronteiras leste da "Grécia" até o oeste da "Índia"). É válido notar que a terra natal de Anaxágoras (na verdade a Babilônia sob domínio Persa) estava prestes a desenvolver o número 0 (zero) possivelmente pela primeira vez na história, apesar de ainda não ser o número "zero" como conhecemos hoje, que foi desenvolvido na "Índia" entre 5 e 9 séculos depois. O zero é um marco da matemática que indica o início (ou mais precisamente a facilitação) do uso teórico desta ciência/ disciplina, para além do uso prático e comercial/ mercantil. Tanto é assim que Platão traz questões como o que há entre o finito e o infinito/ entre o uno e o múltiplo: o enumerável, o passível de medição que possivelmente se associa com a média não só numérica, mas também filosófica, de serventia ética. Tais usos teóricos da matemática não são empíricos no sentido original da palavra: não são necessariamente mensuráveis materialmente nem reprodutíveis corporalmente. Ainda assim, a matemática teórica explica muita coisa: seja com ou sem o uso de fórmulas ela possibilita a construção de conhecimento (seja filosófico, ou científico...); Pelo que sei da história da Grécia, na época de Platão haviam dois tipos de numeração nas cidades/ estado helênicas: Uma baseada em múltiplos de 5, similar aos algarismo romanos, e outra, a jônica, que era uma numeração apoiada em múltiplos de 9... Mesmo com as limitações de sua época possivelmente sem o "número zero", Platão se empenhou no uso filosófico da matemática, principalmente em suas obras "finais" como Filebos, Político e Parmênides

Não acho que a interpretação dos períodos das obras de Platão deva ser levado à risca, afinal o filósofo é um indivíduo e não três diferentes entre si - mudanças no estilo de sua escrita ou de temas abordados devem ter sido graduais e sutis. Neste período "final" então, onde as obras "Teeteto" e "Sofista" também parecem se enquadrar, Platão aprofunda suas investigações racionais sobre a verdade e a excelência, a busca por perfeição e uma possível realidade superior/ mais perfeita/ ética, psíquica (cognoscível)/ espiritual, divina ("daimonica", possivelmente referente ao hiperouranos etc); É no período destas obras que Platão apresenta o personagem "estrangeiro" em seus diálogos.

Poderia então o Estrangeiro ser um personagem real, o qual Platão optou por não revelar seu nome? Não só muitos gregos de seu tempo poderiam ter dificuldades de pronunciar um nome estrangeiro (dependendo de onde ele vem, e de quão esquisito ele soasse), mas também poderia haver um menosprezo caso o filósofo fundador da Academia alegasse que baseou partes essenciais de seu conhecimento nas ideias de um estrangeiro. 

A única menção de um estrangeiro no círculo de Sócrates e Platão que encontrei foi na obra Autobiografia de um Iogue de Paramahansa Yogananda: 
"Aristoxenus, o músico, narra a seguinte história sobre os indianos. Um destes homens encontrou Sócrates em Atenas e perguntou qual era o escopo de sua filosofia: - Uma investigação dos fenômenos humanos - respondeu Sócrates. Com isso o hindu explodiu de riso: - Como pode um homem investigar os fenômenos humanos quando ignora os divinos?" 
Em seguida Yogananda alega entender que o ideal grego, bem como as demais filosofias ocidentais são centrados no ser humano... 
Isso é só parcialmente verdade, primeiramente porque Aristoxenus era pupilo de Aristóteles e parecia seguir pouco ou nada da filosofia socrática/ platônica, então, sendo assim, poderia apresentar uma visão excessivamente crítica e/ ou imprecisa de Sócrates. Em segundo lugar, apesar de Platão tratar a psiquê humana e suas relações com a sociedade (nas obras "O Banquete" e "A República"), o filósofo mostra seu mestre Sócrates, em diálogo com Górgias, Pólo e Cálicles, já comparando a lei dos homens com a lei natural. Nestas 3 obras então, Platão já indica uma justiça que extrapola os limites humanos, possibilitando a interpretação de uma realidade superior e/ ou divina. Além disto, o filósofo ateniense refuta a teoria de Protágoras que afirmava que o homem é a medida de todas as coisas e mostra Sócrates em diálogo com Fedro, claramente buscando o divino e tratando de temas místicos/ transcendentes como a inspiração pelas ninfas, as profetizas da "Grécia" antiga, os estados alterados da mente (mania) e o "hiper ouranos" (claro que "x" leitores da obra Fedro negarão tal fato). Além disto, se Sócrates tratou pouco sobre o transcendente/ o divino e temas correlacionados, Platão trata mais, principalmente em obras como Sofista (ou do Ser). Este ser de Platão não só é o conceito de ser/ existir, mas indica a relação com algo imutável que realmente é além dos ciclos biológicos de nascimento e morte, e, portanto, indica relação com o transcendente/ o divino. 

Inclusive o autor faz tal abordagem de maneira muito mais racional e pautada pela ética, do que as verborragias teológicas das igrejas após o cristianismo "primitivo"; Platão não prega dogmas, por isso evita trazer uma supremacia divina sobre a vida humana, como é mostrado na "República", onde o autor confronta a superstição (termo oriundo de "super theos oinos", o super medo dos deuses), mas indica que a psiquê humana é feita para aprimorar-se e aprimorar seu entorno com serventia e ética através das virtudes ou excelências citadas anteriormente. A alma (psiquê) que interioriza as virtudes e põe em prática os valores universais que fazem bem a todos, alcança o divino, juntando-se a ele.
Por fim, eu trouxe este breve texto onde Yogananda cita Eusébio (de Cesaréia ou outro?) citando Aristoxenus, para levantar a questão: Poderia o estrangeiro citado por Platão ser um "sábio hindu", ou um filósofo influenciado por um destes sábios?

A definição de um ser imutável e uno parecia exclusividade da escola de Eleia entre as polis gregas, até Platão construir a filosofia ocidental apoiando-se no ombro destes e de outros filósofos. Platão relaciona tal definição com o divino e com o "Theos", seja ele o Demiurgo (arquiteto), Nous (a mente divina), Zeus ou Apolo (esse último considero mais improvável). Poderiam os filósofos da escola de Eleia, ou mesmo Platão, terem sido influenciados pela ideia hindu de um todo, ou Brahman onipresente em algum nível?

Sei que existem discussões e divergências entre filósofos e historiadores que debatem se Platão e outros filósofos da Grécia antiga/ clássica foram autores originais (de trabalhos puramente helênicos) ou se partiram de obras estrangeiras, sejam egípcias, "babilônicas", persas ou mesmo hindus. Historiadores recentes como Francis A. Yates ressaltam a influência sincrética e possivelmente hermética (greco-egípica-judaica) sobre os seguidores de Platão, particularmente do médio platonismo dos séculos 1 e 2, enquanto estudiosos dos últimos 4 séculos do Império Romano, como Eusébio de Cesaréia, chegaram a afirmar que Platão obteve conhecimento dos povos hebraicos ou foi inspirado por Deus. (não que  Eusébio aceitasse todo o corpo da obra platônica: ele aceitou só o que interpretou como convergente com textos hebraicos) 

Também sei que há aqueles que duvidam da historicidade de Sócrates e também os que menosprezam a ética "socrática/ platônica". Há outros que afirmam que Platão escondeu alguns ensinamentos orais e que Aristóteles teria revelado tais ensinamentos ou completado sua obra... Enfim, há uma série de interpretações e opiniões sobre o corpo da obra de Platão.

Sobre a originalidade grega ou suas possíveis referências, particularmente desprezo as visões unilaterais que afirmam que a filosofia helênica é pura e intocada por outras culturas, assim como discordo que sejam puramente adaptações de povos "vizinhos" mais antigos. 

Sobre Aristóteles continuar ou completar a obra de Platão, eu ainda tenho dúvidas. É verdade que ainda não li as obras aristotélicas, mas as poucas sínteses e observações sobre o autor indicam que ele contrariou seus antecessores (ou mestres) em alguns pontos-chave da filosofia "socrática"/ platônica. Aristóteles também afirma que Platão dá um ensinamento oral diferente do que ele mostra em  Timeu, sobre a relação entre o Uno e o bem. Pode ser que Platão reservou palestras ou conhecimentos sobre o bem, devido ao fato destes argumentos possivelmente serem muito rechaçados em sua época, mas creio que terei uma opinião mais embasada sobre isso após ler Timeu e a 7ª carta de Platão

Então faço a pergunta se o "estrangeiro" realmente não foi um conhecido de Platão influenciado por hindus, mas sei que é mais por curiosidade, pois considero pouco ou nada relevante a nacionalidade das pessoas. 

Observações sobre "Sofista" (Do Ser) Pt. 2

Após "o estrangeiro" e Teeteto definirem que o sofista não tem conhecimento (verdadeiro) em si, além da retórica ou da oratória, enfim, da persuasão, eles entendem que não se deve estudar tema algum a partir das coisas que não são e sim pelas coisas que são. Isto porque os sofistas, por exemplo, com sua ênfase na persuasão, priorizam esta técnica de convencer os demais acima de qualquer conhecimento, como demonstrado também em outros diálogos (Górgias etc). Por causa desta priorização, ao tentar definir um sofista, os interlocutores repetidamente descobriram coisas que os sofistas não são.

A partir daí eles começam estudar teoria de filósofos anteriores, inicialmente de Parmênides, e discutem o que é o "pan" (traduzido tanto como "o todo", como o universo; certamente porque consideravam o universo como o todo, ou o conceito de "tudo"), para então traçarem a relação entre a unidade e o ser.*

*Neste trecho, o tradutor Edson Bini, destaca que o termo "eimi" utilizado por Platão, significava tanto existir como ser. Isto porque não havia essa separação entre esses significados durante a "Grécia clássica", como houve, por exemplo, na Alemanha séculos depois.

A teoria de Parmênides apresenta certa complexidade ao centrar na idéia de que o universo é uno e absoluto, e no diálogo parece surgir uma dúvida entre os interlocutores de como algo pode ser uno e também composto por partes. O termo "uno" parece intercambiável, ou seja, passível de ser sinônimo de "um", e assim, "um" pode se referir à unidade de modo mais matemático e palpável, mas também poderia se referir ao conceito de totalidade, de completo, (um conceito ontológico) de absoluto, ou seja, pan - o todo, como mencionado anteriormente. 
O estrangeiro então diz que é necessário investigar a teoria daqueles que consideram que somente os corpos palpáveis (materiais) são (as coisas que são), possivelmente se referindo a Leucipo e Demócrito de Abdera. O estrangeiro diz que geralmente é difícil argumentar com tais filósofos, pois eles tendem arrastar tudo para a matéria/ os corpos e rispidamente desprezarem outras coisas. Ele então indica uma imprecisão nesta teoria ao questionar que, para "os filhos nascidos dos dentes do dragão"*, a justiça, a sabedoria e seus contrários são alguma coisa. Porém estas coisas sendo algo, contradiziria a teoria dos próprios materialistas, já que elas (justiça etc) não são palpáveis ou corpóreas. Para manter um diálogo entre estas coisas incorpóreas com as corpóreas, o estrangeiro diz que sugeriria que "o ser" é potência (dynamis). Isto porque tudo que possui potência para produzir uma mudança em algo de qualquer natureza, ou para sofrer o efeito da mais ligeira causa no mais ínfimo grau, é (existe).

*Platão compara os "materialistas" com os personagens telúricos do mito de Cadmos;

O filósofo então investiga uma terceira teoria sobre o ser/ existir: A dos "amigos das formas (ideias)"*. Estes distinguem o "ser" do "vir a ser", considerando que do primeiro (ser) que é imutável, os seres participam com a alma (psiquê) e seus pensamentos, enquanto do segundo (vir a ser) que varia no tempo, os seres participam com a percepção e seus corpos. O "vir a ser" então participa na potência (dynamis) de atuar e de sofrer ação, porém estas coisas não estão associadas ao "ser". 
Isto porque o "ser" é acessado pela psiquê que é cognoscente, ou seja, tem a capacidade de conhecer. 
O ser (verdadeiro) por sua vez, é o que é conhecido. Desta forma o "vir a ser" ficaria ligado ao que varia no tempo, ou seja, o movimento e o "ser" ficaria vinculado ao repouso. A psiquê com sua capacidade de conhecer faria uma possível ponte, pois existiria no corpo (que varia no tempo, no movimento...) e acessaria o verdadeiro "ser" que é o repouso, o imutável...
Aí surge a dúvida (questionamento) dos interlocutores: Se o conhecer difere do conhecido, poderia um participar do outro ou não? A princípio os interlocutores deduzem que não, pois são coisas diferentes entre si. Porém separar o que tem capacidade de conhecer do que é conhecido incluiria separar a vida, a alma e a inteligência do ser. Eles concluem que seria irracional o movimento, a vida, a alma e a inteligência não participarem do que absolutamente é.

*Esta teoria ("das formas", traduzido de "eidon") parece diferir do entendimento de Platão, por separar o ser/ o verdadeiro existir do movimento, da vida etc...

Assim, após analisar as 3 teorias, ficou entendido que o movimento deve participar do "ser" e do "vir a ser". Porém, afirmar que absolutamente tudo está em movimento ou que tudo é movimento seriam erros, pois há a necessidade de repouso para que haja identidade de qualidade, de natureza e das relações.
Havendo movimento e repouso, o estrangeiro conclui que também é preciso recusar o argumento de que tudo está em repouso ou de que tudo é repouso.
A seguir, os interlocutores identificam duas categorias de fenômenos: o repouso e o movimento que são contrários entre si. Porém seria uma imprecisão afirmar que o repouso e o movimento existindo/ sendo algo, poderiam ser simultaneamente (em conjunto concentrado com o ser). Por consequência, o ser/ o existir seria uma terceira coisa, além do movimento e do repouso e não absolutamente um ou outro e nem ambos mesclados.
O estrangeiro e Teeteto entendem que mesclar todas as coisas seria absurdo, assim como afirmar que nada se mescla também seria. Então eles concluem que algumas coisas poderiam se mesclar, a exemplo das letras cujas algumas podem ser combinadas para se pronunciar sílabas e palavras, enquanto outras não podem, pois suas combinações seriam impronunciáveis. Esta mesma lei de que algumas coisas são mescláveis e outras não, se aplicaria para várias outras coisas como entre sons graves e agudos para a formação da música etc... Tal divisão das coisas (formas, idéias) por gêneros seria objeto de estudo da ciência (epistimin) da dialética, que por sua vez, é estudada pelo filósofo (a pessoa mais indicada para estudar a divisão das coisas por classes ou gêneros).

Platão propõe investigar os fenômenos pelas suas relações - se são combináveis ou não e mais outras  categorias que o filósofo citará adiante na obra; Há alguma semelhança com a Teoria Geral dos Sistemas neste assunto: Ao invés de estudar com base no método sensorial e reprodutível e na mera divisão (redução) das partes, A Teoria Geral dos Sistemas indica a importância de se considerar e investigar as relações entre os objetos de estudo: Relações de mudança; Relações de repetições / padrões; Relações de transcendência (entre sistemas, onde um sistema vai para além de si de encontro a outro sistema). 

Após as 3 categorias serem definidas (repouso, movimento e o ser/ existir), o Estrangeiro identifica mais duas: o idêntico e o diferente, isso definiria as classes (*) anteriores. Em seguida começa a parte possivelmente mais complexa do diálogo, onde os interlocutores discutem a relação e a diferença entre estas classes/ formas/ ideias (eidos). 

*Na tradução de Edson Bini, a palavra "classe" é sinônimo de eidos (ideia e forma);

O diálogo sobre as relações entre o movimento, o repouso, o ser, o idêntico e o diferente pode parecer enfadonho ou peculiar para muita gente, mas ele trata de um ponto importante na construção do conhecimento que parece ter sido ofuscado ao longo da história, particularmente após os estudos de René Descartes no século 16 e a reação empirista a tais estudos, principalmente por parte dos filósofos britânicos. 
Apesar de peculiar, apresento um resumo do diálogo com minhas próprias palavras a seguir, pois não estou disposto a buscar uma versão digital do texto de Platão para copiar e colar aqui. Por esta razão eu recomendaria todos que dizem estar interessados na construção de conhecimento (ciência inclusa aqui) a lerem este texto de Platão... Porém também entendo que a maioria das pessoas (seja na "academia" ou em qualquer outro ambiente) é cheia de certezas e não tem a postura da presunção da ignorância necessária para levar tais estudos à sério e com ética... Eis um dos motivos pelo qual a ciência ainda parece predominantemente uma religião materialista/ niilista (e geralmente ateísta) em oposição às todas religiões e à toda espiritualidade.
Além disto, ler Sofista sem ler outras obras essenciais de Platão como "A República" (entre outras), me pareceria uma sugestão meio "torta".

Teeteto e o Estrangeiro então discutem como o "não grande" não é necessariamente oposto ao grande, pois não precisa se referir ao "menor tamanho possível". Tal termo somente indica que algo não é grande, podendo ser de uma outra variedade de tamanhos. O mesmo então vale para todas outras palavras e definições do mesmo tipo e por isso o Estrangeiro parte para explicar o "não ser". Tal definição não se refere ao oposto de ser/ existir e apenas indica que algo não é uma determinada coisa. Assim, os interlocutores provam que mesmo o "não ser" participa do "ser". 

Neste ponto do texto, Platão indica que as teorias de que tudo está em movimento constante (de Heráclito, Protágoras etc), de que só a matéria existe/ é (de Leucipo, Demócrito...), de que o não ser é completamente apartado do ser (de Parmênides) e dos "amigos das ideias" (mentalistas, cujos autores são incertos ou desconhecidos), estão erradas ao serem propostas como verdades absolutas. Este parece um ponto chave em que Platão, a partir de filósofos anteriores, constrói a filosofia ocidental, ou ao menos, sua raiz e cerne. 

Seguindo a lógica de que as coisas que "não são" participam do "ser"/existir, os interlocutores entendem que encontraram o que buscavam ao tentar definir o sofista (no início do diálogo, o qual abordo neste texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/02/breves-observacoes-sobre-sofista-do-ser.html). 
Todos os 4 gêneros/ classes diferentes do ser, participam do não ser, pois o gênero do diferente permeia/ toca todos eles (afinal são gêneros com diferenças entre si: ser/ existir não é sinônimo de movimento, de repouso, de idêntico nem de diferente). O ser (certamente mais absoluto) então difere de todos os outros gêneros, mas os toca pelo fato de tais gêneros serem idênticos a eles próprios. (eles são idênticos a eles mesmos, ou existem idênticos a eles mesmos). Assim o ser é identificado como múltiplo e o "não ser" é identificado como infinito em número/ quantidade. Estas reflexões incomuns podem parecer dúbias, mas não deixam de ser  uma utilização da lógica voltada à construção de conhecimento, particularmente o conhecimento da filosofia "ocidental" em sua estrutura básica/ raiz.
Os interlocutores seguem o diálogo indicando que a classe/ eidos do diferente é toda fragmentada como o conhecimento (episteme, ciência), pois o conhecimento tem várias áreas de estudo diferentes entre si.
A beleza (kalos) então participa do ser/ existir e existem coisas "não-belas" também. Porém o não-belo, sendo diferente do belo, apresenta alguma oposição ao ser e ainda assim não existe um "não ser" absoluto. O não ser em sua infinitude não é absolutamente o oposto do ser, pois é alguma coisa, portanto participa do ser.
Platão admite que tal discussão pode ser distorcida por oradores e outros indivíduos (como os típicos sofistas, por exemplo) que priorizam a manipulação das palavras e da linguagem para algum benefício próprio etc... Um exemplo desta manipulação seria separar as classes/ gêneros/ eidos mencionadas pelo filósofo (negar suas relações/ intersecções que ocorrem entre algumas delas). O personagem nomeado de "estrangeiro" mostrado pelo autor então, diz que a tentativa de separar tudo de tudo é não só um sinal de mau gosto, mas mostra que a pessoa que faz tal coisa é inculta(*) e não-filosófica.

(*) Traduzido de aymoysoy, ou seja "amusical", não limitado ao que entendemos como música atualmente, mas no sentido de "estranha às musas", ou seja, estranho às entidades associadas à inspiração, às artes e aos conhecimentos na cultura helênica (grega) da época de Platão e anteriormente. Certamente isto tinha uma importância na cultura da "Grécia clássica", mais ou menos como hoje entendemos a importância de temas como a inclusão (social, étnica etc), a empatia, enfim a ética, afinal a proposta de filosofia de Platão tem finalidade de melhoria individual (no que se refere à psiquê) e coletiva (no que se refere à pólis, a cidade, ao estado, enfim o social).
 
O estrangeiro então aponta que o "não ser" mescla-se com a opinião e com o discurso, e, por causa disto existe a opinião falsa e o discurso falso, a região repleta de cópias, semelhanças e phantasias(*), onde geralmente os sofistas se refugiam. Ele cita brevemente a produção de cópias e a arte da imaginação, descartando-as para investigar o discurso, as "phantasias" e a opinião.
Para desmentir os típicos discursos/ argumentos dos sofistas, que manipulam a narrativa para alcançar seus objetivos particulares ignorando a verdade, os interlocutores concluem que é preciso analisar e desconstruir tais construções (as falácias, mentiras etc) para só então expor o charlatão (sofista). 

 (*) Edson Bini traduz como "aparições" ao invés de fantasias, explicando que os gregos da época de Platão, consideravam nesta categoria tudo que aparece e parece ser, desde a imaginação até a percepção sensorial; Esta última é referente ao "mundo sensível" colocado claramente como menos real do que a "realidade cognoscível" por Platão em obras como "A República".

Após discorrerem sobre o logon (discurso ou sentenças) e sua formação por verbos e sujeitos, o estrangeiro indica que tanto o pensamento, como a opinião e as aparições ocorrem na psiquê de cada indivíduo. Ele explica que pensamento e discurso são idênticos, exceto pelo fato que o pensamento ocorre interiormente em silêncio, na psiquê, enquanto o discurso é exposto pelo "fluxo sonoro" vocalizado pelo corpo (cordas vocais, língua, dentes, boca etc). 

A partir daí, os interlocutores observam que há afirmação e negação nos discursos e que quando essas (afirmações e negações) surgem interiormente na psiquê do indivíduo, elas devem ser chamadas de opinião. Este mesmo estado (de afirmar ou de negar) pode ocorrer por uma experiência não interior exclusivamente por si mesma, mas também através da sensação (do sensorial, a partir da experiência com o externo, além de si mesmo). Este último caso, o estrangeiro chama de "phantasia" (aparição, "fantasia" e termos similares/ equivalentes).

 Aqui parece uma prova de que a palavra "phantasia" era empregada não exclusivamente como fantasia (psíquica, imaginativa e afins), mas também como a imagem mental/ interna que o indivíduo tem a partir das experiências sensoriais cotidianas. 

Assim o pensamento é um diálogo consigo mesmo, a opinião uma conclusão deste tipo de atividade e a expressão "parece" (phainetai) é a mistura da sensação citada anteriormente (sensorial) com a opinião. Como todos esses elementos participam do discurso, eventualmente alguns deles podem ser falsos e daí surgiriam a falsa opinião e o falso discurso.
O estrangeiro então retoma os 2 gêneros de produção de cópias e da imaginação, pois agora está comprovado que a falsidade não é sinônimo de inexistência, pois é/ existe. Por causa disso a imitação "das coisas que são" é possível e aí pode surgir o engano.
Ele relembra que no início do diálogo, havia classificado o sofista como pertencente da arte aquisitiva (da competição, caça, comércio etc) e agora o sofista foi incluído na arte imitativa. A arte imitativa faz parte da arte produtiva (poitikin), mas não que produz as coisas próprias e sim imitações.
O estrangeiro então explica que há duas partes das artes produtivas: a humana e a divina; Teeteto estranha tal definição e o estrangeiro explica a seguir:
Ele lembra que para refutar os materialistas e os adeptos de que tudo que existe está em constante movimento, havia proposto a potência que é a causa do "vir a ser". Isto explica porque todos os astros, toda a vida e todo material que compõe a Terra foram gerados (em determinados pontos no tempo). Todas estas coisas seriam obra de um Theo (deus) que "não foi antes"(*) de acordo com o estrangeiro que, em seguida, pergunta se Teeteto crê que todas as coisas foram geradas por uma causa espontânea (automátes) destituída de inteligência criadora, ou se foram criadas pela inteligência divina de um deus (**). Teeteto fica em dúvida, mas afirma escolher a alternativa de que tudo foi criado por uma inteligência divina, um deus arquiteto "que não foi antes", porque parece ser a linha de pensamento do estrangeiro.

(*) Ou seja, a origem de todas essas coisas é algo além do "vir a ser" e do tempo, ou, pelo menos além do tempo linear, se é que o tempo é realmente linear. 
(**) Theoi demiurgontos, possivelmente aludindo ao deus-arquiteto, ou demiurgo, mas também similar a nous, a inteligência divina citada em Filebo.

A arte produtiva então, que estava dividida em criativa e imitativa, agora foi dividida em divina e humana também, resultando em 4 partes.
Os produtos da arte criativa divina os resultados foram comentados anteriormente (a vida, os astros e seus respectivos elementos...), porém como obras da arte imitativa divina (aqui o autor parece usar o termo referente a daemon e não a theoi), o estrangeiro classifica os sonhos e as visões bidimensionais como as sombras e as imagens refletidas. Já da arte humana, são trazidos o exemplo da construção de casas como arte criadora e da pintura como arte imitadora (exemplos já mencionados em outras obras de Platão). Teeteto então afirma estar claro que há uma arte da criação das coisas em si e uma arte que produz coisas semelhantes. O estrangeiro diz que a imaginação também pode ser dividida em duas categorias, sendo uma delas a imitativa, onde, por exemplo, uma pessoa utilizando seu próprio corpo tenta imitar outra (através da voz, da fala, do jeito de se mover etc).
Estas artes imitativas então, também podem ser divididas em duas categorias de acordo com o estrangeiro: Imitar uma pessoa é uma arte que se baseia no conhecimento do qual o imitador tem de seu alvo (observado, estudado etc). Já, por exemplo, as pessoas que tentam por suas próprias opiniões sobre a justiça e as virtudes, ignorando a primeira ou nunca experimentando as segundas, não se baseiam em conhecimento algum. O estrangeiro diz que por uma negligência relativa a divisão de gêneros, os antigos pensadores nunca realizaram tais classificações ou nomeações, então ele propõe duas nomeações para os 2 tipos de imitações; a opiniática (doxomimitikín) e a baseada em "ciência" (ou conhecimento) histórica (epistémis istorikín mímisin).
Entre os imitadores opiniáticos haveriam os francos (haployn) e os dissimulados (eironikon, palavra que provavelmente deu origem a "irônico"). De acordo com o estrangeiro, os primeiros seriam tolos que realmente pensam conhecer o que imitam, já os últimos suspeitam não conhecer, mas devido a aspereza (*) de muitas discussões, simulam conhecer as coisas diante o público.

(*) Aqui o termo "aspereza" certamente se refere a muitas interações insensíveis, rudes e/ ou competitivas, tanto que a palavra eironikon sugere possivelmente não só dissimulação (eiron), mas disputa de ignorância, tentativa de vencer (nikon) por dissimulações. 

O estrangeiro pergunta a Teeteto se estes dissimulados que agem publicamente devem ser chamados de político ou de orador popular (demologikon), ao que o jovem responde a segunda opção.
Na sequência, o estrangeiro pergunta se os que agem particularmente (de modo mais privado) devem ser chamados de sábios (sófon) ou de sofistas. Teeteto diz que não se deve chamar de sábios já que são ignorantes, mas como imitam o sábio, devem ser adequadamente chamados de sofistas.

Vale notar que nesta obra Platão não está somente discutindo o que existe e o que não existe; ele trabalha a construção de conhecimento racionalista baseada na ética para investigar e refutar os sofistas, ou uma determinada classe de "profissionais" ao qual ele denominou de sofistas. Embora o diálogo em "Sofista" possa parecer uma discussão ontológica em significante parte da obra, como alguns também consideram que ocorre em suas obras Filebo e Crátilo por exemplo, o que temos aqui é a filosofia em si, uma construção de conhecimento que discutiu autores anteriores e contemporâneos (citados no texto) de Platão. sem se fechar a um tema isolado/ específico.
Esta classificação sobre o que é ontologia, separada de outros temas da filosofia, como teleologia (etc) foi feita por autores posteriores a Platão; Há quem diga que Aristóteles iniciou tais estudos e classificações, porém, sobre este assunto, eu detectei outros autores mais recentes da época do iluminismo em diante... 
Independentemente do que esses autores posteriores a Platão entenderam de sua obra, eu considero que estes diálogos que menciono aqui (Sofista, Filebo, Crátilo) não se limitam à ontologia e que o trabalho do filósofo como um todo, é uma obra completa - Exceto por algumas poucas limitações de sua época e cultura (como o lidar com a escravidão e com a pena de morte, por exemplo), sua obra não apresenta falhas significantes ou lacunas a serem completadas ou reinterpretadas por autores posteriores.

Observações sobre Teeteto (Do Conhecimento) Pt. 2

Aqui continuo as observações sobre o diálogo Theaitetos (traduzido como Teeteto) tratadas neste outro texto: https://amorpelosabersaberamar.blogspot.com/2024/02/breves-observacoes-sobre-teeteto-da.html


 Na parte tratada anteriormente, Teeteto e Teodoro, que acreditavam que o conhecimento era essencialmente sensorial, encontram Sócrates. Sócrates, Teeteto e Teodoro discutem então a teoria de Protágoras que afirmava que o "homem é a medida de todas as coisas", teoria esta que tinha similaridades à de Heráclito (de que tudo está em constante movimento). Sócrates refuta vários pontos desta(s) teoria(s), indicando a necessidade e a existência do repouso, da unidade, da totalidade, a insuficiência do uso exclusivo dos sentidos na construção do conhecimento etc. Também indicando que a verdade não é particular de cada ser humano, e a necessidade da busca de uma justiça universal, esta que por sua vez, não só faria bem ao estado e todos seus componentes/ integrantes, como também indicaria a existência de uma realidade divina ou de um "Theo" (possivelmente o Demiurgo, ou talvez Nous).

Após isso, para definir o conhecimento, Sócrates tenta utilizar comparações com linguagem figurada: por exemplo, a psiquê como cera de vela moldável para aprender, entender e guardar o conhecimento, depois a comparação da mesma com uma gaiola onde se prendem pássaros como se fossem conhecimentos etc.

Insatisfeito com os resultados, Sócrates continua sua investigação junto a Teeteto. Teeteto então diz que ouviu uma explicação de que o conhecimento é a opinião verdadeira associada ao discurso racional. Sócrates, por sua vez, diz que costumava ouvir (ou sonhar com) certas pessoas sustentarem que os elementos primordiais dos quais tudo e todos são compostos não admitem qualquer explicação racional. Cada um desses elementos é passível apenas de ser nomeado, não sendo possível nada mais dizer dele, ou que ele é ou não, uma vez que isso seria adicionar-lhe existência ou não existência. Na verdade nenhum termo que implica multiplicidade devem ser adicionado a tais elementos primordiais (como "essa", "cada um" etc) porque tais termos se distinguem das coisas às quais são adicionados. Enfim, tais elementos não podem ser explicados racionalmente e só podem ser nomeados. Porém as coisas compostas por esses elementos são complexas, o que transmite complexidade aos seus nomes, que por sua vez formam uma explicação racional. Assim, a associação dos nomes é a essência do discurso racional.

A partir daí, Sócrates conclui que quando alguém atinge a opinião verdadeira sobre alguma coisa dissociada do discurso racional, sua psiquê/ alma passa a deter a verdade no tocante a essa coisa, mas não detém conhecimento. Aquele que é incapaz de fornecer e receber uma explicação racional de algo, carece de conhecimento dele.

Para explicar o elemento primordial, Sócrates o compara com as letras: As letras formam sílabas pronunciáveis portanto explicáveis; porém a letra em si, é o símbolo que representa uma vogal ou consoante que por ela mesma não apresenta explicação racional, referindo-se ao som puro.

A seguir Teeteto e Sócrates investigam a soma, os números que a compõem e o resultado da soma; tais números seriam as partes da soma, mas a soma em si, é a combinação destas partes. Eles começam utilizando os termos "pan" para soma e "holon" para o todo, este último é o total numa forma autônoma. Apesar desta distinção inicial, eles concluem que a soma (de quaisquer números/ quantidade) é sinônimo de todo, ou seja, a soma é um resultado que forma algo completo autônomo, independente. Com tal explicação, esta soma/ todo não seria divisível, pois teria formado algo autônomo, novo etc.

Esta investigação e suas explicações são bastante incomuns e possivelmente complexas. Apesar de soar estranho alegar que a soma/ todo não é divisível, tal explicação serve para alguns casos ou objetos de estudo da ciência: Um possível exemplo seria um corpo de um ser vivo, seja animal, planta ou qualquer outro é constituído de células, que por sua vez são constituídas de moléculas, que por sua vez são constituídas de átomos e por aí vai. A partir destas observações, imaginemos uma planta toda dividida nestas partes microscópicas. Se juntarmos essas partes microscópicas, será possível reconstruir a planta exatamente como era antes de sua divisão? Apesar de não ser botânico nem físico, eu arrisco afirmar que não seria possível. Talvez com algum desenvolvimento científico/ tecnológico gigantesco e/ ou maior do que temos neste início de século 21. Mas voltando à explicação do todo autônomo e suas partes, creio que foi mais ou menos o que exemplifiquei que Platão tentou explicar. 

Parece que tal estudo não tem implicação científica, mas em alguma construção de conhecimento importante eu sei que tem: Na psicologia, seja ela ciência ou filosofia. Foi por causa de discussões (não iguais, mas) semelhantes a esta, que surgiu a frente fenomenológica da psicologia. Foi uma necessidade para além da psicologia experimental, da psicanálise e do behaviorismo que apesar de terem suas respectivas utilidades, apresentaram visões deterministas do ser humano, e, em algum caso até reducionistas pelo fato de se apoiarem no materialismo e/ ou no biologismo. Abordagens da frente fenomenológica da psicologia, trabalham conceitos como a totalidade do paciente, buscam respeitar relatos do paciente, independentemente de cosmovisões e pressupostos, considerando-os como possibilidades para o tratamento e, portanto, para a construção de conhecimento humano também.

Continuando o diálogo, Sócrates diz: (...) "declararemos que os elementos, enquanto uma classe, são muito mais claramente conhecidos do que compostos e que oferecem um conhecimento muito mais importante para a completa consecução e domínio de cada ramo de estudo. E se alguém afirmar que o composto, por sua natureza, é cognoscível ao passo que o elemento é incognoscível, consideraremos que tal pessoa está, intencional ou não-intencionalmente, gracejando."

Apesar de aparentar algum avanço no estudo sobre o que é conhecimento, Sócrates em seguida questiona a definição encontrada, pois uma suposta indivisibilidade no exemplo da formação dos nomes/ palavras poderia ser encontrada tanto na sílaba (por se tornar o "todo autônomo") como na letra singularmente que é naturalmente indivisível. O conhecimento também não poderia ser somente ter uma opinião verdadeira sobre uma experiência em particular e explicá-la racionalmente, nem apresentar uma explicação meramente das partes de um todo. Com esse e alguns outros questionamentos, Sócrates, não chega a um resultado definitivo sobre o que é conhecimento, dizendo à Teeteto:

"Se depois dessa experiência, no futuro tentar conceber outros pensamentos, Teeteto, e realmente os conceba, estarás grávido de melhores pensamentos do que esses por causa da presente investigação; E se permaneceres estéril, te mostrará menos duro e  mais afável com teus companheiros, pois estarás munido da sabedoria de não pensar que sabes aquilo que não sabes."

O filósofo conclui que não sabe o que os "grandes homens" do presente e do passado conhecem e que sua arte é capaz de realizar o efeito que gerou em Teeteto: enquanto a mãe de Sócrates tratava das mulheres com a "arte de parir" (crianças), ele tratava dos jovens que exibem beleza (certamente "kalos", a beleza mais que física - psíquica e moral).(*)

O diálogo termina com Sócrates se retirando para responder formalmente seu acusador, Meleto.

(*)Tratar dos jovens seria a educação ética proposta por Platão e em grande parte baseada na maiêutica de Sócrates. 

Platão traça algumas observações sobre o conhecimento, mas não dá uma resposta definitiva sobre o que é o conhecimento (episteme) em si. Isto pode ser decepcionante em algum nível para quem esperava uma conclusão, porém na obra Sofista, que é praticamente a sequência deste diálogo, ele toca no assunto novamente, mas com uma ênfase no ser/ existir. Na obra seguinte então, fica claro que Platão tem uma preocupação mais psíquica e moral/ ética do que simplesmente definir o que é conhecimento sem tratar da psiquê humana e tratar sobre a existência. 

Platão não poderia ficar meramente preso à opinião humana, nem à relatividade da realidade observável sensorialmente, pois buscou se pautar nas excelências ou virtudes - os valores universais, ou em termos mais utilizados atualmente, na ética.


Observações sobre Timeu; Parte 2

Continuo aqui as observações sobre a obra Timaeus ( Timeu ); (48) O astrólogo Timeu então diz que este universo ordenado (em que vivemos) na...